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Full text of "O lobo da Mandragôa; romance original illustrado com 40 gravuras"

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O 


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OBO  Di  MiDRiGÓi 


ROMANCE  ORIGINAL 


ILH.TJSXRAIDO     OOIwfl:    40     OI^-A^VCTIRAS 


-^í^^^ 


LISBOA 

Parceria  António  Maria  Pereira 

LIVRARIA  EDITORA 

Kua  Augusta  —  50,  52  e  54 
1904 


(^:=_j. r        '  -^^  \ ^-.^^ 


o  Ixobo  da  M^dragôa 


j^lberto  Pimentel 


o 


il 


DA  MÂDRAGÕÂ 


Romance  Original 


ILLUSTRADO  COM  40  ORAVURAS 


LISBOA 

Paeceria  a.  M.  Pereira  —  Livraria  Editora 

Rua  Augusta  —  50,  52  e  54 

1904 


92GI 
^^^v  p/|6L6 


Oííicinas  typograpliica  e  úe  encaflernação,  movidas  a  vapor 

DA 

wA.  H,  C  E  R.  I -A.       -A._       Is^.       I»  E  H  E  1 1?, -A. 

Rua  dos  Correeiros,  70  e  72,  i.° 
1904 


o  poeta  Diógenes,  o  Lobo, 

Sem  capa,  bolsa,  ou  lar,  mordendo  em  todos. 

Castilho  —  Excacações  poéticas. 


António  Lobo  de  Carvalho,  quando  se  levanta 
do  cinismo  habitual,  e  não  imita  a  sordidez  de 
Baífo,  é  critico  engenhoso,  e  faz  lamentar  o  ta- 
lento polluido  em  levianas  devassidões. 

Rebello  da  Silva.  —  Panorama,  XI. 


PARTE  I 

Peeeadoã  da  moeidade 


fl  explosão  da  pesqueira 


Esboçava-se  na  ténue  claridade  do  ceu  o  primeiro  sorriso 
da  aurora,  e  já  a  Therezinha  de  Villalva,  madrugadora  como  a 
toutinegra,  atravessava  por  Argemil  para  a  beira  do  rio  Ave. 

EUa  nao  tinha  outro  relógio  que  a  despertasse,  além  do 
seu  coração.  Quem  anda  de  amores  nSo  dorme,  diz  o  povo. 
Aquella  linda  cachopa  de  Villalva  dormia,  cançada  de  moure- 
jar um  dia  inteiro  na  faina  dos  campos,  e  talvez  não  sonhasse. 
Mas  accordava  mais  cedo  que  toda  a  sua  aldeã ;  primeiro  ainda 
que  os  pássaros  no  arvoredo,  exceptuando  a  toutinegra  e  o  ten- 
tilhão. Era  o  coração  que  a  despertava,  muito  de  mansinho, 
para  que  ninguém  mais  ouvisse.  E  quando  a  Therezinha  sal- 
tava do  leito,  certificava-se  olhando  para  a  janella:  lá  estava  já 
o  sol  a  dizer-lhe  «Tu  e  eu  não  faltamos  nunca.»  Então,  bem 
accordada,  principiava  a  sonhar,  que  só  para  os  namorados  a 
vida  é  sonho.  O  provérbio  popular:  —  Quem  anda  de  amores 
não  dorme  —  applicado  á  raça  forte  do  Minho,  não  impõe  a  in- 
somnia  como  indispensável  condição  pathologica ;  exprime  ape- 
nas o  alvoroço  madrugador  do  coração  amoroso. 

Escusamos  de  phantasiar  requintes  e  devaneios  de  poesia, 
que  brigam  com  a  realidade  dos  factos.  Digamos  o  que  é;  como 
as  coisas  são.  O  amor,  para  ser  poesia  e  sonho,  não  precisa 
que  o  vamos  procurar  ao  ceu  e  lhe  ponhamos  duas  azas  bran- 
cas que  o  tragam  mais  facilmente  até  nós.  EUe  é  já  de  si  mes- 
mo  uma  força  mysteriosa  que  eleva  a  creatura ;  e  na  mulher 


10  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


do  campo  nSo  ha  outro  sentimento  que  possa  tornal-a  imma- 
terial. 

A  Therezinha  de  Villalva  sahia  de  casa  pé-ante-pé,  lavava- 
se  na  corrente  do  Sanguinhêdo,  riacho  da  sua  aldeã,  como  fa- 
ziam mais  tarde  todas  as  outras  raparigas.  Via-se  no  espelho 
ainda  baço  da  agua,  que  o  sol  illuminava  frouxamente,  e  com- 
punha o  cabello,  anediando-o  com  as  mãos,  que  também  tra- 
tava com  excepcional  cuidado  entre  camponezas.  Depois  partia 
alegre,  cantando,  mais  feliz  do  que  uma  princeza,  sem  pensa- 
mentos maus  que  perturbassem  a  castidade  da  sua  vida. 

A  mulher  do  campo,  se  é  honesta,  nSo  teme  os  perigos  do 
caminho,  nem  as  vozes  do  mundo.  A  sua  mesma  honra  é  uma 
escolta  que  a  acompanha,  que  a  defende  e  guarda.  i\ão  a  intimi- 
da a  solidão,  que  ella  parece  supprimir  cantando.  N'isto  se  dif- 
ferença  das  aves  suas  patrícias :  ellas  gostam  de  cantar  pousa- 
das; a  camponeza  canta  caminhando. 

De  mais  a  mais  Therezinha  nao  atravessava  um  deserto. 
Entre  Villalva  e  Argemil^  dois  povoados,  apenas  havia  alguns 
trechos  de  pinheiral,  que  ella  cortava  em  linha  recta.  Pelo  ca- 
minho já  ia  encontrando  alguém,  quasi  sempre  algum  velho, 
que  lhe  dizia  benevolamente:  «Vai  com  Deus,  cachopa».  Os 
velhos  dormem  menos  que  os  moços,  talvez  por  um  movimento 
instinctivo  da  natureza,  que  se  apega  á  vida  para  aproveitar 
melhor  a  pouca  que  ainda  lhe  resta. 

Chegando  a  Argemil,  havia  sempre  mais  gente  que  não 
deixava  passar  ninguém  em  segredo.  Eram  os  criados  da  quinta 
da  Batalha,  que  rondavam  em  som  de  guerra  a  beira  do  rio. 

Therezinha  parava  um  momento  para  ajoelhar  á  porta  da 
capellinha  de  Nossa  Senhora  da  Piedade.  Rezava  por  costume 
uma  «Ave-Maria»,  com  as  mãos  erguidas.  Depois  descia  á 
orla  do  pinhal  para  o  rio.  Logo  ali,  poucos  passos  andados, 
estava  o  Ave,  onde  a  agua  espumava  cahindo  do  açude.  Parava 
e  batia  de  rijo  trez  palmadas,  que  o  écco  do  valle  repetia  lon- 
gamente. Respondia-lhe  um  assobio  estridulo;  era  o  barqueiro 
dos  cruzios*  da  Palmeira  que  dava  signal  de  que  não  tardaria 
com  a  barca  da  passagem. 

Os  criados  da  Batalha  diziam  sempre  a  Therezinha  alguma 
chalaça  por  galanteria : 

—  Ah  !  cachopa  !  pudéssemos  nós  desviar  o  rio,  que  nem 
tu  o  passarias,  nem  os  cruzios  nos  fariam  passar  tão  má 
vida. 

— Tu  és  uma  flor  da  margem  esquerda  :  não  enraízes  além, 
que  nos  roubas. 

—  S.  Bento  faça  o  milagre  de  que  venhas  a  querer  mais  á 
Batalha  do  que  á  Palmeira. 


o    LOBO    DA    MADRAGOA 


11 


Therezinha  sorria,  e  tinha  sempre  que  responder,  porque 
a  mulher  do  Minho  é  destra  e  graciosa  na  répHca : 

—  Se  vós  pudésseis  desviar  o  rio,  ficarieis  sem  pesqueiras 
nem  azenhas.  E  se  quereis  perder  tudo  isso,  dai-o  de  boamen- 
te aos  cruzios;  escusaes  de  andar  em  guerra  com  elles. 


Aspecto  de  Villalva,  do  lado  do  Alto  do  Pedro 


—  Fosse  eu  flor,  e  seria  como  todas  as  outras,  que  nao  sa- 
bem onde  hao  de  viver,  senão  onde  Deus  manda. 

—  Eu  quero  tanto  á  Batalha  como  á  Palmeira.  Sou  como 
as  vossas  azenhas,  que  teem  duas  rodas  e  nenhuma  d'ellas  tra- 
balha mais  de  uma  banda  que  da  outra. 

Os  criados  dos  benedictinos  riam  de  ouvir  Therezinha  pa- 
paguear todos  estes  chistes,  que  lhe  eram  salvo-conducto  com 
que  livremente  podia  atravessar  o  rio,  privilegio  que  a  outra 
qualquer  pessoa  tão  affeiçoada  á  Palmeira  seria  violentamente 
disputado. 

Amanheceu  o  dia  23  de  julho  de  1758  e,  como  sempre,  a 
Therezinha  de  Villalva  accordou  despertada  pelo  coração.  Olhou 
para  a  janella  e  lá  viu  o  sol  a  dizer-lhe :  «Tu  e  eu  nSo  falta- 
mos nunca».  Poz-se  a  pé,  mas  estava  menos  tranquilla  e  con- 
tente do  que  nos  outros  dias.  A  si  mesma  perguntou  com  so- 


12  o    LOBO    DA    MADRAGÒA 


bresalto :  ((Será  hoje?»  Havia  um  pensamento  secreto  que  a 
alvoroçava.  Mas,  com  o  seu  animo  i-esoluto  de  rapariga  mi- 
nhota, sahiu  pé-ante-pé,  foi  lavar-se  ao  Sanguinhêdo,  onde 
compoz  o  cabello  no  espelho  da  agua;  e  involuntariamente  re- 
lanceou os  olhos  por  toda  a  sua  pequena  aldeã,  como  a  inqui- 
rir das  arvores,  dos  rochedos  e  do  ribeiro  se  n'aquelle  dia 
seria  menos  feliz  do  que  nos  outros. 

E'  que  os  sitios  que  estamos  costumados  a  vêr  ínspiram- 
nos  confiança  amigável :  contamos  com  elles,  como  se  fossem 
companheiros  seguros,  nossos  confidentes  e  auxiliares  dedi- 
cados. 

Pareceu  á  Therezinha  que  pairava  sobre  a  paizagem  o  que 
quer  que  fosse  de  tristeza  estranha. 

A  pobre  rapariga  estava  vendo  a  natureza  através  da  sua 
alma. 

EUa  bem  sabia  o  que  se  planeava  na  quinta  da  Palmeira, 
e  que  se  preparavam  acontecimentos  que  alguma  hora  estala- 
riam de  súbito. 

A  paizagem  era  tao  bella  e  tranquilla  como  sempre  fora. 
Os  casaes  brancos  esmaltavam  sorridentes  a  verdura  da  vege- 
tação frondosa,  pelas  duas  encostas  dos  outeiros  que  formam 
o  pequeno  valle  do  Sanguinhêdo.  D'esses  alegres  casaes  ad- 
viera  o  nome  á  povoação:  Villa  Alva  ou  Villalva.  Do  Alto  do 
Pedro,  um  dos  outeiros,  vem  a  aldeã  descendo,  graciosamente 
disposta,  até  ao  rio,  e  d'ahi  sobe  até  ao  cimo  do  Penedo,  que 
é  o  segundo  outeiro,  não  menos  povoado  e  viridente. 

O  riacho,  apezar  de  minguado  de  aguas  no  verão,  não  che- 
ga a  seccar  nunca.  Vae  deslisando  por  entre  pedregulhos  com 
mais  ou  menos  facilidade,  segundo  a  estação.  Âffluente  do  Ave, 
leva-lhe  o   seu  concurso,  que  em  todo  o  caso  é  insignificante. 

Uma  ponte  antiga,  de  granito  —  essa  resistente  e  veneran- 
da pedra  que  em  todo  o  norte  do  paiz  desafia  os  séculos  —  pre- 
vine a  hypothese,  aliás  pouco  provável,  do  Sanguinhêdo  trans- 
bordar interceptando  a  povoação. 

Toda  a  paizagem  de  Villalva  se  dulcifica  n'uma  profunda 
quietação  bucólica.  Não  se  encontra  ali  apenas  esse  ar  de  plá- 
cida resignação  que  parece  tornar  supportavel  a  vida  em  cer- 
tas aldeãs  nossas.  Não.  Ha  uma  paz  alegre,  cantante  sem  bu- 
lício, sorrindo  sem  garridice.  E'  um  trechosinho  de  Minho  que 
rivalisa  com  os  panoramas  da  Suissa,  cheios  de  luz,  de  bon- 
dade, direi  mesmo,  de  ternura  campestre. 

Não  podiam  os  olhos  de  Therezinha  ler  algum  pensamento 
triste  n'aquella  paizagem  inalteravelmente  serena  e  gentil.  A  sua 
alma,  alvoroçada  por  um  receio  intimo,  é  que  espalhava  em 
torno  de  si  uma  vaga  inquietação. 


à 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  13 


Não  obstante,  Therezinha  partiu,  mas,  durante  os  primei- 
ros passos,  nao  se  lembrou  de  cantar.  Ella  própria  estranhou 
esse  facto  e,  dominando-se  resolutamente,  metteu  por  entre  o 
pinheiral  cantando. 

Quando  chegou  a  Argemil,  parou  junto  á  ermida  da  Se- 
nhora da  Piedade. 

Ajoelhou  de  mãos  erguidas.  Mas  em  vez  de  uma,  rezou 
trez  Ave-MariaSj,  cerrando  os  olhos  n'uma  con(íentração  mais 
funda  do  que  habitualmente. 

Encontrou  os  criados  da  quinta  da  Batalha  rondando  como 
sempre  a  beira  do  rio,  mas  affigurou-se-lhe  que  estavam  em 
maior  numero  n'aquelle  dia. 

Quiz  pensar  que  tosse  illusão  sua,  para  reprimir  a  apprehen- 
são  que  tanto  a  inquietava. 

Todos  elles,  como  de  costume,  lhe  disseram  seu  madrigal, 
a  que  ella  respondeu  galantemente,  sem  denunciar  a  menor 
perturbação  de  animo. 

Bateu  as  trez  palmadas  do  estilo  e,  circumstancia  singular  f 
não  lhe  respondeu  da  outra  margem  do  Ave  o  costumado  asso- 
bio. 

Então  uma  sensação  dolorosa,  rápida  e  penetrante  como 
golpe  de  punhal,  pareceu  ferir-lhe  o  coração. 

—  Olá!  gritou  um  velho  criado  de  quinta  da  Batalha.  Te- 
mos mouro  na  costa!  Olho  alerta,  rapazes! 

Os  outros,  ouvindo  isto,  acercaram-se  d'elle,  movidos  de 
um  vivo  interesse,  anciosamente  interrogativos  no  olhar  e  no 
gesto. 

—  Pois  então  !  Acham  vocês  que  o  Manoel  barqueiro  tenha 
adormecido  agora?  Historias,  rapazes! 

Therezinha,  muito  pallida,  offegante,  alternava  o  olhar  affli- 
ctivamente  perscrutador  entre  a  margem  direita  do  rio  e  o  ho- 
mem da  Batalha  que  estava  falando. 

—  Quem  sabe  se  morreu?  disse  ella  vibrante  de  commo- 
ção. 

E  o  da  Batalha  replicou  de  prompto : 

—  A'gora  morreu  elle!  Se  tivesse  morrido  já  se  cá  sabia, 
já  t'o  tinham  vindo  dizer,  que  as  más  noticias,  cachopa,  são 
como  o  vento :  correm  muito. 

—  Então  ?  perguntaram  os  outros  homens  da  Batalha. 

—  Então?!  Pois  não  percebeis  que  não  querem  hoje  lá  a 
rapariga  1 

Therezinha  estava  cada  vez  mais  pallida.  O  seu  peito  ar- 
quejava como  um  casal  de  pombos  assustados. 

—  E  que  futura  vocemecê  que  haja  de  ser?  inquiriram 
muitas  vozes.  A  pesqueira  nova,  será? 


14  o    LOBO    DA    MA  DRAGO  A 


—  Eu  sei,  rapazes!  Mas  é  provável  que  seja...  Com  estes 
senhores  padres  cruzios  ninguém  se  entende. . .  Grandíssima 
pouca  vergonha  !  Os  nossos  padres  benedictinos  teem  o  seu 
couto  marcado  pelo  meio  do  rio  desde  o  tempo  dos  Affonsinhos. 
E'  seu;  deram-lh'o.  Nem  o  rei,  nem  Sebastião  de  Carvalho  lh'o 
podem  tirar.  Vão  estes  senhores  cruzios  da  Palmeira  e  não 
querem  que  nas  aguas  que  sSo  nossas,  e  na  terra  que  nossa  é, 
haja  pesqueira  ou  azenha  defronte  da  quinta  da  Palmeira!  Já  se 
viu  maior  desaforo?! 

—  A  pesqueira  nova  juraram  elles  demolil-a,  custe  o  que 
custar. 

—  Isso  veremos ! 

—  Dizem  que  querem  o  rio  livre,  e  que  o  hão  de  ter. 

—  Também  havemos  de  ver  isso  I 

Houve  um  momento  de  silencio,  durante  o  qual  alguns 
dos  homens  da  Batalha  olhavam  com  dolorida  sympathia  para 
a  Therezinha  de  Villalva. 

O  velho  criado  dos  benedictinos  quebrou  o  silencio  dizendo: 

—  O  tio  João  Rodrigues,  que  eu  conheci  muito  bem,  cons- 
truiu a  pesqueira  que  chámaes  nova,  por  contrato  com  os  nos- 
sos padres  de  S.  Bento.  Obrigou-se  a  pagar  foro,  e  sempre  o 
pagou.  Depois  que  morreu,  os  seus  herdeiros  sempre  o  teem 
pago  também.  Ha  negocio  mais  licito  do  que  este?  O  que  teem 
os  padres  cruzios  com  isso  ou  o  que  podem  ter?!  Mas,  rapa- 
zes, olhae  que  a  cachopa  está  estarrecida.  Vae-te  embora,  The- 
reza,  que  hoje  não  vem  a  barca  buscar-te. 

—  Estou  cheia  de  cuidado  em  meu  pae,  disse  Therezinha 
com  os  olhos  fitos  na  niargem  direita  do  rio. 

—  Não  é  só  em  teu  pae. . .  Olha  como  tu  és  fingida  !  Mas 
em  teu  pae  também  deve  ser. 

—  E  em  meu  padrinho  também,  acrescentou  ella. 

—  Sem  fallar  em  quem  nós  sabemos. .  . 

—  Bem  estou  eu  agora  para  graças!  replicou  a  linda  ca- 
chopa de  Villalva  procurando  affastar  o  assumpto. 

—  Nem  a  barca  lá  está  hoje  !  Dá  mais  que  pensar  a  falta 
da  barca  que  a  do  barqueiro. 

—  Queira   Deus  que  não  seja  doença,  nem  caso  de  morte. 

—  Não,  rapariga.  Já  te  disse,  observou  sentenciosamente 
o  velho,  que  as  más  noticias  correm  tanto  como  o  vento. 

N'isto  appareceu  por  entre  o  arvoredo  da  margem  direita, 
no  couto  da  Palmeira,  um  vulto  de  homem. 

Logo  foi  reconhecido.  Era  o  «Mafarrico  de  Guimarães> 
como  já  os  homens  da  Batalha  o  appellidavam  continuando 
uma  alcunha  que  viera  de  longe. 

Todos  os  olhares  o  seguiram  no  seu  rápido  perpassar.  The- 


o    LOBO    DA    MADRAGOA 


15 


rezinha  espreitava-o  com  uma  agudeza  de  vista,  que  só  tem  o 
lynce  e  o  amor. 

Passando  ligeiramente  n'uma  clareira  do  arvoredo,  o  «Ma- 
farrico  de  Guimarães»,  chamemos-lhe  também  assim,  deitou  a 
mao  a  um  ramo  de  arvore  e  esfolhou-o  com  presteza. 

Devia  ser  um  signal  que  Therezinha  comprehendeu,  por- 
que, após  um  momento,  disse  ella  : 


Aspecto  de  Villalva,  do  lado  do  Alto  do  Penedo 


—  Já   vejo   que   hoje   nSo   me  querem  lá.  Vou-me  embora 
com  Deus,  e  amanha  voltarei. 

Mas  estava  muito  perturbada,  como  quem  adquiriu  a  cer- 
teza de  que  se  devem  esperar  graves  acontecimentos. 
O  velho  da  Batalha  replicou-lhe : 

—  Pois  vae,  Therezinha,  que  nós  cá  ficamos,  tão  avisados 
como  tu. 

Logo  que  a  rapariga  metteu  pelo  atalho  do  pinhal  para  Ar- 
gemil,  um  dos  rapazes  exclamou  com  juvenil  estouvamento: 

—  Elle  alguma  coisa  é.  Mas  o  melhor  é  saber-se  ao  cedo 
o  que  se  ha  de  saber  ao  tarde. 


16  o    LOBO    DA    MADRAGÒA 


E  soltou  um  regougo,  muito  guttural,  o  que  quer  que  fosse 
de  apupo,  como  para  provocar  uma  resposta. 

O  velho  criado  da  Batalha  correu  para  elle,  como  para  lhe 
cortar  a  voz,  mas  era  já  tarde  :  aquelle  grito  escarninho  ec- 
coava  no  valle  do  Ave  como  o  estalar  de  uma  gargalhada  rou- 
quenha. 

A  resposta  nSo  se  fez  esperar  muito. 

Da  margem  direita  do  rio  partiu  um  tiro,  e  logo  outro. 

Os  homens  da  Batalha  replicaram  em  genitivo  de  hostili- 
dade, desfechando  as  suas  espingardas  contra  a  margem  direita, 
apontando  para  os  sitios  d'onde  os  primeiros  tiros  haviam  par- 
tido. 

Então  ninguém  podia  vêr,  n'um  lado  e  outro  do  rio,  mais 
do  que  a  scintillação  rápida  das  escorvas  e,  logo,  após  a  de- 
tonação, nuvens  de  fumo  que,  sahindo  d'entre  o  arvoredo,  su- 
biam turvando  a  limpidez  cristallina  da  manha. 

Travou-se  um  vivo  tiroteio,  que  punha  estampidos  guerrei- 
ros na  quebrada  do  rio. 

A  barca  da  Palnjeira,  que  antes  de  romper  o  dia  tinha  des- 
cido, á  socapa,  o  Ave,  aproveitou  agora  a  fumarada  da  pólvora 
e  veiu  rente  com  a  margem  esquerda  tocar  na  pesqueira 
nova. 

Quando  os  criados  da  Batalha,  empenhados  na  contenda, 
deram  por  isso,  fizeram  alguns  tiros  incertos  sobre  a  barca, 
audazmente  tripulada  por  dois  homens. 

Mas  então  as  detonações  cresciam  na  margem  direita,  para 
cobrir  a  retirada  aos  barqueiros. 

Poucos  minutos  depois,  ouviu-se  uma  explosão  formidá- 
vel, e  algumas  pedras  da  pesqueira  nova,  erguendo-se  um  mo- 
mento no  ar,  desciam  logo  para  afundar-se  com  estrondo  no 
rio,  levantando  cachões  espumantes. 

A  barca  tinha  ido  incendiar  a  mecha,  que  durante  a  noite 
havia  sido  entalada  na  pesqueira  atrevidamente  minada  pelos 
criados  dos  cruzios,   sem  que  os  da  Batalha  o  percebessem. 

Foi  á  luz  do  dia  que  os  valentes  homens  da  Palmeira  qui- 
zeram  fazer  explodir  a  pesqueira  nova,  para  maior  affronta  aos 
benedictinos. 

Apenas  esperavam  um  pretexto  para  romper  a  fuzilaria,  e 
esse  pretexto  foi-lhes  dado  pelo  estouvado  rapaz  da  Batalha,  que 
pagou  a  audácia  com  a  vida. 

E'  a  sorte  de  todos  os  revolucionários  destemidos  :  serem 
elles  mesmos  as  primeiras  victimas  da  sua  coragem. 

Não  falhou  a  regra,  ali. 

Ao  ribombo  dos  tiros  e  da  explosão  acudiram  alguns  cria- 
dos do   mosteiro  de   Santo  Thyrso,  em  soccorro  dos  seus  ca- 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  17 


maradas  da  Batalha;   e  muito   povo,  curioso,  affluia  a  uma  e 
outra  margem. 

Mas  quando  chegaram,  já  a  refrega  tinha  passado. 

A  belleza  da  manha  e  a  tranquillidade  do  rio  contrastavam 
profundamente  com  o  aspecto  ruinoso  da  pesqueira  e  com  o  al- 
voroço dos  espiritos. 

Uma  renda  de  espuma  franjava  toda  a  linha  do  açude  onde 
a  agua  saltava  cantando  e  correndo. 

Os  amieiros  e  salgueiros,  que  orlam  as  duas  margens  do 
Ave,  conservavam  imperturbáveis  a  flexão  gentil,  que  lhes 
dá  o  aspecto  de  estarem  dizendo  doces  galanteios  á  onda  es- 
quiva. 

Só  os  pássaros  não  cantavam,  porque  tinham  fugido  as- 
sustados com  o  tiroteio. 

Muitos  d'elles  foram  abrigar-se  na  insua  grande,  d'onde 
mais  tarde  regressaram  com  notável  táctica,  porque  mandaram 
primeiro  sondar  o  terreno  por  guardas  avançadas,  espiões  ala- 
dos, que  reconheceram  ter  passado  a  refrega. 

No  rio,  o  único  vestígio  evidente  da  contenda  era  o  aspe- 
cto da  pesqueira,  escalavrada  pela  explosão. 

Mas  isto  bastava  para  dar  a  entender  que  a  discórdia  en- 
tre os  cruzios  da  Palmeira  e  os  benedictinos  da  Batalha  tinha 
entrado  n'uma  nova  phase  de  irritação,  que  devia  durar  muito, 
porque,  naturalmente,  os  benedictinos  quereriam  reconstruir  a 
pesqueira,  e  os  cruzios  desmoronal-a  outra  vez. 

O  povo,  nas  duas  margens,  commentava  o  acontecimento 
com  manifesta  parcialidade  a  favor  dos  benedictinos.  O  povo  de 
Santo  Thyrso  queria  muito  ao  seu  mosteiro  e  aos  seus  frades, 
que  constituíram  o  primeiro  fundamento  da  povoação  christã. 
Até  os  habitantes  da  margem  direita^  apezar  de  próximos  visi- 
nhos  da  Palmeira,  defendiam  a  causa  dos  benedictinos  contra 
os  cruzios.  A  Batalha  era  uma  abrevia»  do  mosteiro  de  Santo 
Thyrso,  como  a  Palmeira  era  uma  «brevia»  do  mosteiro  de  Lan- 
dim. Mas  Landim  estava  longe,  bem  como  a  aldeã  a  que  dera 
origem,  ao  passo  que  o  mosteiro  de  Santo  Thyrso,  ali,  á  vis- 
ta de  todos,  erguia  as  suas  torres,  desdobrava  â  sua  fachada 
nobre  sobre  o  terreiro  da  egreja  e  debruçava  o  seu  longo  mara- 
chão sobre  a  corrente  do  Ave.  O  povo  ouvia  a  voz  dos  sinos 
do  mosteiro  e  dos  monges  benedictinos ;  recebia  os  sacramen- 
tos na  egreja  conventual,  que  frequentava;  era  aquella,  n'uma 
palavra,  a  sua  parochia.  Quanto  aos  cruzios,  tinha-os  como 
estranhos,  que  vinham  gosar  os  seus  ócios  na  quinta  da  Pal- 
meira, cuidando  menos  do  povo  que  de  si  mesmos.  Via-os 
passar,  é  certo,  de  Landim  para  a  Palmeira,  da  Palmeira  para 
Landim,   mas   não  contava  com  elles  para  nada,  ao  passo  que 

2 


18 


o    LOBO    DA   MADRAGOA 


no  mosteiro  de  Santo  Thyrso  encontrava  sempre  favor  e  pro- 
tecção. 

De  mais  a  mais  os  benedictinos  n&o  gostavam  dos  cruzios 

e  o  povo,  gostando  dos  bene- 
dictinos, tomava,  naturalmente, 
o  partido  d'elles. 

Não  havia  talvez  em  Santo 
Thyrso  senão  uma  única  pessoa 
que  via  menos  desfavoravel- 
mente os  cruzios  da  Palmeira. 

Essa  pessoa  era  a  Therezi- 
nha  de  Villalva,  mas  desculpa- 
vam-n'a,  porque  a  sua  honesta 
gracilidade  inspirava  sympathia 
a  todos,  e  porque  concorriam 
n'ella  circumstancias  especiaes 
que  a  prendiam  á  Palmeira. 

Passada  a  refrega,  o  povo 
conservou-se  em  pasmaceira 
n'uma  e  n'outra  margem  do  rio, 
olhando  para  a  pesqueira  des- 
moronada, maldizendo  dos 
cruzios,  e  exagerando  as  con- 
sequências mortíferas  do  tiro- 
teio. 

Augmentava  por  sua  conta, 
como  sempre  succede,  o  nu- 
mero das  victimas,  e  não  era 
fácil  averiguar-se  a  verdade, 
porque  os  criados  dos  benedi- 
ctinos fecharam  o  porta'»  da 
quinta  da  Batalha. 

—  Estão  a  enterrar  os  mor- 
tos, dizia  cá  fora  o  povo. 

—  E  serão  muitos? 

—  Pois  decerto.  O  fogo  durou  tanto  tempo ! 

—  Os  cruzios  também  devem  ter  apanhado  a  sua  conta! 

—  Que  o  diabo  os  leve.  P'ra  que  vem  elles  fazer  mão  bai- 
xa no  que  é  dos  outros? 

—  Ladrões ! 

—  Tal  e  qual.  O  rio  é  dos  bentos,  e  sempre  foi  desde  que 
Nosso  Senhor  o  fez. 

—  E  então  os  cruzios  querem  desfazer  o  que  Deus  fez  ! 

—  Peste  de  cruzios  ! 

Dentro  da  quinta  da  Batalha  esperava-se  que  chegasse  a 


A  Therezinha  de  Villalva 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  19 


maca,   em   que  o   morto  devia  ser  conduzido  para  a  egreja  do 
mosteiro  de  Santo  Thyrso. 

O  criado  velho  dos  bentos,  sentencioso  ancião  que  nós  já 
conhecemos,  olhava  para  o  cadáver  do  imprudente  rapaz,  e  di- 
zia em  tom  reflectido  para  o  grupo  dos  outros  criados  que  o 
rodeavam : 

—  Rapazes,  esta  briga  dos  padres  cruzios  com  os  nossos 
padres  de  S.  Bento  já  vem  de  longe,  á  conta  da  Palmeira  e  da 
Batalha,  e  agora  mais  do  que  nunca  promette  continuar.  Vós 
o  vereis,  que  tendes  mais  tempo  para  viver  do  que  eu.  Mas  eu 
já  não  vi  pouco,  e  sempre  ouvi  dizer  que  foi  uma  grande  bata- 
lha, entre  as  duas  casas,  que  deu  nome  a  este  sitio.  Pois,  infe- 
lizmente, terá  de  continuar  a  guerra,  e,  se  houver  de  correr 
mais  sangue,  peço  a  Deus  que  me  leve  antes. 

E  quedando-se  a  olhar  para  o  morto  : 

—  Pobre  rapaz!  que  tão  valente  era!  até  de  mais! 

No  meio  do  povo,  que  se  conservava  espectante  na  mar- 
gem esquerda  do  rio,  estava  a  Therezinha  de  Villalva,  transfor- 
mada dolorosamente  por  uma  angustia  enorme. 

Ella  dissera  que  voltava  para  casa,  mas  o  coração  não  lh'o 
consentiu. 

Poucos  passos  andados,  retrocedeu,  e  ficou  á  espera  dos 
acontecimentos,  cuja  gravidade  media  de  antemão. 

Assistiu  a  todo  o  tiroteio  encoberta  pelo  tronco  de  uma  ar- 
vore, sabe  Deus  com  que  anciedade. 

Quando  viu  que  nenhum  dos  barqueiros  foi  alcançado  pela 
fuzilaria,  respirou  mais  desafogadamente,  mas  ficou  ainda  com 
os  olhos  attentamente  cravados  na  margem  direita. 

Apenas  se  tirou  d'ali  quando  n'um  claro  da  quinta  da  Pal- 
meira viu  apparecer  o  «Mafarrico  de  Guimarães»,  que  parecia 
procural-a  com  o  olhar  na  margem  esquerda  entre  o  povo. 

Então  ella  avançou  alguns  passos  para  se  deixar  vêr,  e 
logo  deitou  a  correr,  desapparecendo. 

Foi  rezar  a  Nossa  Senhora  da  Piedade,  que  a  tinha  protegi- 
do, attendendo  a  sua  supplica. 


II 


Dia  de  S.  Bartholomea 


As  duas  ordens  monásticas  mais  poderosas  nu  provincia 
de  Entre-Douro-e-Minho  eram  a  dos  cónegos  regrantes  de 
Santo  Agostinho  (vulgarmente  cruzios)  e  a  dos  monges  de 
S.  Bento. 

Pôde  dizer-se,  não  obstante  a  politica  regalista  de  Sebas- 
tião José  de  Carvalho  e  Mello,  que  uns  e  outros  religiosos  conti- 
nuavam ainda  no  século  xviii  a  reinar  como  senhores  absolu- 
tos no  vasto  território  d'aquella  provincia  feracissima. 

O  povo  bem  o  sabia,  mas  contentava-se,  como  sempre 
acontece,  em  mostrar  que  á  sua  philosophia  humorística  não 
passava  despercebido  esse  facto.  Em  vez  de  formular  um  pro- 
testo ou  de  procurar  apoio  no  primeiro  ministro  da  Coroa,  o 
povo  limitava-se  a  rir  n'um  simples  dictado,  que  toda  a  gente 

repetia  : 

Os  monges  de  S.  Bento 

E  os  cónegos  de  Santo  Agostinho 

Comem  todas  as  rendas 

De  Entre-Douro-e-Minho 

O  mais  curioso  de  tudo  é  que  este  dictado  chegou  até 
nós  transmittido  pela  penna  do  próprio  chronista  dos  cónegos 
regrantes  de  Santo  Agostinho,  Frei  Nicolau  de  Santa  Maria. 

Não  se  pôde  averbar  de  suspeito  o  testemunho. 

E'  verdade  que  Frei  Nicolau  procura  dar  uma  explicação 
do  facto,  embora  não  fosse  elle  que  a  encontrasse.  Deve-se  es- 


o   LOBO    DA   MADRAGÔA  21 


te  precioso  achado  a  outro  religioso,  Frei  Jeronymo  Romão,  o 
qual  diz  que  durante  muito  tempo  nao  havia  outras  ordens 
além  dos  cruzios  e  dos  bentos,  e  que  portanto  uns  e  outros 
iam  naturalmente  deitando  a  mao  a  todas  as  egrejas,  tanto  res- 
tauradas como  edificadas  de  novo,  e  fundando  mosteiros  seus 
junto  d'ellas, 

Como  se  vê,  a  explicação  apenas  explica  que  os  bentos  e 
os  cruzios  nSo  deixavam  que  outras  ordens  pudessem  pôr  o 
pé  em  ramo  verde ;  ora  esta,  ora  aquella,  qual  das  duas  á  por- 
fia, açambarcavam  tudo. 

O  povo  não  estava  para  se  metter  em  cavallarias  altas,  de 
que  certamente  lhe  não  adviriam  maiores  benefícios  nem  favo- 
res do  que  muitos  que  já  recebia  dos  frades,  especialmente 
dos  benedictinos. 

Se  se  mettesse  a  protestar  e  fosse  attendido,  nada  lucraria 
na  partilha  do  que  se  houvesse  de  tirar  aos  filhos  de  S.  Bento 
ou  de  Santo  Agostinho  e,  ainda  por  cima,  talvez  tivesse  que 
pagar  bem  cara  a  sua  imprudência.  O  exemplo  do  motim  do 
Porto  contra  a  Companhia  dos  Vinhos  do  Alto-Douro  era 
muito  recente  e  muito  severo  para  que  pudesse  esquecer.  Os 
taberneiros  atiçaram  o  povo  contra  a  Companhia,  e  o  povo  cahiu 
no  laço,  pagando  duramente  a  sua  leviandade.  Sebastião  de 
Carvalho  mandou  uma  alçada  ao  Porto,  e  logo  desabou  sobre 
os  ingénuos  revolucionários  um  tremendo  castigo :  penna  de 
morte,  açoutes,  galés,  degredos,  o  diabo.  Nem  os  rapazes  da 
rua  escaparam,  porque  foram  condemnados  a  assistir  ás  exe- 
cuções e  a  levar  palmatoadas.  Sobre  estes  acontecimentos  ia 
apenas  decorrido  um  anno.  Ninguém  os  tinha  esquecido  ainda, 
e  o  povo  menos  que  ninguém. 

Por  sua  parte,  Sebastião  de  Carvalho  preoccupava-se 
principalmente  com  os  jesuítas  para  combater  a  sua  acção  po- 
litica, e  deixava  em  relativa  paz  as  outras  ordens  que  pensa- 
vam mais  em  si  mesmas  do  que  em  negócios  do  Estado. 

O  povo  via  tudo,  mas  não  estava  para  sacrificar-se  outra 
vez.  Repetia  o  dictado,  para  que  o  não  tomassem  por  tolo,  e  dei- 
xava correr. 

De  mais  a  mais,  o  povo^  em  Santo  Thyrso  como  em  toda 
a  parte,  dava-se  bem  com  os  benedictinos,  que  lhe  faziam  fa- 
vores, e  que  não  eram  tão  emproados  e  envaidecidos  como  os 
cónegos  regrantes  de  Santo  Agostinho. 

Estes  não  deixavam  nunca  o  seu  credito  por  mãos  alheias, 
sobretudo  depois  que  o  Papa  Pio  IV  decretou,  ao  cabo  de  uma 
longa  demanda,  que  em  todos  os  actos  públicos  os  cónegos  re- 
grantes precedessem  os  monges  de  S.  Bento. 

Os  cruzios,  nome  popular  que  em  Portugal  lhes  adveio  da 


22  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


casa-mãe  ser  o  mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coimbra,  usavam 
Dom,  ao  passo  que  na  ordem  benedictina  apenas  o  tinha  o  ab- 
bade  de  cada  convento;  orgultiavam-se  de  que  a  sua  ordem 
fosse  chronologicamenle  a  primeira  de  todas  as  outras,  a  que 
por  isso  senhoreara  durante  séculos  todo  o  governo  da  egreja 
catholica;  e  hierarchicamente  também  consideravam  a  sua  or- 
dem como  a  primeira  em  nobreza,  porque  n'ella  se  tinham  fi- 
liado pontifices,  reis,  principes,  cardeaes,  arcebispos,  bispos  e 
outra  mais  gente  illustre,  e  delia  tinham  sabido  varões  flores- 
centes em  leltras  e  virtudes,  sábios  para  o  mundo  e  santos  para 
o  céu. 

Os  cruzios  de  Portugal  relembravam  com  desvanecimento 
que  D.  Affonso  Henriques,  D.  Sancho  I  e  D.  Sancho  II  vesti- 
ram o  habito  de  cónegos  de  Santo  Agostinho,  e  que  o  chamar- 
se  a  D.  Sancho  II  o  «capello»  não  tinha  outra  razSo  senão  a 
d'elle  usar  a  sua  murça  de  cónego,  habitualmente,  até  quando 
montava  a  cavallo. 

D'aqui  veio,  por  signal,  uma  ridícula  moda:  a  de  todos  os 
fidalgos,  incluindo  os  que  não  eram  também  cónegos,  usarem 
capas  muito  curtas,  á  laia  de  murças,  para  lisonjear  o  rei. 

Vê-se  que  o  snobismo  cortezão  já  vem  de  longa  data. 

Os  filhos  de  Santo  Agostinho  tinham  habilmente  imaginado 
uma  organisação  monástica,  que  lhes  permittia  attrairem,  sem 
violência,  grande  numero  de  sujeitos. 

Dividiam-se  em  trez  categorias:  á  primeira  pertenciam  os  có- 
negos enclausurados  ou  reclusos;  á  segunda,  os  obedienciarios 
ou  irmãos  conversos,  que  podiam  ser  sacerdotes  ou  não,  e  que 
viviam  em  suas  casas  e  quintas,  fora  dos  mosteiros;  á  ultima 
classe  pertenciam  os  «terceiros»,  cuja  profissão  não  exigia  maio- 
res responsabilidades  religiosas  do  que  aquellas  que  eram  as- 
sumidas pelos  cavalleiros  de  Christo,  de  SanfYago  ou  de 
Aviz. 

Graças  a  este  processo  orgânico  estava  a  porta  aberta  para 
toda  a  gente, tendo  assim  realisação  o  dito  de  S.  Jeronymo  quando 
lembra  que  Jesus  Christo,  conservando  a  cada  homem  em  seu  es- 
tado, os  fez  a  todos  moradores  do  ceu. 

Os  cruzios  haviam  imaginado  um  ceu  na  terra  :  um  ceu 
para  elles  e  para  toda  a  outra  gente  que  fosse  por  elles. 

Com  referencia  á  ordem  benedictina,  os  cónegos  regrantes 
ainda  adduziam  mais  um  argumento  de  superioridade :  era  que 
lhe  tinham  dado  alguns  homens  que  a  foram  illustrar  brilhan- 
temente, entre  elles  alguns  pontifices  como  Leão  III  e  Leão  IV, 
que  de  cónegos  regrantes  lateranenses  passaram  a  monges  be- 
nedictinos,  e  chegaram  depois  á  cadeira  de  S.  Pedro. 

Todas  estas  circumstancias,   adjuntas  á  emulação  das  ri- 


o    LOBO    DA    MADRAGOA 


23 


quezas,  bastariam  a  explicar  a  rivalidade  existente  entre  as 
duas  ordens  monásticas  que  predominavam  na  provincia  de 
Entre-Douro-e-Minho. 

Os  cónegos  de  Landim  ou  Nandim,  como  diz  o  «Nobiliário» 


o  açude  da  Palmeira  no  rio  Ave 


do  conde  D.-  Pedro,  eram  quasi  visinhos  dos  monges  benedi- 
ctinos  de  Santo  Thyrso. 

Dom  Nicolau  de  Santa  Maria  informa  que  Landim  «está 
perto  do  rio  Ave.»  E'  um  modo  de  se  exprimir,  para  dar  a  en- 
tender que  entre  Santo  Thyrso  e  Landim  n8o  vae  grande  dis- 
tancia. Comtudo  o  leitor,  se  fizer  a  jornada  a  pé,  e  não  estiver 
habituado,  como  os  bons  minhotos,  a  papar  léguas,  sentirá  fa- 
diga. Será  mais  curial  dizer  que  uns  e  outros,  os  cruzios  de 
Landim  e  os  benedictinos  de  Santo  Thyrso,  eram  visinhos,  mas 
nSo  de  ao  pé  da  porta.  Tanto  mais  que  o  rio  Ave,  mettendo-se 
de  per  meio,  separava  as  terras  de  ambos  os  mosteiros. 

O  padre  Dom  Nicolau  informa  ainda,  n'uma  passagem  da 
«Chronica»,  que  os  seus  confrades  «visinhavam  bem»  com  os 
monges  de   Santo  Thyrso.  Apezar  do  chronista  não  gosar  de 


24  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


indiscutíveis  créditos  como  historiador,  esta  segunda  informa- 
ção pôde  acceitar-se  como  boa  em  relação  a  Sante  Tiiyrso  e 
Landim,  especialmente  no  século  XVII,  quando  o  padre  Dom 
Nicolau  escrevia, 

Mas  não  é  exacta  quanto  á  Palmeira  e  á  Batalha,  em  época 
nenhuma,  moiórmente  no  anno  de  1758. 

Ahi  os  interesses  materiaes  dos  cruzios  e  dos  benedictinos 
digladiavam-se  de  perto,  como  n'um  duello  travado  entre  a  mar- 
gem direita  e  a  margem  esquerda  do  Ave. 

Os  rendimentos  que  derivavam  da  exploração  do  rio,  taes 
eram  os  das  pesqueiras,  azenhas  e  açude,  traziam  mal  avindos 
os  cruzios  da  margem  direita  e  os  benedictinos  da  margem  es- 
querda. 

As  duas  ordens  disputavam,  frente  a  frente,  a  posse  e  usu- 
fructo  do  Ave, 

Razão  tivera  o  criado  velho  da  Batalha  para  alludir  a  cruen- 
tas luctas  antigas  entre  a  criadagem  de  uns  e  outros  religiosos, 
á  conta  d'aquelles  rendimentos;  a  tradição  diz,  efíectivamenle, 
ainda  hoje,  que  um  grave  conf!icto  armado  fora  causa  de  se  dar  o 
nome  de  «Batalha»  á  quinta  que  os  benedictinos  possuíam  quasi 
em  frente  do  couto  da  Palmeira. 

Este  couto  doara-o  aos  cruzios  do  mosteiro  de  Santa  Ma- 
ria de  Landim  Dom  Gonçalo  Rodrigues  Pereira,  fidalgo  de  li- 
nhagem, e  seus  filhos  confirmaram  collectivamente  a  doação 
no  anno  de  1177  por  escríptura  publica. 

«Era  por  aquelles  tempos,  diz  o  chronista,  o  couto  e  senho- 
rio da  Palmeira  uma  grande  cousa,  e  tão  boa  como  um  condado». 

Os  religiosos  de  uma  e  outra  ordem,  cruzios  e  benedicti- 
nos, viviam  aqui  em  constante  rivalidade,  muitas  vezes  aggra- 
vada  pela  imprudência  e  arreganho  dos  criados  de  uns  e  ou- 
tros, sobretudo  depois  que  tinha  sido  construída  a  pesqueira 
nova,  considerada  então  uma  das  mais  importantes  do  rio  Ave. 

Os  conflictos  repetiam-se  quasi  todos  os  mezes,  pois  que 
os  padres  cruzios  tinham  jurado  derrubar  a  pesqueira,  e  os  be- 
nedictinos conserval-a  como  regalia  sua. 

As  funestas  consequências  d'esses  conflictos  ficavam,  por 
conveniência  mutua,  n'uma  discreta  reserva,  que  a  uns  e 
outros  religiosos  convinha  ser  guardada. 

Quem  morria,  morria.  Sebastião  José  de  Carvalho  e  Mello 
ou  não  chegava  a  ter  conhecimento  official  d'esses  repetidos 
embates  de  hostilidade  monástica  ou  evitava  intervir  directa- 
mente em  questões  de  interesse  particular,  que  não  embaraça- 
vam os  réditos  do  thesouro  publico  ou  as  conveniências  da 
administração  geral  do  Estado. 

E  as  justiças  locaes,  que  desejavam  viver  em  paz  com  as 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  25 


duas  mais  poderosas  ordens  monásticas  da  provinda,  deixa- 
vam correr  o  marfim. 

Ainda  por  igual  motivo  o  povo,  comquanto  sympatliisasse 
mais  com  os  monges  benedictinos  do  que  com  os  cónegos  re- 
grantes, seguia  o  exemplo  das  justiças  locaes,  avisadamente 
lembrado  de  que  o  justo  paga  muitas  vezes  pelo  peccador. 

Desmoronada  com  auctorisação  ou  connivencia  dos  cru- 
zios  a  pesqueira  nova,  os  benedictinos  de  Santo  Thyrso  pensa- 
ram desde  logo,  como  era  natural,  em  reerguel-a. 

A  maioria  dos  seus  criados  e  caseiros  da  Bstalha  desejava 
que  se  levasse  o  caso  á  valentona,  fazendo-se  a  obra  em  pleno 
dia,  embora  sob  um  chuveiro  de  balas,  porque,  diziam  elles,  o 
sangue  pede  sangue  e  a  vingança  clama  vingança.  Queriam  as- 
sim desaffrontar  a  memoria  do  morto,  recente  victima  d'estas 
antigas  inimisades  fradescas. 

Mas  os  monges  benedictinos,  na  sua  maior  parte  homens 
velhos  e  reflectidos,  oppuzeram-se  a  este  plano,  reprimindo  os 
Ímpetos  bellicos  da  criadagem. 

Para  melhor  a  convencer,  argumentavam  que  a  pesqueira 
tinha  sido  minada  em  segredo  durante  noites  consecutivas^  e 
que  apenas  a  explosão  se  fizera  á  luz  do  dia. 

Convinha,  pois,  proceder  do  mesmo  modo  na  desforra. 
Fossem  pondo  pedra  sobre  pedra,  pela  calada  da  noite,  sendo 
a  pesqueira  bem  guardada  e  vigiada,  para  que  os  adversários 
não  tivessem  facilidade  de  ir  desfazendo  o  trabalho  a  pouco  e 
pouco  realisado.  E  graduasse-se  a  reconstrucção  de  modo  que 
por  occasiào  da  feira  de  S.  Bartholomeu,  quando  os  cruzios  de 
Landim  vinham  solemnemente  á  Palmeira,  estivesse  a  obra  in- 
teiramente concluída,  tendo  assim  a  desaffronta  a  mesma  ex- 
teriorisação  ruidosa  que,  á  luz  do  sol,  tivera  a  demolição  pelo 
fogo.  Era  o  mais  prudente  meio,  aconselhávamos  benedictinos, 
de  levar  a  cabo  a  empresa,  poupando  vidas  e  sangue. 

Os  criados  tiveram  de  submetter-se  á  opinião  dos  monges 
e  n'isso  foram  contrariados,  mas  de  algum  modo  os  contentou 
a  idéa  de  que,  por  occasião  da  feira  de  agosto,  os  cruzios  que 
viessem  de  Landim  veriam  reconstruída  a  pesqueira  nova. 

E  conseguiram  dos  benedictinos  que  no  dia  de  S.  Bartho- 
lomeu lhes  deixassem  solemnisar  a  conclusão  da  obra,  ador- 
nando com  flores  e  plantas  o  muro  da  pesqueira. 

Assim  aconteceu. 

O  que  vinham  fazer  os  cónegos  regrantes  de  Landim  á  sua 
quinta  da  Palmeira,  solemnemente,  no  dia  de  S.  Bartholomeu? 
perguntará  o  leitor. 

Responda  por  nós  o  chronista  da  ordem,  para  que  se  não 
imagine  que  estamos  fabulando  episódios  a  bel-prazer. 


26  o    LOBO    DA    MADBAGÔA 


Referindo-se  ao  couto  da  Palmeira,  diz  Frei  Nicolau  de 
Santa  Maria:  «e  cm  certos  dias  que  ha  feira  no  dito  couto 
(como  em  dia  do  apostolo  S.  Bartholomeu  a  24  d'agosto)  vae  o 
Prior  (de  Landim)  com  vara  alçada,  como  ouvidor  que  é  do 
couto,  assistir  nas  feiras,  e  pôr  o  preço  ás  cousas,  que  se 
nellas  vendem,  de  que  tem  certos  direitos,  que  manda  arreca- 
dar e  recolher  para  o  seu  mosteiro  de  Landim». 

Provada  assim  a  fidelidade  da  narração,  nSo  lerá  o  leitor 
duvida  em  acreditar  que  no  dia  24  de  agosto  de  1758  a  com- 
munidade  de  Landim  acompanhara  o  seu  Prior  até  ao  couto 
da  Palmeira,  para  gosar  as  distracções  que  a  feira  de  S.  Bar- 
tholomeu lhes  proporcionava  todos  os  annos. 

Os  cruzios  chegavam  logo  pela  manha,  porque,  segundo  a 
tradição,  eram  elles  que  abriam  a  feira,  visto  como  o  Prior  de 
Landim  tinha  que  tarifar  os  géneros  expostos  á  venda. 

A  sua  chegada  era  annunciada  por  foguetes,  morteiros  e  za- 
bumbas, porque  sem  todo  este  atroador  estrondo  nSo  ha  no 
Minho  festa  que  se  prese. 

A'  frente  do  cortejo  vinham  seis  tamborileiros  de  Villari- 
nho,  rufando  com  uma  agilidade  funambulesca  que  irritava  os 
ouvidos  mas  divertia  os  olhos,  porque  ao  mesmo  passo  que  ru- 
favam faziam  successivas  pantomimas  e  piruetas,  em  que  tan- 
to trabalhavam  os  braços  como  as  pernas. 

S.  Miguel  de  Villarinho,  terra  clássica  de  tamborileiros  ha- 
bilissimos,  é  uma  aldeã  que  demora  na  margem  esquerda  do 
rio  Vizella. 

Vinha  depois  o  Dom  Prior,  de  vara  alçada,  acompanhado 
pelo  juiz  do  eivei  e  almotacés,  cuja  nomeação  o  mesmo  Prior 
confirmava. 

Seguia-se  a  communidade  dos  cónegos  regrantes  vestindo 
os  seus  hábitos  talares :  batina,  sobrepeliz  e  murça  ;  na  cabe- 
ça, barrete  de  clérigo. 

Muito  povo  acompanhava  este  pomposo  cortejo,  não  tanto 
por  gostar  dos  cruzios,  como  por  gostar  de  uma  festa  de  cara- 
cter especial.  Não  era  propriamente  uma  romaria,  mas,  para  o 
effeito  de  divertir,  levava  as  mesmas  voltas.  O  povo  não  deixa- 
va nunca  de  concorer  a  estas  apparatosas  exhibições  que  re- 
presentavam symbolicamente  um  direito  senhorial ;  não  falta- 
va na  Palmeira,  como  também  não  faltava  em  S.  Mamede  de 
Coronado  quando  o  abbade  de  S.  Romão  de  Vermoim  ia  ali, 
com  todos  os  seus  criados,  bestas,  cães  e  gados,  receber  o 
feudo  de  seie  varas  de  linho  que  o  parocho  era  obrigado  a  dar- 
Ihe  annualmente. 

A  feira  alvoroçava-se  toda  para  receber  os  cruzios,  haven- 
do n'esse  momento  uma  vistosa  ondulação  de  trajes  garridos  e 


o    LOBO   DA   MADRAGOA 


27 


pittorescos,  mesclando-se  as  cores  vivazes  das  carapuças,  dos 
lenços  e  dos  guarda-soes  n'uma  espécie  de  arco-iris  flucluante, 
que  ora  avançava,  ora  retrocedia. 

O  Dom  Prior,  com  toda  a  sua  numerosa  comitiva,  parava 


Portão  da  quinta  benedictina  da  Batalha 


apenas  por  momentos  deante  de  cada  logar  de  venda  para  al- 
motaçar  os  géneros,  pura  formalidade  que  desempenhava  rapi- 
damente, e  logo  seguia  para  a  quinta  da  Palmeira,  onde  esta- 
va preparado  o  almoço,  que  era  principesco. 

Os  cruzios  morriam  por  esta  diversão,  que  lhes  proporcio- 
nava um  dia  completo  de  recreio  fora  do  mosteiro  de  Landim, 
onde  a  vida  era  monótona  e  a  povoação  tristonha.  Na  Palmei- 
ra, a  visinhança  do  rio  Ave  tornava  a  paizagem  graciosa,  e  a 
feira  de  S.  Bartholomeu  chamava  gente  e  animação. 

Durante  o  anno  havia  sempre  cruzios  na  Palmeira,  uns 
que  se  demoravam,  outros  que  iam  e  vinham  para  fazer  me- 
rendolas,  pescarias  e  caçadas.  Os  cónegos  regrantes  viviam 
como  fidalgos  que  eram  ou  apparentavam  ser. 


28  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Mas,  pelo  S.  Bartholomeu^  só  ficavam  em  Landim  os  doen- 
tes e  os  decrépitos. 

De  mais  a  mais  os  cruzios  gostavam  de  ter  occasião  de 
mostrar  aos  seus  visinhos  da  margem  esquerda,  os  bentos, 
todo  o  seu  poder  senhorial  no  couto  da  Palmeira,  onde  o 
Dom  Prior  enirava  n'aquelle  dia  de  vara  alçada,  e  de  os  en- 
surdecer com  o  estrondo  festivo  dos  foguetes,  morteiros  e  za- 
bumbas. 

Que,  diga-se  a  verdade,  a  quinta  da  Batalha,  comquanto 
a  dois  passos  do  mosteiro  de  Santo  Thyrso,  também  servia 
aos  benedictinos  para  varias  folganças  e  recreações. 

Um  viajante,  que  no  fim  do  século  xviii  percorreu  o  Minho, 
diz  que  ao  chegar  a  Santo  Thyrso  encontrou  no  caminho  o  co- 
nstado com  alguns  padres,  que  iam  fazer  um  magusto  á  quin- 
ta da  Batalha. 

Os  frades  divertiam-se  como  podiam,  mas  a  distracção  que 
eu  lhes  mais  invejo  não  era  a  de  assar  castanhas  ou  pescar  tru- 
tas, coisa  que  facilmente  posso  fazer  também :  era  o  regalo  das 
bellas  quintas,  vastas  e  umbrosas,  que  eu  nao  tenho,  nem  es- 
pero vir  a  ter. 

Isto  é  que  me  desconsola  perante  a  recordação  dos  frades. 

A  feira  de  S.  Bartholomeu  no  couto  da  Palmeira  tinha  o 
aspecto  complicado,  apezar  de  essencialmente  agrícola,  de  to- 
das as  feiras  minhotas. 

Utensílios  de  lavoira  alternavam-se  com  longos  estendaes 
de  chapéus  de  Braga,  baetas  da  Carriça,  albardas  de  Pe- 
nafiel. Tamancos  do  Porto,  alguns  de  ponta  arrebitada,  pare- 
ciam pequenos  barcos  ancorados  entre  extensos  cães  de  loiça 
negra  do  Prado.  Barracas  de  ourives  e  cutileiros  de  Guimarães 
encostavam-se  ás  brancas  tendinhas,  alfaiadas  com  toalhas  fo- 
Ihudas,  onde  lourejava  o  pão  de  ló  de  Margaride,  muito  fresco 
e  fofo.  Penduradas  de  cabides  portáteis  avultavam  as  capas  de 
palha,  a  que  lá  chamam  croças,  e  hasteados  em  toscos  iDcnga- 
leiros  enfeixavam-se  varapaus  de  ponteira  metallica,  que  pare- 
cia expedir  chispas  á  luz  do  sol. 

Havia  arquêtas  com  bugigangas  de  barro,  e  até  de  ai- 
corce,  figurando  cSes,  assobios,  corações,  monstros  humanos; 
outras  com  anneis  de  chumbo,  gaitas  de  caçador,  apitos,  na- 
valhas, novellos  de  isca,  tesouras  e  espelhinhos  redondos. 
Sobre  mesas  de  pinho,  dispostas  em  fieira,  escalonavam-se 
rumas  de  peças  de  linho,  cobertores  de  papa,  mantas  tecidas  de 
trapo,  com  que  se  cobrem  os  pastores  no  inverno  dos  montes. 

Na  secção  propriamente  agrícola,  exhíbíam-se  as  fructas 
do  tempo,  entre  elias  melancias  colossaes,  do  feitio  de  grandes 
espheroídes  d'um  verde  escuro,  retinto.  Seguíam-se  as  batatas, 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  29 


as  cebolas,  os  alhos,  as  hortaliças  de  folhas  enconchadcs.  De- 
pois alinhavam-se  os  carros  com  pipas  de  vinho,  sob  toldos  de 
panno  ou  de  ramos  verdes,  e,  ao  lado  dos  carros,  corriam  ta- 
boleiros  com  peixe  frito,  bolinhos  de  bacalhau,  broas  de  milho, 
azeitonas  cogulando  tigelas  de  barro  vidrado. 

N'um  recanto  do  couto  abairrava-se  a  feira  de  gado,  os  bois 
corpulentos,  de  pontas  altas  e  abertas  em  parenthese ;  as  vac- 
cas  pachorrentas,  de  uberes  dilatados,  pendentes  e  cheios ;  os 
vitellos  sempre  inquietos  e  gulosos,  encostando-se  á  mãe,  a 
procurar-lhe  a  teta  ;  os  burros  de  orelha  murcha,  dormitando 
n'uma  impassibilidade  resignada  ;  os  potros  felpudos,  hirsutos, 
foliões,  tentando  constantemente  desembaraçar-se  do  cabresto; 
e  numerosas  familias  suinas  em  que  os  bacorinhos  chiavam 
infantilmente  baralhando-se  uns  com  os  outros. 

De  quando  em  quando  mulheres  com  bilhas  de  agua  fresca 
rompiam,  cantando  um  pregSo  sonoro,  por  entre  a  multidão 
compacta. 

Cegos  andantes  attrahiam  grupos  de  ouvintes,  que  lhes  es- 
cutavam, attentos,  a  melopea  chorosa. 

E  arrastando  se  no  solo,  como  animaes  disformes,  homens 
apoiados  sobre  as  mãos  com  as  pernas  seccas  enclavinhadas  e 
torcidas  para  o  dorso,  perseguiam  os  transeuntes  pedindo  es- 
mola em  fabordão  :  Lembrai-vos  do  pobre  aleijadinho  pelo  amor 
de  Deus. 

Sobre  todo  este  confuso  e  revolto  aspecto  da  feira  de  S. 
Bartholomeu  pairava  n'aquelle  anno  uma  suspeita  de  graves 
acontecimentos,  que  excitava  os  ânimos  e  provocava  commen- 
tarios  discordes. 

Dizia-se  á  bocca  pequena  que  os  padres  cruzios  tinham 
resolvido  que  os  seus  criados,  com  o  auxilio  de  alguns  valen- 
tões a  soldo,  fossem,  na  presença  da  multidão,  dar  os  primei- 
ros golpes  de  camartello  na  pesqueira  nova,  para  começar  a 
desmoronal-a  mais  uma  vez. 

Este  boato  fez  que  alguns  lavradores,  prudentes  ou  tími- 
dos, abandonassem  a  feira,  com  suas  mulheres  e  filhas,  logo 
depois  de  terem  visto  a  chegada  dos  cónegos  de  Landim. 

Outros,  mais  destemidos,  habituados  ás  tremendas  zara- 
gatas das  romarias,  desejavam  que  o  boato  tivesse  realisação^ 
e  andavam  de  grupo  em  grupo  recolhendo  impressões  e  noti- 
cias sobre  o  grande  assumpto  do  dia. 

Algumas  pessoas  não  criam  que  os  padres  cruzios  qui- 
zessem  arriscar-se  a  assistir  a  essa  irritante  desforra,  que  lhes 
podia  sahir  cara. 

—  Porque  ?  perguntavam  outras  pessoas. 

—  Porque  se  isso  acontecesse,   vinha  ahi  todo  o  povo  de 


30  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Santo  Thyrso,  e  tomava  a  defesa  dos  frades  bentos.  Acabar-se- 
hia  o  mundo  aqui  hoje,  Deus  te  livre ! 

—  Também  aqui  está  muito  povo  de  Landim,  que  defen- 
deria os  padres  cruzios.  E  já  se  deixa  vêr  que  se  os  cruzios 
deitaram  abaixo  a  pesqueira,  e  os  bentos  a  mandaram  pôr  em 
pé,  os  cruzios  hao  de  querer  arrazal-a  outra  vez. 

—  Mas  então  esta  contenda  não  terá  fim  nunca  mais  !  Pode 
lá  ser ! 

—  Homem !  isto  é  como  na  bisca  lambida  :  carta  puxa  carta. 
Quem  melhor  as  tem,  melhor  as  joga. 

—  O  peior  é  que  a  corda  quebra  sempre  pelo  mais  fraco. 
Oxalá  que  o  povo  d'estes  arredores  não  venha  a  pagar  o  que 
fazem  os  frades.  Saiba-se  isto  em  Lisboa  e. . . 

N'este  momento  ouviu-se  o  tilintar  dos  machos  de  uma 
liteira. 

Todas   as  attenções  se  voltaram  de  súbito  para  esse  lado. 
Houve  quem  dissesse  entre  a  multidão  : 

—  Que  novidade  será  esta  agora?...  Alguma  alçada,  tal- 
vez . . . 

—  Mas  sem  acompanhamento  de  tropa! 

—  Quem  sabe  se  ella  não  tarda !  Pode  muito  bem  vir  den- 
tro da  liteira  o  juiz  e  o  escrivão  da  alçada. 

—  Sim,  replicou  um  camponez  chalaçando  á  conta  de  meia 
canada  de  verdasco,  que  bebera  pouco  antes,  nem  os  dragões 
da'Beira  nem  a  cavallaria  de  Chaves  cabiam  lá  dentro. 

Ondas  de  povo  affluiram  rapidamente,  umas  sobre  outras, 
frementes  de  curiosidade,  ao  encontro  da  liteira,  que  vinha  de 
Bougado  e  parou  junto  á  quinta  dos  cruzios. 

Este  facto  mais  fez  crescer  o  alvoroço  popular  e  a  suspeita 
de  que  poderia  ser  justiça  do  Porto,  que  viesse  por  ordem  de 
Sebastião  de  Carvalho  syndicar  sobre  os  últimos  acontecimen- 
tos do  rio  Ave. 

O  povo  abriu  um  largo  circulo  de  respeito,  em  torno  da 
liteira,  e  viu  apeiar-se  um  sacerdote  idoso,  de  respeitável  as- 
peito, acompanhado  por  um  mancebo  imberbe,  que  parecia  de- 
ver ser  ainda  diácono. 

Antes  mesmo  d'estes  dois  viajantes  fazerem  soar  a  sineta 
do  portão,  dois  padres  cruzios  vieram  recebel-os  com  grande 
cortezia. 

Os  camponezes  interrogavam-se  uns  aos  outros,  com  pers- 
crutadores olhares,  sobre  a  causa  da  inesperada  apparição  de 
uma  liteira,  que  conduzia  pessoas  desconhecidas. 

Mas  de  repente  houve  uma  voz  que  bradou : 

—  Ora  espera !  Ou  eu  me  engano  muito  ou  o  padre  velho 
é  o  Chantre  da  Real  CoUegiada. 


o    LOBO    DA   MADRAGOA 


31 


E  d'ahi  a  momentos,  como  se  uma  centelha  elelrica  hou- 
vesse transmittido  esta  phrase  de  grupo  em  grupo,  toda  a  gente 
dizia  na  feira  :  E'  o  Chantre  de  Guimarães,  mais  o  seu  íámulo. 

Era,  effectivamente, 

O  priorado  da  Real  Collegiada  de  Nossa  Senhora  da  Oli- 
veira da  villa  de  Guimarães  estava  vago  havia  cinco  annos,  não 
por  falta  de  despacho  real,  mas  porque  o  Dom  Prior  nomeado 
não  tinha  ido  ainda  tomar  posse  da  cadeira. 

A  nomeação  havia  recahido  na  pessoa  de  D.  José  de  Bra- 
gança,   irmão    bastardo   de   el- 
rei,  e  inquisidor  geral  do  Santo 
Officio. 

Os  altos  cargos  ecclesiasti- 
cos  de  Entre-Douro  e  Minho 
estavam  sendo  então  pingue  re- 
galia dos  filhos  naturaes  dos 
reis,  que  chamavam  a  si  as 
rendas  prelaticias  em  que  nem 
os  cruzios,  nem  os  benedictinos 
podiam  tocar. 

Um  bastardo  de  D.  Pe- 
dro 11,  também  chamado  D.  José 
de  Bragança,  fora  arcebispo 
primaz  de  Braga,  e  por  confli- 
ctos  que  tivera  com  o  cabido 
demorou  trez  annos  em  Gui- 
marães, desde  1746  a  1749, 
dando  motivo  com  a  sua  pre- 
sença a  uma  longa  serie  de  rui- 
dosas festas,  cavalhadas,  al- 
canzias,  fortilhas,  escaramuças 
e  saraus  académicos,  que  no- 
bremente alegraram  o  espirito 
dos  vimaranenses. 

Succedeu-lhe  um  bastardo 
de  el-rei  D.  João  V,  D.  Gas- 
par de  Bragança,  que,  ao  tempo 
da  nossa  narrativa,  estava  no- 
meado arcebispo,  mas  não  ti- 
nha ainda  feito  a  sua  entrada 
solemne  na  cidade  de  Braga. 

Outros  dois  bastardos  do 
mesmo  rei  ficaram  sendo  co- 
nhecidos pela  designação  popu- 
lar de   «Meninos  da  Palhavã»,  um pacUe cruzio 


32  o    LOBO    DA    MADRAfiÔA 


D.  José  e  D.  António  de  Bragança,  e  foi  um  d'elles,  D.  José, 
o  escolhido,  como  de  mais  longe  vínhamos  dizendo,  para  o 
cargo  de  Dom  Prior  da  Collegiada  de  Guimarães. 

Em  agosto  de  1758  não  tinha  tomado  posse  do  priorado, 
nem  chegou  a  tomal-a  nunca,  por  causa  do  conflicto  em  que 
trez  annos  depois  veio  a  envolver-se  com  o  conde  de  Oeiras, 
sendo  por  este  motivo  desterrado  para  o  Bussaco  com  seu  ir- 
mão D.  António. 

Quem  agora  regia  a  Collegiada  de  Guimarães,  na  ausên- 
cia do  Dpm  Prior,  era  o  Chantre,  aquelle  mesmo  sacerdote 
idoso  que  vimos  apear-se  da  liteira  ao  portão  da  quinta  dos 
cruzios. 

Não  obstante  as  apprehensões  do  povo,  a  visita  do  Chan- 
tre á  Palmeira  nada  mais  significava  do  que  um  acto  de  mera 
cortezia. 

Elle  ia  recolhendo  de  Bougado,  onde  tinha  parentes,  para 
a  sua  Collegiada  e,  de  passagem,  encontrou-se  com  a  feira 
grande  de  S.  Bartholomeu,  de  que  se  não  havia  lembrado  se- 
quer. Mas  visto  ser  o  dia  da  feira,  e  os  cónegos  de  Landim 
costumarem  passar  na  Palmeira  esse  dia,  apeiou-se  para  os 
cumprimentar  e  seguir  depois  jornada  a  Guimarães. 

O  certo  é  que  a  inesperada  visita  do  Chantre  teve  a  vanta 
gem  de  produzir  effeitos  sedativos  no  systema  nervoso  dos  cria- 
dos dos  cruzios,  e,  porventura,  dos  próprios  cruzios. 

Não  era  na  presença  de  tão  alto  dignitário  da  Real  Colle- 
giada, o  primeiro  depois  do  Dom  Prior,  que  de  novo  se  rom- 
periam as  hostilidades  entre  os  filhos  de  Santo  Agostinho  e  os 
filhos  de  S.  Bento. 

A  deferência  do  Chantre  obrigava  a  igual  cortezia  por  parte 
dos  cruzios,  que  effecti vãmente  se  mostraram  amáveis  e  reco- 
nhecidos com  o  seu  illustre  visitante  offerecendo-lhe  fructas  e 
outros  refrescos. 

Depois  levaram-n'o  a  passeiar  na  quinta,  descendo  com 
elle  até  á  beira  do  Ave,  talvez  com  o  propósito  de  que  sua  mercê 
pudesse  vêr  a  pesqueira  nova  acintosamente  engalanada  com 
flores  e  plantas. 

O  Chantre  fez  reparo  na  pesqueira  florida  e  perguntou  o 
que  era  aquillo. 

Os  cruzios  explicaram-lhe. 

Então  o  Chantre  disse  que  as  origens  do  conflicto  lhe  não 
eram  desconhecidas,  e  que  a  Guimarães  tinha  chegado  alguma 
noticia  do  ultimo  rompimento  de  hostilidades.  Aconselhou  os 
cruzios  a  evitarem  prudentemente  a  repetição  de  taes  factos, 
embora  pleiteassem  nos  tribunaes  com  os  benedictinos  o  direito 
que   uns  ou  outros  pudessem  ter  sobre  as  aguas  do  rio  Ave. 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  33 


A  occasião,  acrescentou  sua  mercê,  não  era  a  mais  própria 
para  desencadear  rivalidades  monásticas,  que  poderiam  ter  ecco 
na  corte  e  irrilal-a. 

Aqui  alludia  o  Chantre,  cautelosamente,  ao  poderio  poli- 
tico do  conde  de  Oeiras ;  por  discreto  euphemismo  empregava 
a  palavra  «corte». 

E  continuou  dizendo : 

—  O  paiz,  especialmente  a  capital,  passou  ha  poucos  an- 
nos  por  uma  horrorosa  catastrophe,  que  enlutou  todos  os  co- 
rações portuguezes.  Precisa  restabelecer-se  d'essa  profunda 
commoção;  ainda  está  doente  de  magua  A  politica  parece  não 
prometter  grandes  folgas,  nem  demasiados  ócios  a  certas  cor- 
porações... Tudo,  pois,  aconselha  prudência  ás  corporações 
e  aos  indivíduos. 

N'este  ponto  alludia  o  Chantre,  também  cautelosamente, 
aos  padres  jesuítas,  que  no  anno  anterior  haviam  sido  expul- 
sos do  Paço  por  Sebastião  de  Carvalho. 

O  Chantre  ainda  acrescentou  que  procuraria  avistar-se 
proximamente  com  algum  dignitário  do  mosteiro  de  Santo 
Thyrso  para  lhe  dar  conselho  idêntico. 

—  Não  fiar  em  criados,  concluiu  o  Chantre,  que  são  na 
terra  os  nossos  peiores  inimigos,  porque  estão  de  portas  a 
dentro  e  perscrutam  todas  as  nossas  paixões  para  exploral-as 
em  seu  proveito. 

Com  vontade  ou  sem  ella,  os  cruzios  tiveram  que  mostrar- 
se  agradecidos  por  esta  pacificadora  doutrinação  do  Chantre,  e 
prometteram  a  sua  mercê  ter  a  «maior  dose  de  prudência  pos- 
sível». 

Não  estranhe  o  leitor  que  os  padres  cruzios  de  Landim 
tratassem  por  «vossa  mercê»  o  Chantre,  porque  os  cónegos  da 
Collegiada  de  Guimarães  apenas  dez  annos  depois  receberam 
o  tratamento  de  senhoria. 

E'  certo  que  o  Chantre  estava  substituindo  o  Dom  Prior, 
mas  este  dignitário,  com  ser  o  primeiro  da  Collegiada,  apenas 
desde  1823  tem  jus  a  ser  tratado  por  excellencia. 

E,  a  respeito  de  tratamentos,  queremos  dar  uma  rápida  in- 
formação genérica,  para  que  o  leitor  não  estranhe  também  os 
que  vir  referidos  ás  diversas  personagens  d'este  romance. 

Segundo  uma  lei  extravagante  de  Filippe  II,  só  tinham  «ex- 
cellencia» os  filhos  dos  infantes,  e  duques  de  Bragança.  Os  ou- 
tros fidalgos,  ainda  que  fossem  titulares,  e  os  bispos,  eram  tra- 
tados por  «senhoria». 

D.  João  V  modificou  esta  lei  por  outra  de  29  de  janeiro  de 
1739,  em  virtude  da  qual  era  dado  a  todos  os  grandes  dignitá- 
rios, seculares  ou  ecclesiasticos,  o  tratamento  de  «excellencia.» 

3 


34  o   LOBO   DA   MADRAGOA 


De  visconde  para  baixo  usava-se  a  «senhoria,»  extensiva 
também  aos  priores  das  ordens  militares  e  aos  moços  do  Paço. 

D.  José,  por  um  alvará  de  1759,  mandou  tratar  por  «ex- 
cellencia»  os  gentis-homens  da  sua  real  camará,  ainda  que  não 
fossem  titulados,  e  os  mestres  de  campo  generaes;  por  «senho- 
ria» todos  os  ministros  que  tivessem  o  titulo  de  conselheiros,  e 
os  sargentos-móres  de  batalha. 

Comtudo  nenhuma  d'estas  leis  pôde  obstar  ao  abuso  da 
nobilitação  pelo  tratamento. 

A  pragmática  apenas  era  rigorosamente  observada  nas  gra- 
duações hierarchicas  dentro  de  certas  classes,  especialmente  na 
corte,  no  exercito,  e  nas  ordens  monásticas. 

Fora  d'estas  categorias  sociaes,  rapidamente  alastrou  a  in- 
fracção da  pragmática. 

A  breve  trecho,  quando  não  se  exerciam  actos  officiaes, 
dava-se  abusivamente  ((senhoria»  a  pessoas  que  se  recommen- 
davam  por  sua  origem,  posses  ou  valimento,  embora  legal- 
mente não  devessem  receber  senão  a  vulgarissima — «vossa 
mercê»,  tão  lusitanamente  democrática. 

Este  desmando  levou  um  poeta,  Paulino  Cabral,  com  quem 
ainda  havemos  de  travar  conhecimento  no  curso  d'esta  narra- 
tiva, a  dizer  ironicamente: 

Tudo  está  caro:  só  era  nossos  dias, 
Graças  ao  ceu !  que  temos  em  bom  preço 
Os  tremoços,  o  arroz,  e  as  «Senhorias». 

Quanto  ás  damas,  foi  geral  o  abuso  de  tratal-as  por  «se- 
nhoria», costume  que  o  mesmo  poeta  censurou  dizendo: 

Só  não  soÉFro  a  rasgada  corlezia, 
Que  faz  que  uma  villã  se  condecora, 
Chupando  «Dom»,  lambendo  «Senhoria». 

A  titulo  de  esclarecimento,  basta  isto. 

A'  despedida,  vieram  os  cruzios  acompanhar  os  dois  visi- 
tantes até  á  liteira.  Então,  n'uma  volta  do  arvoredo,  viu  o  Chan- 
tre um  rapaz  a  conversar  com  uma  rapariga,  e  reconheceu-o^ 
postoque  o  rapaz  procurasse  esquivar-se  na  sombra. 

Voltou-se  o  Chantre  e  disse  para  um  dos  cruzios: 

—  Então  está  agora  aqui  este  turbulento  e  errante  «Mafar- 
rico»?!  Eufazia-o  mais  longe,  lá  para  Traz-os-Montes.  Boas  ha 
de  ter  feito  em  verdade. . . 

O  cruzio  respondeu- lhe: 

—  E'  hospede  do  nosso  padre  Dom  Joaquim  Mariz,  e 
amigo  e  companheiro  de  seu  sobrinho  Jorge,  que  na  Palmeira 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  35 


tem  estado  a  convalescer  de  uma  grave  enfermidade.  Até  hoje 
não  temos  a  menor  razão  de  queixa  d'esse  mancebo. 

O  Chantre,  sorrindo,  disse  inclinado  ao  ouvido  do  cruzio: 

—  Ninguém  em  Guimarães  tem  saudades  d'elle.  Antes  es- 
teja aqui  do  que  lá;  e  antes  estivesse  mais  longe  do  que  na 
Palmeira.  O  tempo  dirá. . . 

A  rapariga  com  quem  o  «Mafarrico»  estava  conversando 
na  feira  era  a  Therezinha  de  Villalva. 

Pouco  depois  dizia-lhe  o  «Mafarrico»: 

—  Que  desastrada  idéa  teve  o  Chantre  de  passar  hoje  por 
aqui !  Foi  o  diabo  elle  vêr-me. . . 


III 


Encontro  do  Oeeidente  eom  o  Oriente 


Em  1729  vivia  na  rua  de  Santa  Rosa  de  Lima,  em  Gui- 
marães, uma  familia  burgueza,  cujo  chefe,  Diogo  Ferreira  da 
Silva,  negociava  em  productos  de  ourivesaria, 

Este  individuo  era  commissario  de  um  grupo  de  lavrantes 
vimaranenses  e,  n'essa  qualidade,  concorria  a  todas  as  feiras 
grandes  do  Minho. 

Assim,  á  custa  de  incessantes  trabalhos  e  incommodos, 
conseguia  sustentar  com  decência  a  sua  familia,  aliás  pouco 
numerosa. 

Era  casado  com  Jeronyma  Lobo,  a  qual  lhe  dera  apenas 
um  filho,  de  nome  António,  nascido  no  anno  seguinte.  (*) 

Jeronyma  nasceu  em  Villa  Real  de  Traz-os-Montes,  onde 
foi  honestamente  educada  por  um  fidalgo  seu  padrinho,  que 
morreu  pobre  e  era  muito  affeiçoado  ao  único  filho  que  ella  ti- 
vera, o  que  deu  causa  á  confusão  de  se  dizer,  sem  razão  algu- 
ma, que  o  pequeno  António  era  filho  illegitimo  do  fidalgo.  (*) 


(1)  O  nome  do  pae  de  António  Lobo,  bera  como  o  da  mãe,  foi  mencio- 
nado no  prefacio  ás  «Poesias»  do  filho.  O  prefacio  foi  escripto  pelo  conscien- 
cioso investigador  Innocencio  Francisco  da  Silva. 

(2)  Camillo  Castello  Branco,  «Noites  de  insomnia»,  n.°  2,  pag.  82;  «Cur- 
so de  litt.  port.»,  pag.  339. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  37 


Diogo  Ferreira  da  Silva,  geralmente  coniiecido  Entre- 
Douro-e-Minho  por  Diogo  Ferreira,  gosava  de  bons  créditos 
como  homem  honrado,  bondoso  e  trabalhador. 

Os  seus  freguezes  gostavam  muito  d'elle,  que  nao  se  mos- 
trava nunca  aborrecido  de  os  aturar. 

Sempre  que  regressava  a  Guimarães  ia  ajoujado  deencom- 
mendas,  que  elle  desempenhava  com  a  maior  pontualidade  e 
exactidão. 

As  raparigas  minhotas,  quando  queriam  comprar  ouro, 
não  se  entendiam  senão  com  Diogo  Ferreira,  que  as  attendia 
com  infinita  paciência,  mostrando-lhes  quantos  anneis,  arre- 
cadas e  cordões  levava  comsigo.  Algumas  vezes  succedia  que 
as  impertinentes  cachopas,  não  Ines  agradando  nenhum  d'es- 
ses  objectos  depois  de  demoradamente  os  terem  examinado  e 
apreçado,  pediam  ao  ourives  que  lhes  mandasse  fazer  em  Gui- 
marães um  annel  de  tal  feitio,  um  cordão  de  tal  peso,  nm  «co- 
raç&o>  de  taes  dimensões  e  lavores. 

Elle  tomava  nota  e,  na  feira  seguinte,  voltava  com  os  obje- 
ctos encommendados,  consentindo,  umas  vezes  por  outras,  que 
lhe  fossem  pagos  em  prestações. 

Teve  freguezas  que  lhe  encommendaram  arrecadas  para  o 
dia  do  casamento,  e  que  só  acabaram  de  lh'as  pagar  quando 
já  tinham  filhos  crescidos. 

Outras  caloteavam- n'o  por  má  fé,  por  terem  cabido  na  po- 
breza ou  por  se  haverem  ausentado  para  longes  terras. 

Diogo  Ferreira  não  se  enfurecia,  nem  mudava  de  systema. 
Dizia  elle  que  se  o  commercio  não  fosse  sujeito  a  falhas  e  re- 
vezes, todo  o  mundo  quereria  ser  commerciante.  Para  elle  a 
alma  do  negocio  era  a  confiança  mutua  dos  contratantes ;  a  pa- 
lavra valia  dinheiro.  Se  havia  pessoas  que  trahiam  essa  con- 
fiança, e  faltavam  á  sua  palavra,  isso  não  devia  provar  contra 
os  honrados,  mas  apenas  contra  os  caloteiros,  que  felizmente 
eram  em  menor  numero  e  que  uma  vez  experimentados  nunca 
mais  eram  cridos.  Se  ha  — dizia  elle  — quem  falsifique  a  pala- 
vra de  honra,  também  ha  quem  falsifique  o  dinheiro,  e  nem 
por  isso  ninguém  deixa  de  o  querer  receber. 

Esta  argumentação  aquilatava  a  bondade  de  Diogo  Ferrei- 
ra, que  era  homem  para,  depois  de  soffrer  qualquer  contrarie- 
dade commercial,  recomeçar  a  sua  lida  serenamente,  sem  ódios, 
nem  reservas  de  espécie  alguma. 

As  casas  nobres  de  Guimarães  chamavam-n'o  pouco,  por- 
que elle  era  um  ourives  do  povo,  não  só  pela  qualidade  dos 
objectos  que  vendia,  como  pela  própria  apresentação  burgueza 
da  sua  pessoa  e  pelo  seu  trato  bonacheirão.  Se  alguma  vez  en- 
trava n'essas  casas,  onde  a  tradição  do  sangue  wisigothico  ah- 


38  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


mentava  a  prosápia  de  illustres  famílias,  não  era  para  vender 
aos  amos,  mas  aos  criados. 

Onde  melhor  se  evidenciava  ainda  a  boa  Índole  de  Diogo 
Ferreira  era  dentro  da  sua  própria  casa. 

A  mulher,  Jeronyma  Lobo,  creatura  franzina,  sempre  mais 
ou  menos  adoentada  depois  do  laborioso  parto  do  seu  unigé- 
nito, vivia  rodeada  de  mimos  e  cuidados  que  lhe  prodigalisava 
o  marido. 

—  Eu  não  quero  que  te  falte  nada,  dizia-lhe  a  toda  a  hora 
Diogo  Ferreira.  Para  te  ter  estimada  é  que  eu  trabalho  sem- 
pre. Tu  podes  menos  que  eu,  por  isso  sou  eu  que  devo  traba- 
lhar mais.  O  casamento  é  uma  sociedade  de  auxilio  mutuo : 
quando  um  dos  sócios  fraqueja,  o  outro  deve  amparal-o.  Go- 
me, dorme,  paseia,  olha  pelo  rapaz  e  não  penses  em  mais  na- 
da. Aqui  ha  um  só  para  trabalhar :  sou  eu. 

Esta  doutrina  peccava  por  demasiadamente  affectuosa, 
porque  o  filho,  ouvindo-a  constantemente,  ia-a  tomando  ao  pé 
da  lettra,  o  que  constituía  um  perigo,  tanto  maior  quanto  eram 
especiaes  as  circumstancias  em  que  se  organisára  a  família  da 
rua  de  Santa  Rosa  de  Lima. 

O  pae  andava  quasí  sempre  ausente,  em  grandes  cami- 
nhadas para  feiras  distantes.  A  mãe,  fraca  e  doente,  concen- 
trava-se  enternecida  no  amor  ao  filho,  sempre  tolerante  e  indul- 
gente com  elle.  O  rapaz  folgava  protegido  de  uma  parte  pela 
doutrina  paterna  «Aqui  ha  um  só  para  trabalhar»,  e  de  outra 
parte  pela  excessiva  ternura  da  mãe,  que  procurava  adivinhar- 
Ihe  todos  os  pensamentos  para  satisfnzer-lh'os  carinhosamente. 

Pôde  dizer-se  que  a  infância  de  António  Lobo  de  Carvalho 
decorreu  na  rua,  ás  soltas,  como  um  novilho  na  lezíria.  Se  en- 
trava em  casa  era  para  comer,  para  que  a  mãe  lhe  concertasse  o 
fato  rasgado  em  frequentes  bulhas  com  outros  rapazes  ou  para 
que  lhe  desse  dinheiro  que  elle  ia  applícar  em  gulodices,  espe- 
cialmente marmelada  e  rebuçados. 

O  pequeno  fez-se  brigão,  altaneiro,  tinha  respostas  atrevi- 
das, picantes  de  salgada  graça,  com  que  ás  vezes  offendía  os 
visinhos,  á  conta  de  repetidos  conflictos  com  os  filhos  d'elles. 

Queixava-se  a  visinhança,  e  Jeronyma  Lobo  respondia  dan- 
do-lhe  satisfação : 

—  Desculpem.  Isto  é  sarampo  da  idade,  e  eu  não  tenho 
outro  filho.  Por  causa  d'elle  fiquei  um  pellém,  e  não  me  quei- 
xo. Quando  elle  causar  algum  prejuízo,  eu  o  pagarei.  Com  os 
visinhos  não  quero  questões,  nem  eu  nem  o  meu  Diogo. 

Os  visinhos,  está  claro,  censuravam-n'a  severamente,  logo 
que  ella  voltava  costas  : 

—  Anda  o  pobre  do  homem  a  trabalhar  como  um  mouro, 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  39 


para  esta  creatura  deixar  ir  a  casa  pela  agua  abaixo,  babando- 
se  a  olhar  para  o  filho,  que  se  está  fazendo  um  mariolSo  de 
marca,  e  que  ella  amimalha  com  paparicos,  meu  santo  Antoni- 
nho  onde  te  porei  1  Forte  lesma  1 

A's  vezes  perguntava  alguém  ao  rapaz : 

—  Então  que  vida  queres  tu  seguir? 
E  elle  respondia  sorrindo  : 

—  Não  sei. 

—  Não  sabes?!  Mas  deves  saber  que  precisas  de  traba- 
lhar. 

—  O  meu  pae  diz  que  lá  em  casa  quem  trabalha  é  só  elle. 

—  Tão  tolo  és  tu  como  o  teu  pae. 

O  padre  frei  Salvador  da  Guia,  guardião  do  convento  de 
S.  Francisco  e  padrinho  de  António,  apertava  com  o  rapaz 
para  que  estudasse,  por  lhe  reconhecer  agudeza  de  entendi- 
mento. Quando  o  afilhado  o  ia  visitar,  por  ordem  do  pai,  frei 
Salvador  reprehendia-o  acremente  pela  sua  incúria  e  desleixo, 
no  que  muitas  vezes  era  secundado  por  outros  franciscanos 
que,  por  deferência  ao  guardião,  procuravam  attrahir  o  peque- 
no ás  aulas  do  convento. 

António  Lobo  fugia  dos  frades,  azoinado,  sedento  do  ar  e 
da  luz  da  rua,  aborrecido  do  padrinho  e  dos  outros  religiosos, 
negros  no  habito  e  caliginosos  na  severidade  das  reprimendas. 

Aos  quinze  annos  não  tinha  escolhido  ainda  profissão  ne- 
nhuma, e  apenas  sabia  lôr,  escrever  e  contar,  mais  por  intuição 
penetrante,  que  por  applicação  ao  estudo. 

Uma  vez  perguntou-lhe  o  pae  com  a  sua  habitual  brandura 
se  definitivamente  resolvia  não  estudar. 

—  A's  aulas  do  convento  de  S.  Francisco,  respondeu  o  ra- 
paz, não  quero  ir.  Mas  se  vossemecê  faz  gosto,  mande-me  para 
Coimbra. 

O  pai  pegou-lhe  na  palavra,  e  António  Lobo  partiu  com 
dinheiro  de  sobra. 

Esteve  seis  mezes  em  Coimbra,  onde  frequentou,  irregu- 
larmente, as  cadeiras  de  latim  e  francez  no  Collegio  das  Artes. 

Foi  ahi  seu  condiscípulo  um  rapaz  chamado  João  Dias 
Talaia,  que  teremos  occasião  de  conhecer  mais  de  perto. 

António  Lobo  voltou  a  Guimarães,  dizendo  ao  pae  que  não 
podia  entender-se  com  os  jesuítas  nem  atural-os. 

O  pae  não  o  contrariou  e  a  mãe  achou-lhe  graça. 

António  Lobo,  comquanto  rebelde  a  uma  regular  applica- 
ção litteraria,  revelava  gosto  pelas  lettras  e  sobretudo  raras 
faculdades  de  improvisação  poética.  Glosava  motes  que  os  ou- 
tros rapazes  lhe  davam,  e  escrevia  cartas  de  namoro  a  pedido 
dos  interessados  que  lh'as  pagavam  em  metal,  quando  as  não 


40  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


escrevia  de  conta  própria,  com  a  mira  posta  em  diíTerente  gé- 
nero de  recompensa. 

Madrugaram  em  António  Lobo  os  instinctos  amorosos,  de 
par  com  a  veia  poética,  mas  é  de  notar  que,  na  poesia  e  no 
amor,  não  propendia  aos  arrebatamentos  lyricos,  aliás  próprios 
da  sua  edade^  nem  aos  devaneios  bucólicos,  peculiares  aos 
poetas  do  Minho,  antes  se  inclinava  para  a  malicia  gaiata,  para 
a  jocosidade  satyrica,  e  para  o  epigramma  pessoalmente  aggres- 
sivo. 

A  sua  lyra  era  quasi  sempre  cáustica  ou  desgrenhada,  e 
os  seus  companheiros  predilectos  pertenciam  ao  numero  dos 
rapazes  que,  como  elle,  não  queriam  soffrer  nenhum  jugo, 
principalmente  o  do  trabalho. 

Pouco  depois  de  António  Lobo  completar  dezesete  annos, 
morreu-lhe  a  mãe.  Este  acontecimento  foi-lhe  mais  prejudicial 
do  que  seria  licito  suppor  em  face  da  tolerância  nimiamente  ca- 
rinhosa com  que  ella  o  amimava,  comprazendo  com  todas  as  suas 
prodigalidades  e  caprichos.  (*) 

Durante  as  frequentes  ausências  de  Diogo  Ferreira,  o  ra- 
paz não  tinha  familia  que  o  prendesse,  ainda  que  por  pouco  tempo, 
á  casa  paterna.  Fizera-se  mais  vadio  e  tunante,  mais  altaneiro 
e  brigão  O  padrinho  começara  a  julgal-o  perdido,  e  mostrava-se 
magoado  da  hostilidade  que,  em  estreias  poéticas  já  vulgarisa- 
das  entre  o  povo,  o  seu  afilhado  manifestava  contra  todos  os 
padres,  sem  poupar  sequer  a  ordem  de  S.  Francisco. 

Diogo  Ferreira  ficou  moralmente  abalado  com  a  morte  da 
mulher.  As  longas  ausências  d'elle  tinham  contribuído  para  lhe 
tornar  a  casa  e  a  familia  mais  agradáveis  no  regresso.  Achava 
sensações  novas,  quando  voltava.  A  mulher  contava-lhe  alguma 
diabrura  do  filho  e  elle,  sempre  bonacheirão,  sorria  dizendo  : 
«Tem  o  demo  no  corpo»  e  concluía  desculpando :  «E'  da 
idade;  ha  de  pagar  o  seu  tributo.»  Farto  de  viver  por  estala- 
gens do  Minho,  chegava  a  achar  um  patriarchal  encanto  em 
sentar-se  á  sua  mesa  e  dormir  no  seu  leito.  Não  reparava  em 
que  o  amanho  da  casa  fosse  um  pouco  descuidado ;  era  a  sua 
casa,  boa  ou  má,  e  tanto  bastava  para  lhe  agradar. 

Quando  Jeronyma  Lobo  falleceu,  o  ourives  de  Guimarães 


(')  «A  mãe  do  poeta  (António  Lobo)  era  remediada  de  bens  de  fortuna, 
e  quanto  tinha  quanto  deu  ao  estouvado  filho,  que  nunca  procurou  modo  de 
vida.»  Camillo  Castello  Branco,  «Noites  de  insomnia,»  n.°  2,  pag.  84.  No 
«Curso  de  litt.  port.»,  pag.  341,  suppõe  Camillo  que  a  mãe  de  Lobo  viveu 
mais  tempo,  e  amparava  o  filho  com  uma  mezada.  Isto  é  tão  infundado  como 
dizer  que  elle  «não  bajulou  os  grandes,  à  imitação  dos  vates  do  seu  tempo.» 
As  suas  poesias  provam  o  contrario,  salva  uma  ou  outra  excepção. 


o   LOBO   DA   MA  DRAGO  A 


41 


sentiu  o  desmoronar  da  velhice.  Até  ahi  não  tinha  pensado 
n'isso;  trabalhara  sempre  sem  dar  peso  á  noção  do  tempo. 
Mas  agora  a  morte  entrara  no  seu  lar  e  levara-lhe  a  compa- 
nheira de  muitos  annos :  a  sua  vida  d'elle  já  não  podia  ser 
longa,  nem  inteiramente  feliz.  Principiava  a  ruina  e  Diogo  Fer- 
reira, ouvindo  a  voz  da  experiência,  sabia  que  o  luto  chama 
o  luto;  por  isso  é  que,  na  vida  das  famílias,  os  acontecimentos 
tristes  vem  ás  series. 

Sentindo  a  perda  da  mulher,  começou  a  amar  ainda  mais 
o  filho.   A  sua  existência  tinha-se  firmado  em  dois  pontos  de 


Castello  do  conde  D.  Henrique  em  Guimarães 


apoio ;  como  lhe  faltasse  um,  reforçava  o  outro.  E  uma  certa 
cobardia,  que  até  então  não  experimentara  nunca,  entibiou  o 
seu  animo  para  as  grandes  jornadas  e  para  as  grandes  ausên- 
cias. Deixou  de  concorrer  ás  feiras  distantes  e  apenas  ia  ás 
mais  próximas.  Mas  este  novo  teor  de  vida  não  lhe  trouxe  pre- 
juisps  graves,  porque  as  raparigas  do  Alto  Minho  faziam-lhe 
encommendas  de  ouro  pelo  correio,  mandando  dizer  o  que 
queriam  e  como  queriam,  questão  de  feitio,  questão  de  peso. 
È  ás  vezes  até,  depois  de  muitas  explicações,  mandavam  tos- 
cos desenhos  de  corações  e  arrecadas,  que  elle  entendia  opti- 
mamente, e  os  lavrantes  também. 

Tomou  um  recoveiro  de  confiança  que  ia  levar  as  encom- 
mendas e  receber  o  dinheiro.  E  assim,  sahindo  apenas  para 
terras  visinhas,  conseguiu  conservar  a  sua  freguezia  e  equili- 
brar o  seu  negocio. 

Tinha  creado  bom  nome,  e  continuava  a  viver  á  sombra 
d'elle.  Dizia  o  povo  de  todo  o  Minho:  «Não  ha  melhor  ourives 


42  o    LOBO    DA    MADRAGÒA 


que  o  Diogo  de  Guimarães.»  Podiam  apparecer  nas  feiras  novos 
ourives,  talvez  com  melhor  sortimento,  mas  Diogo  Ferreira 
não  esquecia  nunca. 

Juntara  um  modesto  pecúlio  de  dez  mil  cruzados,  á  foi-ça 
de  economias,  e  de  mau  passadio  nas  estalagens  do  Minho. 
Dizia  elle  que  todo  o  chefe  de  familia  deve  attender  mais  ao 
futuro  que  ao  presente,  porque  do  presente  é  elle  próprio  uma 
garantia,  e  o  futuro  só  a  Deus  pertence.  De  mais  a  mais  lem- 
brava-se  de  que  a  mulher  era  fraca,  doente,  e  não  podia  traba- 
lhar; de  que  o  filho  era  muito  novo  ainda  para  tomar  a  vida  a 
serio.  Por  isso  tinha  elle  trabalhado  sempre,  como  um  negro, 
só  elle,  sempre  elle,  unicamente  elle. 

Por  morte  de  Jeronyma  Lobo,  o  juiz  dos  orphãos  de  Gui- 
marães mandou,  nos  termos  da  «Ordenação»,  notificar  a  Diogo 
Ferreira  a  obrigação  de  proceder  a  inventario  de  todos  os  bens 
moveis  e  de  raiz,  visto  que  o  filho  era  menor  de  25  annos. 

O  velho,  que  nunca  tratara  negócios  de  justiça,  assus- 
tou-se  com  a  perspectiva  de  ter  que  se  aproximar  d'ella, 
para  inventariar,  além  de  o  desgostar  a  idéa  de  vir  a  saber-se 
a  quanto  montavam  os  seus  haveres,  o  que  constituía  um  deli- 
cioso segredo  da  sua  alma. 

Entendia  Diogo  Ferreira  que  d'esse  modo  se  quebraria  todo 
o  encanto  da  agradável  surpreza  posthuma  que  elle  reservava 
ao  filho,  e  também  receiou  algum  tanto  que  o  rapaz  se  desvai- 
rasse por  caminhos  ruinosos  quando  soubesse  que  havia  de 
herdar  dez  mil  cruzados. 

A  fim  de  evitar  a  acção  da  justiça,  e  por  saber  de  outiva 
que  o  casamento  importava  a  emancipação  legal,  chegou  a  per- 
guntar ao  filho  se  queria  casar. 

António  Lobo  riu  muito  d'esta  pergunta  ingénua  do  pae. 

—  Eu  casar!  Deus  me  livre!  E'  muito  cedo,  e  parece-me 
que  não  tenho  inclinação  para  esse  estado. 

—  Que  é  o  mais  agradável  a  Deus,  replicou  o  velho,  por- 
que a  egreja  o  abençoa  e  protege. 

E  o  rapaz  replicou  continuando  a  sorrir  ironicamente: 

—  A  benção  lança-m'a  vossemecê  todos  os  dias,  e  o  meu 
padrinho  também,  quando  o  vou  visitar. 

—  O  que  bem  poucas  vezes  é.  Mas  emfim,  rapaz,  se  não 
tens  por  ora  inclinação  para  casar,  não  cases.  O  casamento  e 
a  mortalha  no  céo  se  talha.  Será  quando  Deus  quizer. 

Depois  Diogo  Ferreira  explicou  ao  filho  o  que  pôde  explicar- 
Ihe  sobre  a  sua  repugnância  em  entender-se  com  o  juiz  e  es- 
crivão dos  orphãos  por  causa  do  inventario. 

— Que  n'este  negocio,  disse  elle,  ha  ainda  uma  questão 
mais  grave. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  43 


—  Qual  é?  perguntou  António  Lobo. 

—  A  da  minha  morte,  se  tu  ficares  de  menor  idade.  Ha 
de  haver  curadoria  de  pessoa  estranha,  visto  que  nc\o  temos 
parentes  nenhuns. 

—  Vossemecê  está  ainda  muito  rijo  e  sao. 

Isto  disse  António  Lobo  um  pouco  preoceupado,  subita- 
mente, com  a  idéa  de  uma  tutella,  idéa  que  por  ser  nova  na 
sua  vida  lhe  desagradava,  nem  de  mais  a  mais  quadrava  á  sua 
Índole  e  educação. 

E  lembrou-se  nSo  só  de  que  a  um  rapaz  seu  amigo,  orphao 
de  pae  e  mãe,  tinha  o  tutor  obrigado  a  aprender  um  officio  me- 
cânico, mas  também  de  que  se  o  tutor  fosse  o  seu  padrinho, 
frei  Salvador  da  Guia,  teria  de  viver  uma  vida  muito  aper- 
reada, n'um  regimen  disciplinarmente  severo. 

N'isto  se  enganava  António  Lobo  porque,  segundo  o  di- 
reito das  aOrdenações»,  os  religiosos  não  podiam  ser  tutores 
de  orphãos. 

Diogo  Ferreira  contestou  dizendo : 

—  Velho  é  que  eu  estou,  e  quem  está  velho  está  mais  pró- 
ximo da  morte  que  da  vida. 

Continuaram  a  conversar  sobre  o  assumpto  e  combinaram 
por  fim  ir  consultar  um  lettrado  que  morava  na  rua  de  Payo 
Galvão. 

Foram.  O  jurisconsulto  disse  a  Diogo  Ferreira  que  se  elle 
queria  poupar-se  a  trabalhos  de  justiça  e  n'esse  mesmo  sentido 
dispor  o  futuro,  havia  um  meio  a  seguir,  porque  as  «Ordena- 
ções do  Reino»  eram  muitas  vezes  como  a  mordedura  do  cão, 
que  se  cura  com  o  pêllo  do  mesmo  cão.  Também  havia  pêllo 
curativo  nas  «Ordenações»,  e  vinha  a  ser  a  faculdade  de  impe- 
trar carta  de  «supplimento  de  idade,  que  commiimmente  se  cha- 
ma de  emancipação. 

E  acrescentou  doutoralmente,  de  cór  como  um  papagaio: 

—  «Ordenações  Filippinas»,  livro  3.°,  titulo  9.°,  paragra- 
pho  3.° 

O  conselho  sorriu  a  António  Lobo,  e  não  desagradou  ao 
pae  por  ser  remédio  radical. 

Mas  o  lettrado  aguou  algum  tanto  esta  boa  impressão 
acrescentando : 

—  Ora  agora,  vossemecê,  sr.  Diogo,  verá  se  lhe  convém  ou 
não  emancipar  seu  filho.  Que  idade  tem  elle? 

—  Vae  em  dezoito  annos. 

—  Uma  creança  !  E  tenho  ouvido  dizer  que  é  um  pouco  tur- 
bulento. Será  assim,  meu  rapaz?  E  também  que  faz  versos  de 
mal  dizer? 

António  Lobo  illudiu  a  pergunta,  replicando: 


o    LOBO   DA   MADRAGOA 


—  Versos  faço  eu,  sr.  doutor,  que  tenho  para  isso  alguma 
queda,  mas  os  versos  nBo  são  delictos. 

—  Rapazes!  rapazes!  exclamou  bondosamente  Diogo  Fer- 
reira. 

—  Que  eu  não  tenho  nada  com  isso,  continuou  o  lettrado. 
Expuz  os  termos  da  questão,  que  foi  o  que  vossemecê,  sr.  Dio- 
go, me  pediu.  Agora  o  resto  é  comsigo ;  procederá  como  enten- 
der e  quizer. 

O  velho  esteve  algum  tempo  calado,  instantes  apenas,  e 
depois  disse : 

—  Olhe,  sr.  doutor,  a  boa  ou  má  cabeça  nasce  com  as  pes- 
soas, tanto  importa  que  ellas  se  governem  ou  desgovernem  ao 
tarde  como  ao  cedo.  O  meu  íilho  ha  de  ser  o  que  estiver  escri- 
pto  no  seu  destino.  O  que  eu  lhe  deixo,  é  d'elle,  e  só  d'elle. 
Pouco  é,  mas  se  o  gastar  depressa,  peior  para  elle,  que  ficará 
sem  nada.  Inventario  por  morte  da  mSe,  inventario  pela  minha 
morte,  que  nfto  pôde  vir  longe,  escrivão  no  caso,  juiz  a  assi- 
gnar  feitos,  e  contas  de  tutor...  nada!  é  muita  calamidade 
junta.  Prefiro  emancipar  o  rapaz,  e  já.  Emquanto  eu  fôr  vivo 
irei  ao  leme,  que  elle  ha  de  attender-me  e  respeitar-me,  porque 
sou  seu  pae.  Depois  de  eu  fechar  o  olho,  se  o  rapaz  naufragar, 
que  Deus  Nosso  Senhor  lhe  acuda,  porque  eu  já  nSo  poderei. 

Ficou  pois  assente  requerer  carta  de  emancipação  para 
obstar  a  presentes  e  futuras  formalidades  judiciaes. 

O  que  é  certo  é  que  Diogo  Ferreira  não  teve  razão  para 
arrepender-se  durante  os  dezesete  mezes  que  ainda  viveu. 

Um  dia,  ao  regressar  de  uma  feira  pouco  distante,  a  de 
Famalicão,  como  apanhasse  um  resfriamento  no  caminho,  foi 
atacado  de  hermeplegia. 

António  Lobo  acudiu-lhe  solicitamente,  chamou  o  melhor 
cirurgião  de  Guimarães,  e  foi  ao  convento  de  S.  Francisco  pe- 
dir a  frei  Salvador  da  Guia  que  lhe  indicasse  um  homem  bom 
para  servir  de  enfermeiro  ao  pae. 

Não  deixava,  é  certo,  de  ter  as  suas  rapaziadas,  de  andar 
por  fora  grande  parte  do  dia  e  da  noite,  mas  quando  chegava  a 
casa  rodeiava  o  pae  de  attenções  e  caricias. 

Diogo  Ferreira  mostrava-se  satisfeito  com  o  procedimento 
do  filho  e,  se  algum  visinho  lhe  notava  que  António  Lobo  o 
acompanhasse  pouco,  respondia  articulando  algumas  palavras 
com  difíiculdade  : 

—  Eile  não  é  uma  menina  que  não  possa  sahir  á  rua.  Tem 
os  seus  divertimentos  de  rapaz,  e  isso  é  próprio  da  idade.  Mas 
não  me  falta  com  cuidados,  e  arranjou-me  um  bom  enfermeiro. 
Quer  que  lhe  diga  uma  cousa?  Os  rapazes  estróinas  são  os  de 
melhor  coração.  Dos  moscas-mortas  não  gostei  nunca.  Pare- 


o    LOBO    DA    MADRAGÒA  45 


cem-se  com  os  gatos.  Cuida  a  gente  que  estão  a  dormir  e  elles 
de  repente  dão  um  salto  para  arranhar. 

Contente  do  procedimento  do  filho,  tinha  sempre  a  gaveta 
aberta. 

Dizia-lhe  muitas  vezes : 

—  Rapaz!  queres  dinheiro? 

Um  dia,  em  que  António  Lobo  se  demorou  a  afagal-o, 
Diogo  Ferreira  fez-lhe  esta  confidencia : 

—  Temos  estado  a  gastar  os  meus  lucros  dos  últimos  tem- 
pos. Mas  não  te  afflijas  por  isso.  Eu  não  devo  nada  a  ninguém, 
e  tenho  ali,  no  fundo  da  arca,  uns  dez  mil  cruzados,  que  para 
ti  hão  de  ser.  Vê  se  os  poupas,  que  sempre  é  bom  contar  a 
gente  com  algum  pé  de  meia  para  o  que  der  e  vier. 

António  Lobo  não  tinha  tido  prodigalidades  de  dinheiro. 
Dava-se  a  amores  fáceis  e  baratos.  A  vida  de  um  rapaz  em 
Guimarães  era  pouco  dispendiosa,  porque  as  raparigas  vimara- 
nenses não  alimentavam  ambições  exageradas.  De  mais  a  mais 
o  filho  do  ourives  dispunha  de  recursos  de  espirito,  que  enfei- 
tiçam as  mulheres,  ainda  que  sejam  broncas  :  tinha  graça,  ma- 
ledicência e  audácia.  Por  isso  a  fortuna  o  ajudava.  E  ainda  por 
cima  era  valente,  possante  como  lá  se  diz,  circumstancia  que  as 
mulheres  do  campo  apreciam  grandemente,  porque^  sendo  ellas 
mesmas  muito  fortes  e  robustas,  respeitam  a  superioridade  do 
homem  que  o  fôr  ainda  mais  do  que  ellas. 

Havia  no  caracter  d'este  rapaz  estróina  alguma  coisa  que, 
effectivamente,  inspira^C^a  sympathia.  Era  nobre  com  as  rapari- 
gas que  se  lhe  entregavam :  não  lhes  fazia  falsas  promessas 
para  conquistal-as. 

As  solicitações  galantes  de  António  Lobo  não  envolviam 
nunca  a  responsabilidade  de  um  compromisso  ou  de  um  per- 
júrio. 

Nenhuma  cachopa  de  Guimarães  podia  dizer  que  elle  lhe 
promettesse  casamento  e  que  negasse  a  promessa. 

Nem  jamais  se  ouviu  contar  que  o  filho  do  ourives  inves- 
tisse com  a  virtude  para  ter  o  mau  prazer  de  desfolhal-a  bru- 
talmente. «Eu  sou  como  os  mendigos,  dizia  elle  com  jovial 
franqueza  :  colho  no  caminho  as  uvas  que  toda  a  gente  pôde 
colher  por  estarem  baixas.  As  altas  deixo-as  em  paz,  e  vou 
andando.» 

Quando  alguém  ia  dizer  a  Diogo  Ferreira  que  o  filho  fazia 
vida  de  conquistador,  o  ourives  replicava  com  bonhomia : 

—  Ou  as  cachopas  são  muito  doudas  ou  o  rapaz  é  muito 
feliz,  porque  até  agora  nenhuma  se  me  queixou  d'elle.  E  se  ellas 
não  se  queixam,  que  restituição  tem  elle  a  pagar?  Case-se 
muito  embora  quando  quizer,  que  eu  até  já  uma  vez  lhe  fallei 


46 


o    LOBO    DA    MADRAGOA 


n'isso,  mas  o  rapaz  é  como  os  pássaros  :  pousa  aqui,  canta 
acolá,  e  bate  as  azas.  As  raparigas  de  Guimarães  não  ouviam 
isto,  mas,  ainda  que  o  ouvissem,  não  teriam  que  responder. 

Pôde  ser  pouco  lisonjeiro  para  a  memoria  d'ellas,  mas  é 
verdade  e  justiça. 

Pousa  aqui,  canta  acolá,  dissera   Diogo  Ferreira,  e  uma 


Eeal  CoUeadada  da  Oliveira  em  Guimarães 


occasião  chegou  em  que  o  filho  do  ourives  deixou  desgostosas 
as  suas  patrícias  vimaranenses,  justamente  pela  inconstância 
do  pouso  e  do  canto. 

Passou  em  Guimarães,  hospedando  se  n'uma  estalagem  do 
Campo  do  Toural,  uma  rapariga  que,  posto  vestisse  á  europea, 
parecia  chineza  :  era  pequenina,  tinha  os  olhos  talhados  em 
amêndoa,  e  uma  pallidez  docemente  mongolica. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  47 


Tão  estranha  apparição  deu  rebate  em  toda  a  villa,  des- 
pertando, especialmente,  a  curiosidade  dos  rapazes  mais  avan- 
tajados em  conquistas  amorosas. 

A  rapariga  viajava  só  e  o  povo,  logo  que  a  viu,  começou  a 
dizer  que  era  uma  «china». 

O  seu  sorriso  um  pouco  provocante  denunciava  facilidade 
de  costumes,  e  o  facto  de  viajar  sósinha  auctorisava  a  julgar 
que  a  denuncia  do  sorriso  era  verdadeira  e  calculada. 

Os  fidalgos  de  Guimarães,  alvoroçados  com  esta  apparição 
picante,  começaram  a  fazer  curvetear  os  seus  cavallos  deante 
da  modesta  estalagem  do  Campo  do  Toural,  para  attrahir  a 
«chineza»  á  janella. 

António  Lobo  viu  isto  e  sentiu-se  mordido  na  sua  vaidade 
de  conquistador  burguez. 

Emquanto  os  fidalgos  iam  galanteando  da  rua,  resolveu 
elle,  audazmente,  enfiar  pela  escada  acima  e  dirigir-se  á  mys- 
teriosa  desconhecida. 

A  sua  boa  fortuna  no  amor  não  lhe  falhou  ainda  esta  vez, 
porque  a  «chineza»,  que  estava  morta  por  encontrar  um  homem 
mais  audaz  que  os  outros,  recebeu-o  amavelmente. 

Sem  o  menor  rebuço  contou  a  António  Lobo  a  sua  vida. 

Tinha  nascido  em  Cantão,  onde  era  «tancareira»,  isto  é, 
tripulante  de  «tancá»,  pequeno  barco  de  bambu,  muito  leve, 
que  as  tripulações,  quasi  sempre  femininas,  tiram  facilmente  da 
agua,  trazendo -o  ás  costas  para  terra.  De  Cantão  levara- a  para 
Macau  um  criado  de  António  José  Telles  da  Silva,  capitão  ge- 
ral d'esta  colónia  portugueza. 

António  Lobo  não  conhecia  os  costumes  de  Cantão  e  sup- 
poz  que  «tancareira»  era  pouco  mais  ou  menos  a  romanesca 
gondoleira  de  Veneza,  cantada  pelos  poetas. 

Ora  a  «tancareira»  é  por  via  de  regra  uma  creatura  de  cos- 
tumes destragados,  solta  de  lingua,  que  pragueja,  que  berra,  que 
esbofetea  as  outras  se  lhe  querem  disputar  algum  passageiro. 

Esta  chamava-se  Min,  o  nome  mais  curto  de  que  eu  tenho 
conhecimento  em  mulher  chineza. 

O  criado  do  capitão  geral  era  natural  de  Chaves,  e  emquanto 
estivera  em  Macau  sempre  a  tratara  com  muito  carinho,  talvez 
pela  razão  de  não  poder  encontrar  melhor  companheira  n'uma 
terra  de  mulheres  feias. 

Muitas  vezes  lhe  promettera  trazel-a  comsigo  para  Chaves, 
quando  o  seu  amo  recolhesse  ao  reino. 

Succedeu,  porém,  que  Telles  da  Silva,  tendo  querido  re- 
pellir  o  jugo  chinez  e  fazer  frente  ás  exigências  dos  mandarins, 
foi  victima  da  sua  coragem  patriótica,  porque,  em  vez  de  voltar 
á  metrópole,  teve  que  retirar-se  para  Goa  sob  custodia. 


48  o    LOBO    DA    MADRAGÔA. 


Desgostoso,  despediu  todos  os  criados  e  ficou  na  índia, 
abatido  de  animo,  á  espera  que  se  desfizessem  os  enredos  que 
o  tingiam  apeado. 

O  seu  criado  de  Chaves  embarcou  para  Portugal  e  trouxe 
comsigo  a  chineza,  como  lhe  havia  promettido. 

Mas  pouco  depois  de  ter  chegado  a  Chaves  reatou  amores 
com  uma  patricia  que  tinha  namoriscado  antes  de  ir  para  Ma- 
cau, e  poz  a  chineza  na  rua,  abandonando-a  em  terra  estranha, 
sem  recursos  para  repatriar-se. 

Ella  mettera-se  ao  caminho,  perseguida  pelas  vaias  das 
mulheres  de  Chaves,  e  ali  estava  em  Guimarães  de  passagem 
para  o  Porto,  onde  em  ultimo  caso  procuraria  agenciar  modo 
de  embarcar  para  Macau. 

E  chorava  a  sua  desgraça,  tão  longe  da  pátria,  n'um  paiz 
onde  ninguém  a  conhecia  e  onde  provavelmente  não  encontra- 
ria protecção  alguma. 

António  Lobo,  antegostando  o  prazer  de  uma  conquista 
anormal,  deante  de  uma  mulher  que  representava  para  elle  um 
typo  completamente  novo,  uma  aventureira  do  Oriente,  flor  da 
raça  mongolica  transportada  ás  regiões  occidentaes,  e  n'ellas 
abandonada  e  desprotegida,  sentiu  exaltar-se  a  phantasia  e 
commover-se  o  coração. 

Prometteu  á  chineza  aífectuoso  amparo  e  viu-a  então  sorrir 
depois  de  ter  chorado,  coisa  encantadora  de  novidade  para  elle, 
que  não  conhecia  senão  os  sorrisos  das  mulheres  de  Guimarães, 
tão  alegres  no  amor  que  pareciam  rebeldes  ás  lagrimas. 

O  que  é  certo  é  que  Min  tinha  o  coração  cheio  de  ódio  e 
de  fel  contra  todos  os  homens  que  encontrava  em  Portugal. 
Em  geral  os  chinezes  detestam  os  extrangeiros,  a  que  chamam 
«fáncuai»,  diabos,  e  ella  tinha  razões  especiaes  para  aborrecer 
os  portuguezes,  raça  a  que  o  seu  pérfido  amante  pertencia.  O 
que  Min  procurava  era  um  homem  no  qual  pudesse  cevar  a 
vingança  do  desamparo  em  que,  muito  longe  da  pátria,  se 
encontrava  agora. 

Essa  victima  apparecera-lhe,  finalmente:  era  António  Lobo, 
uma  creança,  menor  de  vinte  annos,  e  de  imaginação  exaltada. 

Elle  viu  n'eila  apenas  a  filha  de  um  vasto  império  remoto, 
com  todos  os  caracteres  de  uma  raça  differente  da  sua ;  a  crea- 
tura  que  lhe  devia  revelar  mysterios  inéditos  das  intimidades 
amorosas  do  Oriente,  e  tallar-lhe  das  tradições  poéticas  da  gruta 
de  Macau,  onde  Camões  compusera  muitas  e  sublimes  estan- 
cias dos  «Lusíadas». 

De  mais  a  mais  António  Lobo  sentiu-se  grandemente  lison- 
jeado de  ter  captado  as  boas  graças  da  chineza  primeiro  que 
todos  os  fidalgos  de  Guimarães,  netos  dos  godos. 


o    LOBO    DA    MADRAGÒA  49 


Por  sua  vez  contou  elle  a  Min  o  pouco  que  da  sua  histo- 
ria havia  a  contar :  que  já  nâo  tinha  mãe,  que  o  pae  estava 
doente,  e  que  possuía  alguns  bens  de  fortuna,  achando-se  elle 
legalmente  emancipado. 

Este  programma  era  sobremodo  convidativo  para  uma 
barqueira  de  Cantão,  que  desejava  encontrar  um  portuguez  em 
quem  pudesse  vingar- se  de  outro. 

Fácil  foi,  pois,  a  conquista  e  a  principio  muito  inebriante 
para  o  moço  vimaranense. 

Min  continuou  na  estalagem  do  Campo  do  Toural  guar- 
dada á  vista  por  António  Lobo  como  por  um  dragão  rábido, 
que  defendesse  a  integridade  de  um  precioso  achado. 

Elle  apenas  fazia  algumas  fugidas  para  ir  ver  o  pae,  como 
costumava,  e  logo  depois  voltava  para  junto  da  chineza,  a  ou- 
vir-lhe  contar  historias  do  seu  paiz,  a  que  achava  muita  graça. 

O  filho  do  ourives  cuidou  morrer  a  rir  quando  ella  lhe 
gabou  os  melhores  petiscos  culinários  do  seu  paiz,  taes  como 
caranguejo  com  ovos  e  costeletas  de  cão  de  lingua  preta  com 
molho  de  óleo  de  ricino. 

E  já  não  podia  aguentar  as  lagrimas  que  o  riso  lhe  provo- 
cava quando  ella  lhe  disse  que  os  seus  patrícios  comiam  todos 
esses  saborosos  pitéos  com  o  auxilio  de  dois  pausinhos,  que 
serviam  de  garfo,  colher  e  faca. 

Ao  cabo  de  vinte  e  tantos  dias  de  idillio  chinez,  António 
Lobo  voltou  muito  alvoroçado  á  estalagem  para  dizer  a  Min 
que  o  pae  tivera  novo  ataque  de  paralysia,  e  que  estava  em 
perigo  de  vida. 

A  «tancareira»  sentiu  um  intimo  prazer,  porque  se  apro- 
ximava a  hora  da  realisação  do  seu  ideal.  Mas  appárentou 
profunda  magua,  e  disse  a  António  Lobo  que  corresse  para 
junto  do  pae. 

Elle  assim  fez. 

Dois  dias  depois  morria  o  honrado  Diogo  Ferreira,  chris- 
tãmente  tranquillo,  e  contente  de  ver  ao  pé  de  si  o  filho  que- 
rido. 

A  chineza  entrou  na  camará  ardente  e  pôde  facilmente  cho- 
rar junto  ao  cadáver  de  um  homem  que  ella  nunca  tinha  vis- 
to.. .  mais  vivo. 


IV 


Tpiampho  astaeioso  do  Oriente 


Uns  quinze  dias  depois,  António  Lobo,  fascinado  pela  se- 
reia de  Cantão,  ausentou-se  de  Guimarães  com  ella. 

Este  caso  dera  muito  que  scismar,  especialmente  ás  rapa- 
rigas vimaranenses,  que  não  chegavam  a  comprehender  como 
um  rapaz  de  bom  gosto  (diziam  ellas,  modéstia  á  parte)  podia 
ter  prejudicado  de  um  momento  para  outro  a  sua  tradição  ga- 
lante, apaixonando-se  por  uma  chineza,  que  não  valia  o  calca- 
nhar de  qualquer  minhota,  rosada,  fresca  e  polpuda. 

Os  fidalgos  de  Guimarães,  despeitados  por  lhes  ter  sido 
preferido  o  filho  do  ourives  Diogo,  também  eram  da  mesma 
opinião,  com  o  que  nada  tinham  a  perder,  pois  que  lisonjeavam 
a  vaidade  das  suas  patrícias. 

Os  homens  bons  do  povo  e  os  frades  de  S.  Francisco,  prin- 
cipalmente frei  Salvador  da  Guia,  lastimavam  que  os  haveres 
do  defunto  ourives,  tão  laboriosa  e  honestamente  amealhados, 
fossem  rolando  vertiginosamente  por  um  declive,  onde  não  tar- 
dariam a  desapparecer. 

Todas  as  outras  pessoas  que  tinham  aggravos  de  António 
Lobo,  porque  elle  as  maltratara  alguma  vez  em  prosa  ou  verso, 
desforravam- se  agora  chamando-lhe  doido  e  dissipador. 

Algumas  chegavam  a  censurar  a  memoria  de  Diogo  Fer- 
reira que,  devendo  conhecer  o  filho,  commettêra,  por  falta  de 
atilada  previdência  ou  por  affectuosa  fraqueza,  o  erro  de  eman- 
cipal-o,  precipitando  assim  o  desbarate  de  um  pecúlio^  que  nin- 
guém imaginava  ser  tão  importante  como  realmente  era. 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  51 


Disse-se  logo,  por  communicativa  phantasia,  que  António 
Lobo  tinha  ido  com  a  chineza  para  Macau,  aonde  ella  o  attra- 
hia  com  o  fim  astucioso  de  repatriar-se  á  custa  d'elle. 

O  que  é  certo  é  que  este  boato  de  origem  popular  veiu, 
mais  tarde,  a  traduzir-se  n'uma  inexactidão  biographica  a  que 
pelo  menos  dera  curso  um  escriptor  portuguez. 

Se  o  leitor  abrir  o  tomo  VI  da  «Revista  Universal  Lisbo- 
nense», ahi  encontrará  a  supposiçao  de  que  um  soneto  de  An- 
tónio Lobo  de  Carvalho  parece  indicar  «que  elle  vivera  algum 
tempo  em  Macau». 

O  soneto,  em  que  tão  errada  supposiçao  procurou  apoio, 
é  o  seguinte  : 

Um  governo  sem  mando,  um  bispo  tal, 

De  freiras  virtuosas  um  covil, 

Tre/  conventos  de  frades,  cinco  mil 

Naires,  chinas,  christãos^  que  obram  mui  mal: 

Uma  só,  que  hoje  existe  tal  qual, 
Com  quatorze  prebendas  sem  seitil ; 
Muita  pobreza^  muita  mulher  vil, 
Com  portuguezes  tudo  em  um  curral: 

Seis  fortes,  cem  soldados,  e  um  tambor, 
Trez  freguezias,  cujo  ornato  é  pau, 
Co'um  vigário  geral  sem  provisor  : 

Dois  clérigos,  e  um  d'elles  muito  mau. 
Um  senado,  que  a  tudo  é  superior, 
E'  quanto  Portugal  tem  em  Macau. 

O  douto  bibliógrapho  Innocencio  Francisco  da  Silva,  que 
em  1852  coUigiu  as  «Poesias  joviaes  e  satyricas»  de  António 
Lobo  de  Carvalho,  diz  referindo-se,  n'um  prefacio  biographico, 
áquella  errada  supposiçao  do  collaborador  da  tRevista  Uni- 
versal»: 

«Igualmente  duvidosa,  se  não  mais  questionável  se  nos 
affigura  ainda  a  asserção  de  que  António  Lobo  estivesse  por 
algum  tempo  em  Macau;  inducção  que  o  mesmo  alludido  es- 
criptor pretendeu  tirar  do  contexto  de  um  soneto,  quanto  a  nós 
apócripho,  e  que  por  tal  o  expungimos  da  presente  collecção.» 

Tem  razão  Innocencio  em  suppôr  que  António  Lobo  não 
esteve  nunca  em  Macau,  mas,  não  obstante,  o  soneto  pode  ser 
d'elle,  em  razão  das  suas  intimas  relações  com  a  «tancareira» 
de  Cantão. 

Ella,  que  vivera  em  Macau  com  o  criado  do  capitão  geral, 
que  conhecia  perfeitamente  a  vida  d'esta  colónia  portugueza,  e 
que,  por  instincto  de  raça,  sobrepunha  patrioticamente  Cantão 
a  Macau,  no  que  effectivamente  tinha  razão,  e  os  chinas  aos 
portuguezes,  devia  ter  suggestionado  a  António  Lobo  as  suas 


52  o    LOBO    DA    MADRAGÒA 


impressões  de  desdém  pela  insignificância  e  pobreza  d'aquella 
nossa  colónia. 

Min  attribuia  toda  a  sua  desgraça  a  Macau,  para  onde  a 
levara  o  criado  de  Telles  da  Silva,  e  d'onde  a  trouxera  ao  en- 
gano para  Portugal. 

Quanto  a  dizer  o  soneto  que  havia  lá  muita  mulher  vil, 
está-se  vendo  o  dedo  do  informador  feminino,  porque  era  na- 
tural que  a  chineza  quizesse  amesquinhar  as  mulheres  de  Ma- 
cau para  engrandecer  as  de  Cantão,  engrandecendo-se  a  si 
própria. 

Nunca  nenhum  chinez  nos  perdoou  que  tivéssemos  occu- 
pado  Macau. 

Os  nossos  capitães  geraes  ou  transigiam  com  os  mandarins 
para  conservar  o  cargo  ou,  se  reagiam  dignamente,  eram  victi- 
mas  da  sua  honesta  energia. 

Mais  ainda,  o  leal  senado  e  em  grande  parte  o  espirito  pu- 
blico estavam  tão  abatidos  de  brios,  que  preferiam  a  paz  inde- 
corosa á  guerra  aberta  com  os  mandarins. 

Min,  como  todos  os  chinezes  de  Macau,  maldizia  do  capi- 
tão geral  Telles  da  Silva,  que  procurara  fa/er  um  governo  forte, 
patriótico  e  authónomo. 

Não  só  os  portuguezes,  mas  os  próprios  chinas,  lhe  toma- 
ram medo. 

Uma  noite  foram  presos  pela  ronda  dois  chinas,  um  dos 
quaes  parece  que  morreu  por  eífeito  de  pancadas  que  lhe  deram 
os  soldados.  No  dia  seguinte  não  appareceram  nem  o  morto, 
nem  o  vivo.  Dizia-se  á  bocca  pequena  que  o  capitão  geral,  para 
evitar  novos  conflictos,  os  tinha  mandado  metter  na  mina  ou 
lançar  ao  mar.  Um  christão  foi  denunciar  este  acontecimento 
aos  mandarins,  que  vieram  a  Macau  exigir  a  entrega  dos  dois 
presos  vivos  ou  mortos,  e  que,  não  lhes  tendo  sido  entregues, 
ordenaram  aos  chinas  que  íechassem  as  lojas  do  bazar  e  sahis- 
sem  da  cidade. 

O  capitão  geral  não  trepidou,  manteve  a  sua  attitude  enér- 
gica, mas  a  população  alvoroçou-se  com  a  falta  de  viveres  logo 
que  o  bazar  fechou. 

A  pedido  dos  habitantes,  intervieram  os  jesuítas,  procu- 
rando acalmar  os  mandarins  com  dadivas  de  dinheiro,  satisfa- 
zendo-lhes  assim  a  natural  rapacidade,  seu  principal  móbil. 

Cotisaram-se  os  moradores  portuguezes  de  Macau  para  que 
os  mandarins  pudessem  receber  grandes  sommas  de  taeis  e, 
feito  isto,  o  bazar  reabriu  as  suas  portas. 

Teve  o  capitão  geral  de  transigir  n'uma  só  coisa,  para  não 
sacrificar  a  população,  e  foi  em  destacar  para  Timor  os  solda- 
dos que  prenderam  os  dois  chinas  e  os  maltrataram. 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  53 


Mas  procurou  tirar  logo  desforra  d'esta  forçada  transigên- 
cia. Conseguindo  averiguar  que  o  christao  delactor  fora  um  ma- 
caista,  de  appeliido  Franco,  mandou-lhe  dar  trez  saltos  de  polé, 
para  nnostrar  aos  mandarins  que  mantinha  firmemente  o  prin- 
cipio de  auctoridade,  e  aos  portuguezes  que  não  podiam  impu- 
nemente desgostal-o. 

D'este  e  outros  actos  de  energia  nasceram  os  enredos,  te- 
cidos até  pelos  próprios  portuguezes  subservientes,  que  logra- 
ram depor  o  audaz  capitão  geral. 

Foi  n'esta  época  que  a  «tancareira»  Min  conheceu  Macau. 
Tudo  lhe  desagradava  ali,  a  começar  pelo  capitão  geral,  pri- 
meiro inimigo  dos  chinezes,  que  ella  via  sempre  com  maus 
olhos  quando  elle  descia  da  fortaleza  do  Monte  acompanhado 
por  um  sargento  e  mais  doze  homens  de  clavinas  carre- 
gadas. 

Mas  astuciosa  como  todas  as  mulheres,  especialmente  as 
da  sua  raça,  empavonava-se  de  ridícula  vaidade  quando  ia  a 
Cantão  embarcada  n'uma  lorcha,  com  o  criado  de  Telles  da 
Silva;  perante  as  suas  antigas  companheiras  mostra va-se  con- 
tente e  orgulhosa  da  vida  senhoril  que  levava  em  Macau. 

O  primeiro  portuguez  com  quem  a  «tancareira»  pôde  des- 
abafar todos  os  seus  ódios  contra  os  portuguezes  na  China,  foi 
António  Lobo,  e  fel-o  com  a  vehemencia  inherente  á  satisfação 
de  uma  vingança  longo  tempo  represada. 

António  Lobo  acreditou-a  facilmente,  por  suggestão  amo- 
rosa e,  para  lisonjeal-a,  escreveu  de  um  jacto  o  soneto,  que  não 
corrigiu  nunca  e  que  é  dos  peiores  que  elle  deixou. 

Ao  contrario  do  que  se  dizia  em  Guimarães,  a  «tancareira», 
em  vez  de  descobrir  o  seu  plano  de  repatriar- se,  apenas  tratou 
de  arrancar  á  terra  natal  o  filho  do  ourives^  para  o  affastar 
desde  logo  de  quaesquer  influencias  que  poderiam  arrebatar- 
Ihe  das  garras  a  presa. 

Poz  em  acção  toda  a  astúcia  de  que  era  capaz  como  mu- 
lher, como  chineza,  e  como  pessoa  já  experimentada  pela  des- 
graça. 

Levou  António  Lobo  para  o  Porto,  onde  ella  pensou  en- 
contrar navio  que,  na  primeira  occasião,  a  reconduzisse  a 
Macau. 

N'aquelle  tempo  a  cidade  do  Porto  era  escassa  de  distrac- 
ções, apenas  trabalhadora  e  burgueza,  cristalisada  na  austeri- 
dade melancólica  do  seu  primitivo  burgo  episcopal. 

Min  simulava  gostar  mais  do  rio  que  da  cidade,  e  guiava 
ardilosamente  todos  os  seus  passeios  para  os  cães  da  ribeira, 
especialmente  desde  Cima  do  Muro  até  ao  estaleiro  do  Ouro. 

Interessava-se  muito  em  examinar  o  grande  numero  de 


54  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


naus  que  ainda  n'esse  tempo  fundeavam  no  Douro,  procedentes 
do  Brazil,  de  França,  de  Flandres  e  de  Inglaterra. 

Procurava,  com  disfarce,  um  navio  que  pudesse  leval-a 
para  Macau,  porque  não  pensava  n'outra  cousa. 

António  Lobo  não  suspeitava  d'este  intento  reservado,  e 
parecia-lhe  natural  que  a  antiga  «tancareira»  de  Cantão  gos- 
tasse de  vêr  um  rio,  onde,  de  mais  a  mais,  navegavam  cons- 
tantemente pequenos  barcos  tripulados  por  mulheres,  as  esbel- 
tas raparigas  de  Avintes,  remadoras  possantes. 

Contrariada  por  não  achar  o  que  procurava,  Min  desforra- 
va-se  juntando  larga  provisão  de  valores,  como  quem  prepara 
viatico  para  longa  viagem.  Fazia  amiudadas  compras  de  obje- 
ctos de  ouro,  prata  e  fazendas  de  lã  e  seda  na  rua  das  Flores, 
que  era  n'esse  tempo  onde  estavam  concentradas  as  mais  ricas 
e  mais  variadas  lojas  da  cidade;  que  era,  n'uma  palavra,  o 
Chiado  portuense  de  então.  António  Lobo  andava  sempre  de 
bolsa  aberta,  e  não  discutia  despezas,  quando  a  chineza  lhe  re- 
quebrava os  olhos  n'uma  doce  languidez  perturbadora.  Deixa- 
va-se  queimar  n'aquelle  estranho  fogo  do  Oriente,  que  o  abra- 
zava,  e  ao  qual  a  já  começada  Torre  dos  Clérigos,  se  lhe 
puzessem  dentro  uma  alma  de  vinte  annos,  não  lograria  resistir. 

Sabia  a  «tancareira»,  sem  nunca  perder  de  vista  o  seu  prin- 
cipal cuidado,  empregar  agradáveis  artes  para  ir  distraindo 
António  Lobo  com  os  aspectos  da  cidade,  surprezas  galantes 
e  expedientes  graciosos. 

Umas  vezes  vestia-se  á  portuense,  de  saia  preta  e  mantilha 
de  coca,  como  as  melhores  damas  da  cidade.  Outras  vezes  imi- 
tava o  trajo  das  camponezas  do  arrabalde  e  arreiava-se  com 
muito  e  pesado  ouro  macisso. 

Um  dia  tinha  o  capricho  de  percorrer  as  ruas  em  cadeiri- 
nha ou  de  passeiar  em  sege  até  á  Foz  e  Mattosinhos;  outras 
vezes,  á  luz  do  dia  ou  ao  clarão  do  luar,  embarcava  rio  acima 
com  António  Lobo,  escolhia  barqueiros  que  soubessem  tanger 
algum  instrumento,  e  gosava  assim  um  dos  poucos  hábitos 
alegres  da  cidade,  tal  era  o  que  então  se  denominava  «Fúrias 
do  rio»,  isto  é,  excursões  fluviaes,  ruidosas  e  concorridas. 

Aquella  pequenina  mulher,  sempre  astuciosa  e  reservada, 
procurava  com  todos  estes  artifícios  prender  António  Lobo  a 
uma  cidade,  que  não  possuia  seducções  estonteadoras,  nem 
sequer  distracções  variadas. 

O  Porto,  com  os  seus  sessenta  mil  habitantes,  tinha  o  as- 
pecto rude  de  um  burgo  methodico  e  laborioso.  Não  era  uma 
cidade  que  sorrisse.  A  apparencia  das  ruas  e  das  casas  dava 
uma  pesada  sensação  de  monotonia  uniforme.  Quasi  todos  os 
prédios  eram  esguios,  de  trez  a  cinco  andares,  e  as  ruas  es- 


o    LOBO    DA   MADRAGOA 


55 


treitas,  o  que  afogava  dentro  d'ellas  a  vista,  confrangendo-a. 
Sobre  as  altas  clarabóias  ardiam  revérberos  de  sol,  que  con- 
trastavam exoticamente  com  a  escuridão  dos  arruamentos. 
Ainda  havia  uns  restos  de 
rotulas  nas  janellas,  que  de 
onde  a  onde  lembravam  ves- 
tígios mouriscos.  De  toda  esta 
cidade  tristonha  sabia  um  ru- 
mor constante  e  confuso,  de 
ensurdecer.  Era  produzido 
pelo  barulho  das  seges,  das 
liteiras,  dos  carros  de  bois, 
das  recuas  dos  almocreves, 
e  até  pelos  tamancos  dos 
transeuntes  batendo  o  ladri- 
lho de  pedras  largas  e  com- 
pridas, que  constituía  o  pa- 
vimento das  ruas. 

Min  nao  queria  sair  do 
Porto  emquantonão  perdesse 
a  esperança  de  encontrar 
transporte  para  Macau,  mas, 
quando  se  convenceu  de  que 
só  poderia  achal-o  em  Lis- 
boa^  foi  ella  própria  que  tra- 
tou de  apressar  a  viagem 
empregando  recursos  habi- 
lidosos. 

Recorreu  ao  grande  ex- 
pediente de  todas  as  mulhe- 
res :  o  ciúme. 

Levava  António  Lobo  ás 
praças  mais  concorridas  de 
regateiras  guapas,  lindas  mo- 
cetonas  que  vendiam  pão, 
aves  e  fructas,  taes  eram  as 
praças  de  S.  Bento,  S.  Do- 
mingos, S.  Roque  e  Ribeira,  e  mostrava-se  amuada  accusan- 
do-o  de  olhar  com  muita  attençSo  para  todos  esses  bellos  exem- 
plares de  mulher  portugueza. 

Elle  defendia-se  com  tanta  convicção  e  verdade,  que  a 
chineza  acabava  por  se  convencer  de  que  não  era  aquelle  o 
melhor  caminho  para  conseguir  o  seu  fim. 

Resolveu  então,  comquanto  este  novo  processo  pudesse  ter 
maior  risco,  atormentar  de  ciumeira  o  coração  de  António  Lobo. 


A  cliiueza  Min 


56  o   LOBO    DA    MADRAGÔA 


Ella  bem  sabia  que  tinha  dado  nas  vistas  do  Porto,  o  que 
aliás  era  natural,  pois  que  se  evidenciava  nSo  só  pelos  cara- 
cteres de  raça,  como  pela  variedade  e  riqueza  de  trajos  e  ador- 
nos, e  ainda  pelos  seus  passeios  em  cadeirinha,  em  sege  e  em 
barco. 

Até  então  era  a  chineza  que  se  retrahia  n'um  grande  ar  de 
honestidade  intangivel,  quando  os  portuenses  a  miravam  com 
apetitosa  curiosidade;  agora,  mudara  de  rumo,  e  era  ella 
mesma  que  os  atiçava  com  olhares  inflammaveis,  provocando- 
os  a  observal-a  e  seguil-a. 

António  Lobo,  que  nao  deixava  Min  um  momento  em 
liberdade,  lisonjeava-se  de  vêr  como  ella  despertava  cada  vez 
mais  a  attençSo  dos  homens,  e  orgulhava-se  da  sua  conquista 
sem  olhar  ao  preço  por  que  lhe  sahia. 

Tinha  começado  o  verSo  de  1750. 

Um  domingo,  no  rio  Douro,  Lobo  sentiu  a  vertigem  do 
ciúme,  quando  notou  que  um  barco,  conduzindo  rapazes  do 
commercio,  seguia  a  pequena  distancia  o  seu  barco,  e  que  um 
dos  rapazes  ia  cantando  trovas  de  amor,  provavelmente  dirigi- 
das a  Min. 

D'esta  «Fúria  do  rio»  voltou  António  Lobo  furioso. 

Fez  uma  scena  de  ciúme,  e  disse  imperativamente  á  chi- 
neza que  tinha  resolvido  sahir  do  Porto. 

—  Para  onde?  perguntou  ella. 

—  Está  claro  que  para  Guimarães. 

—  Tudo  menos  isso,  replicou  Min.  Estou  farta  de  aturar 
o  ódio  e  os  insultos  das  fêmeas  rudes  de  Chaves  e  Guimarães, 
de  todas  as  estúpidas  mulheres  de  aldeã.  Se  queres  sahir  do 
Porto,  nSo  sou  eu  que  hei  de  contrariar  te;  mas  com  a  condi- 
ção de  que  não  sahiremos  d'aqui  para  uma  terra  mais  pequena. 
Amo-te  sinceramente,  custar-me-ia  muito  ter  que  separar-me 
de  ti ;  mas  se  teimasses  em  voltar  para  Guimarães,  deixar-te-ia. 

—  Para  onde  havemos  de  então  ir?  perguntou  António 
Lobo  meio  aturdido  por  tão  resoluta  e  inesperada  declaração. 

—  Uma  cidade  maior  que  o  Porto...  só  Lisboa.  Não  tem 
que  pensar. 

—  E  o  que  hei  de  eu  lá  fazer? 

—  O  mesmo  que  fazias  em  Guimarães  e  que  fazes  aqui. 
Min  quiz  temperar  a  rispidez  d'esta  phrase  com  um  sorriso 

dengoso,  acrescentando: 

—  Amar-me. . . 

Lobo  replicou  com  vivacidade  : 

—  E  ser  amado. 

A  chineza  correu  para  elle,  apertou-o  meigamente  nos  bra- 
ços, pousou-lhe  um  beijo  na  bocca,  e  disse : 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  57 


—  Está  bem  de  vêr  que  sim.  Mas  Lisboa  é  uma  terra 
grande,  onde  tu,  que  és  intelligente,  poderás  encontrar  posição 
que  te  convenha,  se  quizeres  ou  precisares  procural-a.  No 
Porto  apenas  se  trata  de  negócios  e  tu  não  tens  geito  para 
negociante.  Digo  ou  não  digo  a  verdade  ? 

António  Lobo  ficou  pensativo  durante  um  momento ;  depois, 
completamente  subjugado,  obtemporou : 

—  Pois  vamos  lá  para  Lisboa. 

Decorridos  oito  dias,  fins  de  julho,  o  filho  do  ourives  de 
Guimarães  e  a  otancareira»  de  Cantão  desembarcavam  no  Cães 
da  Pedra. 

Foram  hospedar-se  ali  perto,  na  estalagem  do  Reboto,  porque 
a  chineza,  seguindo  sempre  o  seu  plano,  queria  ficar  perto  do 
Tejo. 

A  capital  era  uma  novidade  para  António  Lobo,  e  quasi  o 
era  também  para  Min,  que  tinha  aqui  desembarcado  quando 
chegou  de  Macau,  mas  que  se  demorara  apenas  vinte  e  quatro 
horas,  seguindo  logo  viagem  para  o  Porto  com  o  criado  de 
Telles  da  Silva. 

A  cidade  offerecia  no  seu  aspecto  geral  um  profundo  con- 
traste com  o  Porto.  Era  grande,  alegre  no  exterior,  magestosa, 
quasi  monumental, 

O  accidentado  dos  montes  do  Castello,  da  Graça,  do  Carmo, 
de  S.  Francisco,  das  Chagas  e  de  Santa  Catharina,  coroava-a 
de  um  caprichoso  recorte,  sobre  o  qual  descia  o  azul  claro  do 
céu,  n'uma  exuberância  triumphal  de  luz  e  côr. 

Ao  oriente,  a  casaria  apinhava-se  muito  densa,  pela  ver- 
tente meridional  do  morro  do  Castello,  descendo  escalonada 
para  o  bairro  de  Alfama. 

Ao  occidente  a  população  rareava,  mas  a  ribeira  do  Tejo 
espraiava-secom  sorridente  largueza  em  toda  a  margem  direita, 
matisada  pelo  arvoredo  das  quintas  fidalgas,  pela  frontaria  dos 
palácios  de  recreio,  pelas  casaes  alvejantes  e  pelos  rodisios  dos 
moinhos  de  vento. 

O  mosteiro  de  Belém  avultava  imponente  n'essa  mancha 
luminosa,  e  os  seus  lavores  rendilhados  pareciam  vivos  quan- 
do a  luz  abundante  do  sol  os  fazia  palpitar. 

Depois,  correndo  na  direcção  do  oceano,  outras  casas  mo- 
násticas, posto  que  muito  mais  humildes  e  modestas,  taes  como 
o  convento  de  S.  José  de  Riba- Mar  e  o  de  Nossa  Senhora  da 
Boa-Viagem,  faziam  alvejar  os  seus  muros  e  campanários  sobre 
logares  altos,  quasi  imminentes  ao  Tejo,  ao  passo  que  outras 
casas  religiosas,  como  a  dos  Cartuxos  de  Laveiras,  se  escon- 
diam terra  dentro  na  espessura  dos  bosques. 

A  torre  de  S.  Vicente  de  Belém,  com  o  seu  lindo  desenho 


58  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


manuelino,  sorria  n'uma  galanteria  de  linhas,  tSo  discreta  e 
grave,  que  não  prejudicava  a  impressão  de  ser,  como  realmente 
era,  uma  fortaleza  militar. 

De  modo  que  se  o  oriente  da  cidade  denunciava  a  existên- 
cia de  uma  população  amalgamada  dentro^de  bairros  escuros 
e  estreitos,  restos  de  habitações  mouriscas  e  de  construcções 
medievaes,  o  occidente  era  já  n'essa  época,  pouco  anterior  ao 
grande  terremoto,  uma  renascença  brilhante  de  Lisboa,  rea- 
lisada  pelo  agrupamento  de  palácios,  quintas,  egrejas  e  fortes. 

Mas,  observando  a  cidade  no  seu  conjunto,  occultos  os 
antigos  arruamentos  orientaes  e  as  viellas  que  seemmaranha- 
vam  entre  o  Terreiro  do  Paço  e  o  Rocio,  Lisboa  mostrava  ser, 
logo  ao  primeiro  lance  de  olhos,  uma  capital  digna  de  hombrear 
com  as  mais  bellas  de  toda  a  Europa. 

O  Terreiro  do  Paço,  com  as  suas  portas  e  postigos  ao 
fundo,  sobre  os  quaes  assentavam  altas  edificações,  com  o  vasto 
palácio  real  que  ao  poente  rematava  por  um  elegante  torreão 
sobre  o  Tejo,  com  os  casarões  da  Alfandega  e  do  Terreiro  do 
Trigo  ao  nascente,  era  como  que  um  vestíbulo  condigno  da 
magestade  e  belleza  da  grandiosa  cidade. 

O  Tejo,  amplo,  scintillante  de  ondas  doiradas,  povoado  de 
navios  de  todos  os  paizes  do  mundo,  fez  estremecer  de  orgulho 
patriótico  o  coração  de  António  Lobo,  porque  lhe  deu  a  visão 
das  nossas  glorias  marítimas,  e  da  fundação  do  nosso  domí- 
nio colonial  por  meio  de  ousadas  conquistas  e  aventurosas 
navegações. 

A  belleza  da  cidade  e  das  terras  férteis  do  seu  Termo 
parecia  avultar  ainda  mais  attraente  pelo  contraste  que  fazia 
com  a  margem  esquerda  do  Tejo,  árida,  escalvada,  nua,  apenas 
cortada  de  um  trecho  de  povoação  em  Almada,  villa  que  pare- 
cia envergonhar-se  de  ter  deante  de  si  uma  cidade  que  ainda 
de  longe  a  esmagava. 

António  Lobo  ficou  deslumbrado  nos  primeiros  momentos 
em  que  viu  Lisboa  e,  lembrando-se  de  Guimarães,  a  sua  pe- 
quena e  pacata  villa  natal,  mediu  mentalmente  toda  a  existên- 
cia da  nacionalidade  portugueza  desde  o  velho  castello  do  conde 
D.  Henrique,  onde  a  monarchia  principiara,  até  ao  sumptuoso 
Paço  da  Ribeira,  onde  um  cézar  agonisava. 

Já  no  Porto  tinha  ouvido  falar  muito  do  perigo  que  estava 
correndo  a  vida  de  el-rei  D.  João  V,  por  aggravamento  da  sua 
antiga  enfermidade.  As  noticias  que  chegavam  ao  norte  do  paiz 
eram  cada  cada  vez  mais  inquietadoras. 

Mas  agora,  em  Lisboa,  esse  mesmo  assumpto  preoccupava 
todas  as  conversações,  em  todas  as  classes  sociaes  e  em  todos 
os  logares  públicos.   Dizia-se  com  um  sentimento   profundo, 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  59 


apenas  próprio  de  uma  grande  dôr  nacional,  que  el-rei  nosso 
senhor  estava  em  artigos  de  morte. 

Parecia  tratar-se  de  um  m.onarcha  que  tivesse  levado  o 
seu  exercito  a  successivas  victorias  ou  felicitado  o  seu  paiz 
com  uma  torrente  caudal  de  prosperidades,  resultantes  de  uma 
sabia  administração. 

Nada  d'isso  acontecera,  o  thesouro  publico  estava  vasio,  o 
reino  pobríssimo,  porque  o  rei  moribundo  linha  dissipado  uma 
riqueza  colossal  em  beatices,  amores,  ostentações  e  outras 
ruinosas  prodigalidades. 

Mas  o  povo  queria-lhe  muito  entranhadamente,  porque 
D.  JoSo  V  o  tinha  deslumbrado  como  nenhum  outro  rei  ainda, 
dando-lhe  o  espectáculo  de  uma  realeza  á  Luiz  XIV  enxertada 
em  moldes  portuguezes:  fora  beato,  fora  amoroso,  fora  incons- 
tante, fora  imprevidente  como  todos  os  portuguezes. 

Gastar  dinheiro?  Mas  não  estava  o  povo  habituado  a  vêr 
a  nobreza  dissipar  cada  dia  a  herança  dos  seus  maiores,  ati- 
rando-a  pela  janella  fora  com  embaixadas,  ciganas,  freiras, 
alcovêtas  e  cantarinas?  O  rei  tinha  effectivamente  gastado  mui- 
tos milhões  de  cruzados,  mas  gastava  como  quem  era :  devia, 
por  isso,  gastar  mais  que  todos  os  outros  fidalgos  juntos.  E 
da  sua  prodigalidade  alguma  coisa  tinha  ficado  em  mármore, 
em  rocalha,  em  carrilhões  e  paramentos  de  egreja.  De  mais  a 
mais,  sabia-se  cá  fora,  o  rei  morria  christãmente — como 
todo  o  portuguez  quer  morrer,  sejam  quaes  for  os  erros  do 
passado  —  porque  dissera  a  um  dos  seus  familiares:  «Deixai- 
me,  que  eu  não  sou  mais  que  um  punhado  de  terra  envolto 
em  uma  miséria  de  peccados».  Todo  o  peccador  portuguez, 
que  morre  contricto,  obtém  o  perdão  dos  seus  compatriotas, 
quando  o  não  possa  obter  de  Deus. 

Na  estalagem  do  Reboto  entravam  muitos  homens  do  mar, 
porque  o  proprietário  era  um  velho  carregador  da  carreira  do 
Brazil,  que  traficara  de  conta  propria^e  juntara  dinheiro.  Dizia- 
se  que  tinha  negociado  em  escravos,  e  que  fora  essa  a  prin- 
cipal origem  do  seu  cabebal. 

Pois  ahi  mesmo,  dentro  da  estalagem,  não  se  fallava  senão 
da  doença  de  el-rei  D.  João  V,  e  da  sua  morte  próxima. 

Até  a  chineza  parecia  agora  mais  reconciliada  com  os  por- 
tuguezes, por  dó  de  sua  magestade  fidelíssima.  Conversava  com 
os  homens  do  mar,  especialmente  com  o  dono  da  estalagem, 
e  ia  repetir  a  António  Lobo  as  noticias,  cada  vez  peiores,  que 
de  hora  a  hora  se  espalhavam  por  toda  a  cidade. 

A  occasião,  por  ser  de  alvoroço  geral,  pareceu  a  Min  a 
melhor  possível  para  tratar  da  sua  repatriação,  O  próprio  Lobo 
queria  estar  ao  corrente  do  que  se  pçissava,  e  encarregava-a 


60 


o    LOBO    DA    MADRAGOA 


de  o  saber  na  estalagem.  A  chineza  não  perdeu  o  ensejo,  e 
conluiou-se  com  o  velho  Reboto,  que  por  sua  parte  não  perdia 
qualquer  opportunidade  de  ganhar  dinheiro.  Estava  a  partir  do 
Tejo,  disse-lhe  elle,  um  navio  que  tocava  em  Macau.  Dentro 
de  poucos  dias  devia  levantar  ferro. 

Elle  mesmo  se  encarregava  de  tudo.  Quanto  a  guardar  se- 
gredo, acrescentou  o  soler- 
te  estalajadeiro,  todos  os 
segredos  se  podiam  guar- 
dar com  segurança  pondo- 
Ihes  dinheiro  em  cima. 

Ficou  o  negocio  com- 
binado. El-Rei  D.  João  V 
podia  viver  ou  morrer,  que 
a  chineza  não  se  importava 
nada  com  isso. 

Sexta  feira,  31  de  ju- 
lho, pouco  depois  das  sete 
horas  da  tarde,  troou  a  ar- 
tilharia e  dobraram  todos 
os  sinos  da  cidade. 

Era  um  enorme  estron- 
do fúnebre,  que  retumbava 
dentro  de  todos  os  prédios 
e  de  todos  os  corações. 

O  grande  rei  havia  ex- 
pirado, e  todo  o  povo  cho- 
rava por  elle. 

Trez  dias  se  gastaram 
em  clamores  públicos  e  of- 
ficios  religiosos,  n'um  delí- 
rio de  saudade  inconsolável. 
Na  segunda  feira,  3  de 
agosto,  pelas  10  horas  da 
noite,  organisou-se  o  prés- 
tito que  devia  acompa- 
nhar o  cadáver  de  sua  ma- 
gestade  ao  mosteiro  de  S.  Vicente  de  Fora. 

A  multidão,  chorosa,  abria  alas,  que  a  todo  o  momento 
engrossavam,  como  se  novas  ondas  de  população  tivessem  ro- 
lado sobre  a  cidade,  vindas  de  longe,  talvez  de  vinte  léguas 
ou  mais. 

Iam  adeante  os  porteiros  da  camará,  com  as  suas  insígnias, 
marchando  a  passo  solemne. 

Seguiam-se  os  dois  .corregedores  do  crime,  os  ofihciaes  da 


António  Lobo 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  61 


casa  real,  os  grandes  do  reino,  o  regedor  das  justiças,  os  pre- 
sidentes dos  tribunaes. 

Depois  vinha,  em  grande  numero,  a  cleresia,  cónegos,  be- 
neficiados, capeliaes,  cantores,  de  tochas  na  mao,  uns  a  pé,  ou- 
tros a  cavallo,  segundo  sua  jerarchia  ecclesiastica. 

O  marquez  mordomo-mór  precedia  o  coche  fúnebre,  que 
era  tirado  por  seis  frizões,  com  jaezes  e  adornos  de  luto,  e  ro- 
deado por  moços  da  camará. 

Após  o  coche,  montados  em  ginetes,  que  arrastavam  guai- 
drapas  negras,  cavalgavam  o  marquez  de  Marialva,  estribeiro- 
mór,  e  D.  Manuel  de  Sousa,  capitão  da  guarda  allemã. 

Todos  os  fidalgos  vestiam  capa  comprida,  e  traziam  longos 
crepes  pendentes  dos  chapéus. 

Tanto  o  carro  mortuário,  como  o  coche  de  respeito,  que  se 
lhe  seguia,  eram  acompanhados  pela  guarda  real,  e  os  regi- 
mentos de  infantaria,  que  estavam  postados  nas  ruas  do  tran- 
sito, iam  formando  atraz  d'este  ultimo  coche,  no  couce  do  cor- 
tejo fúnebre. 

A  marcha  foi  lenta  e  demorada,  de  modo  que  já  passava 
da  meia  noite  quando,  após  as  descargas  da  infantaria  no  largo 
de  S.  Vicente  de  Fora,  cessou  o  troar  da  artilharia  nos  fortes 
e  o  dobrar  dos  sinos  nas  egrejas. 

Toda  a  população  de  Lisboa,  n'aquella  noite  memoranda, 
se  recolheu  tarde. 

António  Lobo  e  Min  pareciam  impressionados  por  esse  es- 
tranho espectáculo  do  funeral  de  um  cézar  augusto;  Min,  com 
ser  estrangeira,  ainda  pouco  antes  de  adormecer  dizia  que  os 
portuguezes  tinham  razSo  para  chorar  a  perda  de  um  grande 
rei,  e  que  ella  própria  estava  perturbada  de  contagiosa  com- 
moçao. 

Pela  manhã,  António  Lobo  estranhou  a  falta  da  chineza. 
Perguntou  por  ella.  Havia  desapparecido,  levando  comsigo  todo 
o  dinheiro  que  encontrara. 

A  morte  tinha  roubado  um  rei  ao  seu  povo.  A  «tancareira» 
de  Cantão  roubara  todo  o  dinheiro  ao  amante. 

Noite  fatal  e  tremenda  ! 


V 


o  bando  do  Lobo 


António  Lobo,  quando  se  certificou  da  fuga  e  do  roubo, 
teve  uma  explosão  de  cólera  truculenta. 

Quiz  ir  queixar-se  ao  corregedor  do  bairro,  mas  o  estala- 
jadeiro disse-Ihe  que,  segundo  mais  de  uma  vez  ouvira,  a  man- 
ceba de  homem  solteiro  ou  casado  nao  podia  ser  demandada, 
nem  soffrer  pena  alguma,  pelo  roubo  que  lhe  fizesse.  Quanto  á 
pessoa  da  chineza,  acrescentou  ironicamente  que  já  devia  ir 
longe,  porque  partira  a  bordo  de  uma  nau,  que  levantou  ferro 
ao  romper  da  manhã,  e  áquella  hora  navegava  de  certo  no 
mar  alto. 

Philosophicamente,  concluiu  dizendo  : 

—  Em  mulheres  não  ha  que  fiar. 

Lobo  percebeu  tudo:  fora  aquelle  homem  o  agente  e  enco- 
bridor da  fuga ;  por  isso  Min  se  mostrava  tão  interessada  em 
saber  d'elle  noticias  a  respeito  da  enfermidade  de  el-rei.  Era 
um  pretexto  para  urdirem  o  seu  plano. 

Chammejante  de  indignação,  sentindo  accordar,  depois  de 
uma  longa  atrophia,  o  seu  génio  altivo  e  audaz,  António  Lobo 
encarou  de  frente  a  realidade  e  accusou  o  estalajadeiro  de  cúm- 
plice no  roubo  e  na  fuga. 

O  velho  Reboto,  sem  se  mostrar  extremamente  indignado, 
respondeu- lhe  com  um  sorriso  amarello  : 

—  O  que  pôde  você  fazer?  Ir  queixar-se  de  que  foi  roubado 
na  minha  estalagem?  Seria;  eu  próprio  acredito  essa  queixa. 
Mas  bem  sabe  quem  o  roubou.  Foi  a  manceba  com  quem  você 


o    I.OBO    DA    MADRAGÒA  63 


vivia,  e  que  lhe  fugiu.  A  lei  do  reino  isenta-a  de  toda  a  culpa. 
Vemos  casos  d'estes  todos  os  dias,  e  não  é  você  por  isso  mais 
infeliz  do  que  muitos  outros  homens.  De  mais  a  majs  estou  es- 
tabelecido ha  dezoito  annos  e  toda  a  gente  sabe  que  não  preciso 
roubar  ninguém  para  viver.  Quanto  a  ter  medo,  é  doença  que 
não  conheço:  andei  por  casa  do  diabo,  vi  deante  de  mim  mui- 
tos homens,  pretos  e  brancos,  também  vi  algumas  feras,  e 
nunca  mudei  de  côr.  Vamos  ao  que  importa :  vá  vêr  se  a  china 
ainda  lhe  deixou  com  que  pagar  os  últimos  dias  de  hospe- 
dagem. 

Lobo  mediu-o  de  alto  a  baixo  com  aiTCganho. 

—  Já  lhe  disse,  tornou  o  velho  amaciando  com  superiori- 
dade a  voz  e  a  phisionomia,  que  lhe  não  tenho  medo.  Você 
quer  ter  uma  briga  commigo?  Decerto  não  levaria  a  melhor; 
mas  que  levasse,  ficaria  ainda  mais  desgraçado  do  que  está.  E' 
muito  novo,  parece  gozar  saúde,  pôde  trabalhar,  tem  meio  de 
readquirir  o  perdido.  Se  vai  a  engulhar-se  com  a  primeira  peça 
que  uma  mulher  lhe  pregou,  não  lhe  chegará  a  vida  para  lasti- 
mas, porque  ha  de  encontrar  muito  d'isso.  Quer  você  matar  o 
bicho?  Ó  rapaz,  traz  d^ahi  Cartaxo  bom.  Beberemos  os  dois. 
Olhe  que  eu  sou  melhor  para  amigo  do  que  para  inimigo. 

António  Lobo  sentou-se  n'um  escabello  de  pinho,  com  a 
cabeça  escondida  entre  as  mãos.  Apetecia-lhe  matar  aquelle 
homem,  mas  as  palavras  d'elle  resoavam-lhe  ainda  nos  ouvidos 
como  um  clamor  de  verdade :  «Ficaria  ainda  m-ais  desgraçado 
do  que  está.»  E  Lisboa,  aquella  magestosa  Lisboa  que  elle  ti- 
nha visto  dias  antes  com  encantada  surpreza,  repugnava-lhe 
agora  como  um  covil  de  malfeitores  e  chatins,  de  que  aquelle 
estalajadeiro  cinico  era  a  expressão  immunda  e  vil.  Pudesse 
transportar-se  n'esse  mesmo  momento  a  Guimarães,  vêr  as  ar- 
vores e  os  montes  da  sua  infância,  a  casa  de  seus  pães,  as  ruas 
onde  brincara,  e  ainda  que  lá  tivesse  apenas  uma  hora  de  vida, 
morreria  tranquillo  e  contente. 

O  velho  Reboto,  como  se  lhe  adivinhasse  os  pensamentos, 
acercou-se  d'elle  e  disse-lhe  mansamente,  n'um  tom  quasi  pa- 
ternal : 

—  Seja  homem,  seu  Lobo!  e  pense  como  um  homem.  Não 
me  torne  a  mim,  nem  a  ninguém  a  culpa  do  que  succedeu. 
Quando  uma  mulher  quer  bater  as  azas,  não  ha  calabre  nem 
grilhão  que  possa  segural-a,  foge  como  um  passarinho  por 
qualquer  fresta  da  gaiola.  Ora  a  jóia  da  sua  china,  poucas  ho- 
ras depois  de  ter  entrado  aqui,  disse  que  por  força  queria  em- 
barcar para  Macau  ;  que  já  no  Porto  procurara  transporte,  mas 
que  o  não  encontrou;  e  que  por  esse  motivo,  só  por  esse,  qui- 
zera  vir  a  Lisboa. 


64 


o    LOBO    DA    MADRAGOA. 


António  Lobo  começou  a  vêr  claro,  a  lêr  toda  a  verdade 
nas  entrelinhas  do  passado,  reconhecendo  que  tinha  sido  ape- 
nas um  instrumento  de  ignóbil  especulação  nas  mSos  astutas 
da  chineza. 

Quando  um  homem  cái  moralmente  de  tao  alto,  uma  de 


António  Lobo  e  o  estalajadeiro 


duas  coisas  lhe  acontece  fatalmente:  succumbe,  se  é  um  fraco, 
um  triste,  um  doente;  resiste,  e  ri  de  si  mesmo,  se  tem  o  es- 
pirito e  a  saúde  florescente  de  António  Lobo. 

Elle,  ouvindo  todas  estas  revelações,  apenas  voltou  ao  pas- 
sado para  fazer  uma  pergunta  ao  velho  Reboto : 

—  Mas  por  que  nSo  inspiraria  eu  a  você  a  sympathia  bas- 
tante para  me  contar  tudo  isso  a  tempo  de  poder  dar  uma  lição 
severa  a  essa  reles  aventureira?  Tel-a-ia  esganado  como  a  uma 
cadella  que  nos  quer  morder. 


o    LOBO    DA    MA DRAGO A  65 


—  Pois  ahi  está :  por  isso  mesmo.  Tel-a-ia  esganado !  Bo- 
nita coisa  !  Gemeria  a  estas  horas  nos  ferros  d'el-rei,  seu  Lobo; 
mas  como  felizmente  não  aconteceu  assim,  achase  vivo  e  são 
como  um  pêro.  Você  mesmo  confessa  que  o  diabo  da  china  era 
uma  aventureira  reles;  olhe  que  valia  a  pena  ter  de  a  pagar 
por  bôa  1  Deixe-a  ir,  com  Belzebuth,  e  fique  de  pé  atraz  com  as 
aventureiras.  Tratemos  de  beber,  que  nao  vá  o  vinho  zangar-se 
de  o  fazermos  esperar. 

E,  dito  isto,  o  velho  Reboto  encheu  dois  copos,  passando 
um  a  António  Lobo,  que  o  poz  á  bocca  e  esvasiou. 

—  Que  tal?  perguntou-lhe  o  estalajadeiro. 

—  Bom  vinho,  respondeu  António  Lobo,  mas  forte. 

—  Nanja  forte.  Você,  segundo  me  disse  a  china,  é  de  Gui- 
marães. 

—  Sou. 

—  Pois  é  por  isso  que  lhe  parece  forte  este  Cartaxo.  Lá  no 
Minho  só  bebem  vinho  verde,  e  eu  não  o  posso  tragar;  arra- 
nha a  guella  como  se  fosse  uma  lixa.  Também  é  de  todos  os 
vinhos  portuguezes  o  único  que  não  quero  beber.  Que  eu  a  res- 
peito de  vinho,  e  mulheres,  só  de  Portugal. 

E,  enchendo  novamente  os  dois  copos,  continuou  pairando 
como  todo  o  bom  estalajadeiro  historista: 

—  Olhe,  seu  Lobo.  Quando  eu  embarcava  para  o  Brazil, 
tive  ocasião  de  conhecer  mulheres  de  muitos  paizes,  porque  o 
Brazil  é,  mal  comparado,  uma  torre  de  Babel,  aonde  vão  dar 
todos  os  estrangeiros  que  procuram  fortuna,  sejam  homens  ou 
mulheres.  Lá  me  avistei  com  as  brazileiras,  que  eram  gente  de 
casa,  e  que,  diga-se  a  verdade,  parecem  um  favo  de  mel,  mas 
eu  acho-as  doces  de  mais.  Lá  vi  gregas  e  italianas  e  francezas 
6  flamengas  e  moscovitas  —  até  moscovitas  da  Rússia!  —  mas 
com  franqueza  lhe  digo  que  me  não  fizeram  mossa  todas  essas 
aventureiras  errantes,  e  que  nunca  topei,  para  meu  gosto,  me- 
lhor mulher  que  a  portugueza.  Tenho  pena  de  não  saber  fallar, 
que  eu  lhe  diria  agora  quanto  vale  e  quanto  pesa  a  mulher  da 
nossa  terra.  Experiência  não  me  falta;  o  que  me  falta  é  a  lo- 
quella. 

E  bebeu  um  trago  de  vinho,  demorando-se  a  saboreal-o. 

—  As  nossas  portuguezas,  continuou  depois,  nem  são  tão 
moUes  como  as  brazileiras,  nem  tão  abelhudas  como  as  hespa- 
nholas.  Parece  que  Deus  nosso  Senhor  teve  muita  conta  no 
tempero  com  que  apurou  a  portugueza ;  nem  de  mais,  nem  de 
menos.  Pois  não  é  assim,  seu  Lobo? 

O  filho  do  ourives  de  Guimarães  começava  a  achar  uma 
estranha  graça  ao  bom  senso  pratico  d'aquelle  estalajadeiro  fi- 
nório, que  talvez  na  sua  vida  nunca  tivesse  aberto  um  livro. 


66  o   LOBO    DA    MADRAGÔA 


—  Nas  estrangeiras,  proseguiu  Reboto,  o  cabello  muito 
louro  e  a  pelle  muito  branca  encontram-se  a  cada  passo,  mas 
olhe  que  chega  a  gente  a  enjoar-se  de  estar  a  olhar  constante- 
mente para  aquelles  pires  de  creme,  onde  o  que  não  é  leite,  é 
canella,  e  o  que  não  é  canella,  é  leite.  E  o  que  me  diz  ás  ruivas, 
que  por  lá  se  encontram  avondo?  Parecem  feitas  de  cobre,  como 
as  caldeiras  dos  navios.  Mulheres  altas  como  torres  topam-se 
aos  milhares  por  todo  esse  mundo  de  Christo.  Mas  a  mulher, 
seu  Lobo.  se  é  a  companheira  do  homem,  deve  acompanhal-o 
em  tudo,  até  na  altura.  A  gente  não  ha  de  incommodar-se  a 
mandar  beijos  para  o  sette-estrello ;  perder-se-iam  muitos  no 
caminho.  Ora  a  nossa  portugueza. . . 

E  bebeu  novo  trago  de  Cartaxo,  pausadamente. 

—  Ora  a  nossa  portugueza  não  tem  felizmente  cabellos  de 
estopa  nem  de  linho  :  as  suas  tranças  e  os  seus  olhos  são  como 
certas  pedras  negras,  que  não  sei  que  nome  lhe  dão  os  ourives, 
mas  que  á  luz  do  sol  podem  ter  todas  as  cores,  até  a  do  oiro, 
sem  nunca  deixarem  de  ser  negras.  Os  rostos  —  oh!  lindos 
rostinhos  das  portuguezas !  —  são  morenos  como  as  fatias  de 
pão  torrado,  que  uma  boa  cosinheira,  quando  saiba  do  seu  oííi- 
cio,  não  deixa  tostar  de  mais  nem  de  menos.  As  portuguezas  f 
Nem  são  tão  altas  que  pareçam  torres,  nem  inteiriças  e  esguias 
como  fusos  de  fiar.  Se  a  gente  quer  levar  comsigo  uma  portu- 
gueza, dobra- a  como  se  fosse  uma  peça  de  cambraia,  que  se 
ageita  ao  conducto ;  mette-a  debaixo  do  braço,  e  para  qualquer 
parte  que  vá,  não  nos  dá  peso  nem  incommodo.  —  E'  verdade, 
oh  seu  Lobo !  diga-me  você  agora  se  também  é  da  minha 
opinião. 

António  Lobo  estava  já  outro  homem,  continuava  renas- 
cendo em  si  mesmo,  depois  d'esse  oppressivo  parenthesis  de 
escravidão  amorosa,  em  que  perdera  toda  a  exuberante  vitali- 
dade de  espirito  que  lhe  conhecemos  em  Guimarães. 

la-se  animando,  e  bebendo. 

—  Concordo,  não  ha  duvida ;  das  cachopas  da  minha  terra 
nunca  eu  tive  razão  de  queixa. 

—  Nem  ellas  certamente  de  você,  interrompeu  o  estalaja- 
deiro piscando  gaiatamente  um  olho. 

—  Está  bem  visto  que  não:  amor  com  amor  se  paga. 

—  Eram  portuguezas,  e  vonda. 

—  Vim  cahir,  como  um  patau,  no  estafermo  da  china. 

—  Bravo!  Você  já  lhe  chama  estafermo!  Está  aqui,  está 
curado.  Não  procure  mestre  cirurgião,  que  não  precisa. 

—  Curo-me  a  mim  mesmo, «que  é  mais  barato. 

—  Mas  olhe  que  eu  também  ajudei  a  tempo  com  a  mezinha. 

—  Não  digo  que  não.    Em   todo  o  caso  o  doente,  quando 


o    LOBO    DA    MADRAGOA 


67 


tem  animo,  auxilia  muito  a  cura.  E  eu  vou  dizer  a  você  o  sina- 
pismo  que  estive  deitando  no  coração  para  o  espertar. 

—  Então  qual? 

—  Um  soneto.  Você  sabe  o  que  é  um  soneto  ? 

—  Sei,  é  verso  ou  glosa.  Mus  você  fez  isso  sem  mole !  Diga 
lá  sempre,  que  hei  de  gostar  de  ouvir. 


António  Lobo  recitando  na  estalagem 


António  Lobo  recitou  um  soneto,  tão  duro  de  linguagem 
contra  a  chineza,  que  o  estalajadeiro  o  entendeu  perfeitamente, 
e  que  o  coUector  das  «Poesias  joviaes  e  satyricas»  não  ousou 
aproveital-o,  se  é  que  chegou  a  conhecel-o. 

Quando  António  Lobo  começava  o  primeiro  terceto,  entra- 
ram na  estalagem  dois  indivíduos,  que  deviam  ser  freguezes 
antigos,  porque  o  Reboto  acenou-lhes  familiarmente  com  a  mão, 
fazendo-lhes  signal  para  que  se  sentassem  e  ouvissem. 


68  o    LOBO   DA    MADRAGÔA 


Eram  dois  ginjas^  de  carSo  vermelhaço,  gordos,  pachor- 
rentos, amigos  de  bons  petiscos  e  boa  pinga. 

Lobo,  cego  de  fúria  poética,  continuou  recitando  e,  quando 
terminou,  tanto  o  Reboto  como  os  dois  recemchegados  irrom- 
peram n'uma  tSo  espontânea  e  unisona  risada,  que  o  estala- 
jadeiro, cahindo  em  si,  correu  á  meia  porta  que  estava  aberta, 
dizendo: 

—  O'  diabo!  ó  diabo!  E  a  morte  de  el-rei!  Que  não  fosse 
alguém  ouvir-nos. 

Poz  a  cabeça  fora  da  porta,  olhou  cuidadosamente  para  a 
direita  e  para  a  esquerda,  e  voltou  mais  tranquillo  por  nSo  ter 
visto  transeunte,  que  pudesse  estranhar  tamanha  risota  em 
occasião  de  luto  nacional. 

Ambos  os  ginjas  limparam  as  lagrimas,  que  os  dois  ter- 
cetos tinham  provocado. 

Um  d'elles,  o  mais  novo,  que  se  chamava  Anacleto  e  era 
natural  de  Angeja,  dizia: 

—  Caramba!  Nem  o  aCamões  do  Rocio»,  no  tal  poema  que 
lhe  attribuem,  foi  mais  longe  do  que  este  moço. 

—  Viva  lá,  cavalheiro!  disse  o  outro  ginja.  No  género,  é 
de  se  lhe  tirar  o  chapéu. 

O  Reboto  também  deu  a  sua  opinião : 

—  Conheci  em  Pernambuco  o  Gregório  de  Mattos,  e  ouvi 
por  lá  dizer  muitos  versos  d'elle.  Muita  vez  aqui  entrou  n'esta 
casa,  como  os  amigos  se  lembram  —  voltando-se  para  os  velhos 
—  o  Thomaz  Pinto  Brandão,  que  já  está  fazendo  tijolo  ha  uns 
bons  sete  annos.  Mas  com  franqueza  lhe  digo  que  de  nenhum 
d'elles  ouvi  coisa  que  se  parecesse  com  isto  !  Sabe  que  mais, 
seu  Lobo?  Você,  se  qui/er  ficar  em  Lisboa,  não  apanha  menos 
paparocas  e  petisqueiras  do  que  o  Pinto,  nem  ha  de  ser  menos 
conhecido.  Tome  nota  de  que  lhe  faz  esta  prophecia  o  velho 
Reboto,  que  tem  visto  muito  mundo  e  ouvido  muito  verso. 

Os  dois  ginjas,  especialmente  o  Anacleto,  tomando  com 
António  Lobo  a  mesma  familiaridade  que  já  tinham  na  casa, 
quizeram  ouvir  todo  o  soneto,  que  o  poeta  promptamente  repe- 
tiu, ainda  vibrante  de  indignação,  mãe  fecunda  de  versos,  se- 
gundo disse  Juvenal. 

António  Lobo  respondeu  ao  estalajadeiro  que  resolvera 
regressar  a  Guimarães,  sua  terra  natal,  e  pediu-lhe  que  sou- 
besse n'aquelle  mesmo  dia  quando  sahiria  algum  navio  para  o 
Porto. 

—  Bem  mal  faz,  contestou  o  Reboto.  Na  província,  um 
poeta  que  sabe  dizer  verdades  com  tanta  graça  ha  de  por  força 
andar  aos  empurrões  a  toda  a  gente,  que  aquillo  por  lá  é  muito 
pequeno  e  empilha  as  pessoas,  como  sardinha  em  tigela.  Mas 


o    LOBO    DA    MADHAGÔA  69 


OU  eu  me  engano  muito  ou  você  cá  tornará,  que  isto,  amigo, 
sempre  é  a  corte,  e  deixe  falar  quem  fala 

O  Anacleto,  apesar  de  ser  da  província,  também  abun- 
dava n'estas  ideias,  e  teimava  com  António  Lobo  para  que 
ficasse. 

Tanto  elle  como  o  outro  ginja,  não  perdendo  nunca  um 
pretexto  qualquer  para  comesaina,  offereceram  uma  ceia  ao  «en- 
diabrado poeta  de  Guimarães»,  n'essa  noite,  e  o  velho  Reboto, 
que  não  quiz  ficar  atraz  dos  seus  dois  freguezes,  teve  a  gene- 
rosidade de  dizer-lhe  que,  visto  querer  ir-se  embora,  e  haver 
sido  roubado,  dava  por  liquidado  o  resto  da  conta. 

O  estalajadeiro  não  era  homem  para  se  arruinar  com  fran- 
quezas. Amava  o  dinheiro  desde  que  aprendera  a  ganhal-o, 
com  algum  risco  da  pelle,  no  mar  e  na  escravatura.  E  para 
amar  o  dinheiro  não  ha  como  saber  quanto  elle  custa  a  ganhar, 
qualquer  que  seja  o  processo,  com  excepção  do  jogo.  Mestre 
Reboto  dava  facilmente  conselhos;  ás  vezes,  para  ir  fazendo  as 
pazes  com  o  céu,  também  dava  algumas  esmolas  em  vitualhas, 
que  sobejavam  na  cosinha  da  estalagem  :  mas  não  dava,  nem 
emprestava  dinheiro  a  ninguém. 

Ora,  declarando  saldada  a  conta  de  António  Lobo,  fizera 
apenas  uma  apparente  generosidade,  relativa  a  dois  ou  trez 
dias  de  hospedagem,  porque,  além  da  despesa  diária  dos  dois 
hospedes,  apanhara  á  chineza  boa  maquia,  para  que  ella  pu- 
desse embarcar  em  segredo.  De  modo  que,  ao  contrario  de 
perdei',  lucrara  muito;  e  assim,  se  a  chineza  roubou  António 
Lobo,  mestre  Reboto,  por  sua  vez,  roubou  a  chineza.  Justo 
equilíbrio  de  astúcias  e  nigromancias,  que  tornam  este  mundo 
o  melhor  dos  mundos  possíveis. 

O  filho  do  ourives  Diogo  embarcara  para  o  Porto,  d'onde 
seguiu  immediatamente  para  Guimarães. 

Quando  tornou  a  vér  a  sua  terra,  o  castello  do  conde 
D.  Henrique,  o  pago  dos  duques  de  Bragança,  o  campo  do 
Toural  e  a  casinha  de  seus  pães,  respirou  desopprimido  como 
se  lhe  tirassem  de  sobre  o  peito  um  peso  enorme,  que  o  es- 
magava. 

A  pátria  tem  attracções  irresistivelmente  consoladoras 
para  os  infelizes:  é  por  isso,  decerto,  que  os  grandes  crimi- 
nosos a  procuram,  indo  assim  cahir  facilmente  nas  garras  da 
policia. 

António  Lobo  não  voltava  criminoso,  se  não  é  crime  es- 
banjar em  pouco  tempo  a  herança  paterna,  reunida  á  custa  de 
trabalho  e  dedicação.  Mas  regressava  pobre  ou  quasi  pobre. 
Apenas  pudera  salvar  do  naufrágio  um  resto  de  dinheiro,  que, 
ao  partir  para  Lisboa,   lhe  não  coubera  talvez  nas  algibeiras 


70  o    LOBO    DA    MADRAGÔA. 


Lá  O  foi  encontrar  no  mesmo  esconderijo  que  o  pae  lhe  tinha 
indicado,  e  d'onde  elle  próprio  tirara  o  outro,  que  tão  rapida- 
mente desapparecera  por  entre  os  dedos  da  chineza. 

Commoveu-se  ao  pensar  na  vida  honesta  do  pae,  deante 
dos  destroços  d'aquelle  modesto  pecúlio,  que  o  honrado  ouri- 
ves juntara  migalha  a  migalha,  como  a  formiga. 

Mas  fora  passageira  essa  commoção,  porque  logo  o  dis- 
traíram as  suas  antigas  relações  amorosas,  contentes  e  ufanas 
de  que  elle  voltasse  no  amor  aos  sentimentos  patrióticos;  e  os 
seus  antigos  amigos  e  companheiros,  que  folgavam  de  o  ou- 
vir falar  do  Porto,  de  Lisboa  e  de  todas  as  aventuras  que  a 
chineza  lhe  proporcionara  depois  que  ambos  partiram  de  Gui- 
marães. 

Não  ha  nada  que  divirta  tanto  os  rapazes  como  a  historia 
de  uma  paixão  cara,  que  arrastou  á  pobreza ;  parece-lhes  uma 
divinisação  do  sacrifício.  A  antiga  lenda  do  tteu  amor  e  uma 
cabana»,  com  uma  côdea  de  pão  e  uma  sardinha  assada,  exal- 
ta-os  muito  menos,  chega  a  aborrecel-os  como  um  achado 
archeologico. 

Já  assim  era  no  século  xviii,  porque  já  assim  era  no  prin- 
cipio do  mundo. 

O  que  foi  a  convivência  de  Adão  e  Eva  senão  a  primeira 
vida  amorosa  dentro  de  uma  «cabana»  pittoresca :  o  Paraiso 
Terreal?  Eva  enfastiou-se  mortalmente  (nunca  este  adverbio 
teve  melhor  applicação)  d'aquella  doce  e  melancólica  sereni- 
dade :  por  isso  deu  ouvidos  á  serpente  tentadora  e  cravou  o 
dentinho  branco  na  maçã  prohibida.  Adão,  que  era  pouco 
mais  velho  do  que  Eva,  também  por  sua  vez  estava  aborreci- 
do ;  n^o  consta  da  Biblia  que  protestasse  contra  o  procedimento 
de  Eva. 

António  Lobo  via-se  a  dois  passos  da  pobreza  extrema,  e 
comtudo  não  pensava  em  trabalhar.  E'  que  o  trabalho  é  um 
producto  da  educação,  como  qualquer  outro.  E  aquelle  rapaz 
de  vinte  annos  fora  educado  a  ouvir  dizer  o  pae :  «Quem  deve 
aqui  trabalhar,  sou  eu.» 

Circumstancia  notável,  mas  exacta:  quanto  mais  António 
Lobo  se  aproximava  da  pobreza,  mais  altivo  e  despreoccupado 
se  mostrava.  A  recordação  de  Min  levava-o  a  querer  evitar 
novas  decepções  e  vexames,  até  no  amor.  A  experiência  é  uma 
escola  de  perversão,  a  peior  de  todas  as  escolas,  porque  é  a 
mais  pratica.  E  foram  as  raparigas  de  Guimarães  quem  mais 
soffreu  com  o  desastre  de  António  Lobo,  porque  elle  estava 
agora  desconfiado  de  todas  as  mulheres,  por  causa  de  uma.  Já 
nSo  era  o  mesmo  para  ellas,  tão  escrupuloso  e  tão  discreto  como 
tinha  sido. 


o    LOBO    DA    MADHAGÔA  71 


Nao  sei  quem  disse  que  o  peior  inimigo  da  mulher  é  a 
mulher.  Não  ha  maior  verdade  do  que  esta.  A  lição  recebida 
de  uma  mulher  desperta  sentimentos  de  desconfiança  e  repre- 
sália para  com  todas  as  outras. 

Voltando  á  sua  antiga  vida,  mais  derrancado  ainda  pela 
experiência,  António  Lobo  tornou-se  mal  visto  em  Guimarães. 

Os  frades,  divulgado  o  roubo  da  chineza,  accusavamn'o 
publicamente  de  ter  malbaratado  a  pequena  herança  do  ourives 
Diogo  e  agoiravam  mal  do  fim  d'aquelle  rapaz,  que  considera- 
vam perdido. 

Nem  elle  procurou  o  padrinho,  nem  o  padrinho  o  procurou 
a  elle. 

Os  velhos  amigos  do  ourives  voltavam  a  cara  para  o  lado, 
quando  António  Lobo  passava  por  elles,  e  os  fidalgos  wisigo- 
thicos  diziam  alto  e  bom  som  que  lhe  recusariam  uma  esmola 
se  elle  ousasse  pedir-lh'a. 

António  Lobo  sabia  tudo  isto  e  julgou  dever  medir-se  com 
toda  a  villa,  cambiando  indignação  por  indignação.  Compoz  um 
soneto  iracundo,  que  principiava  accusando  de  bêbados  os  vi- 
maranenses. 

Olha  tu,  Guimarães,  das  cortes  velhas 
Nenhuma  a  primazia  te  disputa  ; 
Ainda  que  baixa,  és  terrinha  enxuta, 
Onde  são  bem  chuchadas  as  botelhas. 

Depois  chamava  animaes  aos  frades  e  devassas  ás  mu- 
lheres. 

Concluia  pedindo  ao  céu  uma  limpeza  geral  para  Guima- 
rães, um  terremoto  que  não  deixasse  pedra  sobre  pedra,  como 
aquelle  que  trez  ou  quatro  annos  antes  tinha  destroçado  a  cidade 
de  Lima  no  Peru  : 

Assim  Jove  iramortal,  que  os  bons  estima, 
Te  ponha  a  mesma  mão  pelo  cabelio, 
Que  poz  ha  tempos  em  Calhau  de  Lima. 

Aqui  foi  Trova.  Os  vimaranenses,  quando  souberam  d'este 
soneto,  julgaram-se  offendidos  na  honra  das  suas  famílias,  e 
juraram  vingança. 

António  Lobo  apenas  sabia  de  noite,  acompanhado  por  ou- 
tros sucios  tão  irrequietos  como  elle,  se  bem  que  menos  notó- 
rios. Pagava,  emquanto  o  pôde  fazer,  as  despezas  do  vinho  e 
da  comesaina,  para  trazer  contente  e  unido  o  seu  bando,  que 
o  proclamava  o  primeiro  poeta  satyríco  do  Minhc». 

Já  na  villa  se  fallava  do  «bando  do  Lobo»,  que  infestava  a 


72  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


deshoras  as  ruas  de  Guimarães,  e  alvoroçava  os  pacíficos  ha- 
bitantes com  a  cantoria  de  glosas  chocarreiras. 

Em  contraposição  a  este  bando  organizou-se  outro,  capita- 
neado por  um  cutileiro  de  appellido  Raposo. 

Os  bandos  que  promoviam  arruidos  foram  durante  séculos 
um  «sport>  predilecto  da  mocidade  portugueza,  a  despeito  das 
«Ordenações»,  que  encarregavam  ao  corregedor  da  comarca  a 
missão  de  averiguar  se  das  «competências  ou  bandos  se  seguiam 
pelejas,  revoltas,  mortes  ou  outros  males  e  damnos». 

Mas  a  tolerância  dos  costumes  e  a  própria  organização  do 
serviço  dos  quadrilheiros,  que  eram  tirados  d'entre  os  cidadãos, 
e  não  estavam  para  arriscar  a  pelle,  nem  perder  as  noites,  fa- 
ziam que  continuasse  impunemente  a  tradição  dos  bandos  a 
despeito  das  «Ordenações.» 

A  lei,  em  Portugal,  tem  sido  sempre  lettra  morta. 

Houve  por  vezes  conflicto  entre  os  dois  bandos,  que  a  ronda 
dos  quadrilheiros  seria  impotente,  ainda  quando  o  tentasse, 
para  conter  em  respeito.  Ficavam  rachadas  algumas  cabeças, 
porque  os  varapaus  de  lódão,  principal  arma  do  minhoto,  ensa- 
rilhavam alto  com  o  fim  de  inutilizar  a  victima,  procurando- 
Ihe  o  craneo. 

O  bando  do  Raposo  era  talvez  mais  esforçado  que  o  do 
Lobo,  mas  não  provava  tanta  petulância,  nem  tanta  disciplina. 

E  a  razão  estava  em  (|ue,  no  primeiro  bando,  todos  se  jul- 
gavam tão  valentes  como  o  chefe,  ao  passo  que  o  Lobo,  entre 
a  sua  gente,  dispunha  de  superioridade  que  lhe  provinha  do 
talento  poético,  da  odyssea  amorosa  pelo  Porto  e  Lisboa,  das 
suas  fortunas  e  desastres  com  a  aventureira  de  Cantão,  e  até 
da  pobreza  em  que  se  encontrava,  como  todos  os  bohemios 
celebres. 

Não  era  a  vara  de  lódão  a  única  arma  contundente  que  o 
bando  do  Lobo  sabia  manejar.  O  seu  chefe,  improvisador  temí- 
vel, lingua  solta  e  maligna,  possuia  outra  arma  talvez  mais 
perigosa  para  os  adversários :  era  o  verso,  que  chega  ao  inte- 
rior dos  conventos,  dos  palácios,  das  tabernas  e  alcouces, 
muito   mais  elástico,   portanto,  do  que  um  varapau  qualquer. 

Peior  ainda  que  tudo  isso,  o  verso  ficava  na  memoria  do 
povo  como  um  elemento  dissolvente,  um  gérmen  de  anarchia  e 
revolta  contra  as  tradições  sociaes. 

Todos  os  dias,  um  novo  soneto  de  António  Lobo  desabava 
sobre  Guimarães  como  chuva  de  granizo  que  batesse  em  todas 
as  vidraças  e  cantasse  em  todos  os  telhados. 

Não  havia  outro  remédio  senão  ouvil-o,  e  todas  as  classes 
da  população  se  iam  mostrando  aggravadas  porque  o  dicaz 
poeta  não  poupava  nenhuma. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  73 


Viviam  na  villa  alguns  homens  instruídos,  cultores  das 
bellas-artes,  e  esses,  mais  que  nenhuns  outros  talvez,  se  in- 
quietaram com  os  rudes  ataques  d'aquello  novo  e  destemido 
collega,  que  parecia  disposto  a  flagellal-os. 

Haviam  fundado  em  dezembro  de  1724  uma  «academia  vi- 
maranense», na  qual  se  agruparam  fidalgos  eruditos,  cónegos 
da  real  coUegiada,  doutores  em  leis,  abbades  do  concelho, 
n'uma  palavra,  a  fina  flor  das  lettras  de  Riba-Vizella. 

Gastavam  o  seu  tempo  n'essas  pomposas  ninharias  que 
caracterisaram  as  nossas  academias  em  geral,  e  faziam  sessões 
solemnes  muito  apparatosas,  taes  como  as  celebradas  em  1747 
e  1748  na  presença  do  arcebispo  D.  José  de  Bragança. 

António  Lobo  armou  o  seu  arco  de  sagitario  audaz  contra 
a  «academia  vimaranense»,  e  desfechou, 

Ahi  vae  amostra  do  impetuoso  ataque  contra  os  académi- 
cos olympicos : 

Mil  parabéns  te  dou,  ó  pátria  amada, 
Victor  serio,  deixemos  zombaria, 
Pela  raça  da  nova  poesia 
Que  tão  castiça  tens,  tão  propagada  ! 

Para  bem  seja  aquella  barrigada 
Que  de  poetas  encheu  a  academia  ; 
Se  deu  treze  por  dúzia,  e  a  demasia  ! 
Santo  António  abençoe  esta  ninhada  ! 

Ninguém  julgue  ser  erro  do  lunario 

Que  esta  terra  sem  tempo,  e  sem  semente 

Produzisse  um  bom  fructo  litterario: 


Que  o  brotar  tanta  Musa  de  repente 
Foi  enxerto,  que  fez  o  secretario 
Na  carcunda  do  douto  presidente. 

O  odio  litterario  é  o  mais  rancoroso  de  todos  os  ódios. 

De  modo  que  os  vimaranenses  poderiam  perdoar  as  in- 
vectivas contra  a  sua  villa,  mas  os  académicos  não  souberam 
mostrar-se  superiores  ao  desacato  feito  á  academia. 

Atiçada  por  elles,  cresceu  a  opinião  publica  contra  António 
Lobo,  e  com  ella  a  hostilidade  entre  os  dois  bandos  adversos. 

Uma  noite  houve  um  recontro  violento  em  que  foi  princi- 
palmente visada  a  pessoa  de  António  Lobo,  o  qual,  apesar  da 
enérgica  defeza  dos  seus  sequazes,  sahiu  mal-ferido  da  con- 
tenda. 


74  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Um  dos  aggressores  excedeu  a  todos  os  outros  no  afogo 
da  arremettida. 

Era  o  continuo  da  «academia  vimaranense.» 

António  Lobo,  defendendo-se  como  podia,  jurou-lhe  pela 
pelie  dizendo : 

—  Ah  !  villao  assalariado,  tu  m'as  pagarás  qualquer  hora. 
Tu  e  a  academia. 


VI 


Consequências  de  ama  rapaziada 


António  Lobo,  curado  o  ferimento,  continuou  a  levar  a 
mesma  vida. 

Nao  sahia  durante  o  dia,  e  gastava-o  entregando-se  á  lei- 
tura de  quantos  livros  os  seus  amigos  lhe  podiam  obter. 

Deu-se  a  cultivar  o  latim  e  o  francez,  que  tinha  começado 
a  aprender  em  Coimbra,  e  mostrava-se  avantajado  no  conhe- 
cimento d'essas  duas  linguas,  coisa  que  frei  Salvador  da  Guia 
nao  queria  acreditar,  quando  lh'o  disseram. 

Os  recursos  pecuniários  iam  faltando.  A  casinha  da  rua  de 
Santa  Rosa  de  Lima  estava  hypothecada  a  um  agiota  que,  para 
desaffrontar  Guimarães,  exigira  juros  leoninos.  De  vez  em 
quando,  António  Lobo  mandava  vender  ao  desbarato,  por  al- 
gum amigo,  qualquer  objecto  que  ainda  lhe  restava  da  herança 
paterna. 

A  pobreza  já  lhe  batia  á  porta,  e  comtudo  aquelle  rapaz 
corajoso  parecia  não  se  inquietar  com  o  dia  de  amanha. 

Tinha  o  estofo  peculiar  aos  bohemios  de  raça. 

Diz  com  verdade  o  padre  Ferreira  Caldas  fallando  de  An- 
tónio Lobo  na  sua  monographia  sobre  Guimarães:  «viveu  por 
muitos  annos  e  falto  de  meios  na  rua  de  Santa  Rosa  de  Lima.» 

Os  annos  de  miséria  que  passou  em  Guimarães  foram, 
principalmente,  os  que  decorreram  entre  1750  e  1756. 

A'  noite,  António  Lobo  deixava  em  paz  os  livros,  e  reu- 
nia-se  aos  seus  companheiros,  frequentando  com  elles  os  al- 
couces  e  as  tabernas,  onde  a  sua  graça  endiabrada  aflorava 
espontânea  no  calor  das  libações  e  dos  improvisos. 

Umas  vezes  por  outras  havia  desordens,  alimentadas  pela 


76 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


rivalidade  dos  dois  bandos  inimigos,  mas  a  população  iá  es- 
tava acostumada  a  esses  conflictos,  e  agora  preoccupava-se 
menos  com  elles. 

António  Lobo  encontrava  nos  bordeis  os  amores  laceis,  as 


o  continuo  |)reso^á  argola  pelo  baudo 


paixões  ephemeras,  que  as  Vénus  do  monturo  proporcionam 
aos  bohemios  pelintras. 

No  seu  coração  e  na  sua  lyra  não  passava  uma  doce  briza 
de  idealidade  amorosa. 

Era  que  elle  não  tinha  procurado  ainda  no  azul  uma  alma 
casta  de  mulher  que  não  fosse  tSo  frágil  e  tangivel  como  as 
outras,  e  que  por  um  momento  ao  menos  o  retivesse  no  pen- 
dor de  uma  existência  corrompida  e  malbaratada. 

Cada  vez  mais  empobrecido,  valiam-lhe  os  amigos  e  com- 
panheiros com  o  auxilio  de  mealhas,  dando-se  por  bem  pagos 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  77 


de  militarem  no  seu  bando  e  de  o  terem  por  chefe  e  modelo. 

Assim  ^foi  [o  tempo  decorrendo  até  que  um  acontecimento 
ruidoso  veiu  tornar  impossível  a  permanência  de  António  Lobo 
em  Guimarães. 

Certa  noite  o  seu  bando  encontrou  o  continuo  da  «academia 
vimaranense^»  que  recolhia  de  Braga  em  serviço  de  recovagem 
para  alguns  académicos. 

António  Lobo,  mal  que  o  viu,  antegostou  o  prazer  da  vin- 
gança. 

Prenderam-n'o,  e  Ievaram-n'o  para  a  rua  de  Santa  Rosa  de 
Lima,  onde  se  constituíram  em  tribunal  para  o  julgar  por  o  antigo 
delicto  commettido  em  desaffronta  da  «academia  vimaranense.» 

O  homem,  amordaçado,  cahia  de  joelhos  e  erguia  as  mãos, 
implorando  misericórdia  com  afflictivo  gesto. 

O  tribunal  funccionou  no  meio  de  uma  graça  esfusiante, 
que  irrompia  dos  discursos  burlescos  e  das  altitudes  cómicas 
dos  julgadores 

A  sentença  condemnou  o  réu  a  correição  publica  no  pelou- 
rinho da  villa,  o  qual  foi  substituído,  para  menor  responsabili- 
dade do  pseudo  tribunal,  por  a  argola  de  um  ferrador. 

Ahi  amarraram  o  padecente,  pondo-lhe  orelhas  de  burro, 
com  este  lettreiro :  «Castigo  que  em  logar  próprio  soffre  a  «acade- 
mia vimaranense»  na  pessoa  do  seu  mais  preclaro  ornamento.» 

O  primeiro  transeunte  que  passou  por  ali,  e  viu  esta  có- 
mica exhibição,  largou  a  rir  e  a  clamar:  «O'  gentes!  acudi  cá! 
vinde  vêr  esta  parodia  !» 

O  ferrador  abriu  logo  a  porta,  mas  já  então  acudiam  visi- 
nhos,  que  também  desatavam  a  rir. 

—  Quem  te  prantou  assim?  perguntaram  muitas  vozes. 

—  Foi  o  Lobo  e  o  seu  bando  esta  noite  quando  eu  vinha  de 
Braga. 

—  Fizeram-te  algum  mal  ? 

—  Fizeram-me  burro,  salvo  seja,  como  vós  estaes  vendo. 
E  emquanto  o   ferrador  desamarrava  o  nó  que  prendia  o 

padecente  á  argola,  retiniam  gargalhadas  dos  adultos  e  apupos 
do  rapazio. 

Qnando  a  noticia  d'este  hilariante  acontecimento  se  espa- 
lhou na  villa,  tornou-se  assumpto  geral  de  variadíssimos  com- 
mentarios. 

Na  vida  de  província  o  que  mais  se  deseja  encontrar,  ao 
começar  cada  dia,  é  um  assumpto,  uma  novidade  qualquer. 
Não  importa  que  seja  importante ;  se  o  não  fòr,  a  imaginação 
popular  lhe  dará  vulto  e  peso. 

D'esta  vez,  a  matéria  era  nova  em  folha  e,  de  mais  a  mais, 
piccaresca. 


78 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


Umas  pessoas  riam ;  outras  mostravam-se  indignadas. 

E  a  imaginação  popular,  trabalhando  sempre,  ia  acrescen- 
tando de  conta  própria  fabulosos  episódios,  que  ainda  mais 
aggravavam  a  situação. 

Dizia-se  que  o  continuo  da  academia  apparecera  mettido 
dentro  de  uma  pelle  de  burro ;  que  o  arreiaram  com  albardão, 
cabeçada  e  retranca ;  e  que  o  tinham  obrigado  a  comer  cevada, 


Vista  de  Amarante 


dizendo-lhe  ao  arraçoal-o :  tToma,  é  para  ti  e  mais  p'r'á  aca- 
demia.» 

Os  académicos  receberam  o  caso  muito  a  sério,  mostra- 
ram-se  irritadíssimos,  e  foram  queixar-se  do  aggravo  ao  cor- 
regedor da  comarca,  que  immediatamente  procedeu. 

António  Lobo  e  os  seus  companheiros  trataram  de  sal- 
var-se  fugindo,  logo  que  tiveram  conhecimento  da  queixa  da 
academia. 

O  Lobo  resolveu  ir  para  Villa  Real  de  Traz-os-Monles, 
acompanhando  um  dos  cúmplices,  Gaspar  Duarte,  que  era  de 
lá,  e  lhe  offerecera  hospitalidade  em  casa  de  parentes. 

Melteram-se  ao  caminho  inteiramente  desprovidos  de  re- 
cursos,  expiando,  légua  a  légua,  a  sua  estrondosa  rapaziada. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  79 


Mas  iam  alegres,  satisfeitos  da  proeza  que  tanto  havia  amofi- 
nado os  inclytos  académicos. 

—  A  esta  hora,  dizia  António  Lobo,  não  ha  sábio  em  Gui- 
marães que  nSo  peça  a  nossa  cabeça. 

—  Eu,  respondia  Gaspar  Duarte,  não  teria  duvida  em  em- 
prestai a,  se  tivesse  a  certeza  de  que  m'a  restituiam. 

—  Que,  a  dizer  a  verdade,  nao  nos  faria  muita  falta:  sem 
cabeça  temos  nós  ido  vivendo,  graças  a  Deus. 

—  Sim...  olha  que  eu  estou  capacitado  de  que  não  ter 
juizo  é  um  habito  alegre;  assim  como  ter  juizo  é  outro  habito, 
muito  menos  alegre  certamente. 

—  Por  essa  razão  os  académicos  de  Guimarães  devem  es- 
tar agora  ainda  muito  mais  alegres  do  que  nós. . . 

Eriam  ambos, comose levassem asalgibeirascheiasdedinhei- 
ro,  aquelles  dois  estouvados,  que  não  tinham  onde  cahir  mortos. 

Fizeram  caminho  em  direcção  a  Amarante  porque,  dissera 
Gaspar  Duarte,  era  terra  de  lindas  raparigas  e  de  bons  rapazes. 

—  E'  de  suppor,  acrescentou,  que  tenham  piedade  d'estes 
dois  execrandos  proscriptos  e  nos  dêem  hospedagem  por  algu- 
mas horas. 

—  Eu,  pelo  menos,  conto  com  a  protecção  de  S.  Gonçalo, 
respondeu  António  Lobo. 

—  Para  te  casares  com  alguma  velha  gaiteira  ? 

—  Não  !  por  ser  a  única  pessoa  de  Amarante  que  eu  co- 
nheço de  nome. 

Sempre  alegres  e  frescos,  como  se  caminhassem  por  gosto, 
deram  entrada  na  villa,  que  pittorescamente  se  escalona  á  mar- 
gem do  rio  Tâmega. 

O  súbito  advento  de  dois  rapazes  desconhecidos  despertou 
curiosidade,  como  sempre  acontece  na  província  quando  appa- 
recem  caras  novas. 

Entraram  na  estalagem  do  Janeco,  onde  António  Lobo  fez  a  sua 
apresentação  e  a  de  Gaspar  Duarte  dizendo  aofilhodoestalajadeiro: 

—  Já  cá  sabem  que  ardeu  em  Lisboa  o  Hospital  de  Todos 
os  Santos? 

—  Já  sabemos, 

—  Pois  nós  somos  dois  dos  doentes  que  tiveram  a  infelici- 
dade de  morrer  queimados. 

O  filho  do  estalajadeiro  achou  muita  graça  ao  dito,  que  foi 
como  faulha  de  que  brotasse  um  incêndio  de  popularidade  para 
os  dois  viajantes. 

Horas  depois  estavam  elles  relacionados  com  todos  os  ra- 
pazes de  Amarante,  a  cujos  olhos  ainda  mais  se  engrandece- 
ram quando  lhes  contaram,  despertando  ruidosa  alacridade,  a 
historia  da  sua  fuga. 


80  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Gaspar  Duarte  denunciou  os  dotes  poéticos  de  Lobo,  o  que 
pôde  já  considerer-se  um  pleonasmo  de  popularidade. 

—  Aqui  perto  em  Jazente,  disse  um  dos  rapazes  de  Ama- 
rante, também  ha  um  abbade  que  é  poeta. 

—  Como  se  chama  elle?  perguntou  António  Lobo. 

—  Paulino  Cabral  de  Vasconcellos. 

—  Nunca  ouvi  fallar. 

—  E'  filho  do  medico  da  quinta  do  Reguengo  e  ha  dois 
annos  que  está  parochiando  Jazente. 

—  Idade? 

—  Uns  trinta  annos.  Mas  é  já  tão  calvo  como  se  fosse  velho. 

—  Calvo? 

—  E  tem  muita  pena  de  o  ser,  porque  nao  desgosta  de  ga- 
lantear as  damas. 

—  O  maroto! 

—  Canta  de  preferencia  uma  Nize,  que  andamos  a  vêr 
quem  será. 

—  JMabo  !  disse  António  Lobo.  Todos  os  poetas  teem  uma 
Nize.  Só  eu  não  tenho  nenhuma!  E  que  tal  como  poeta  ? 

—  Dizem  que  bom. 

—  Isso  costuma  dizer-se  sempre  de  todos  os  maus  poetas. 

—  Por  ahi  gabam-n'o  muito,  especialmente  as  damas. 

—  E'  porque  lhes  faz  versos.  As  mulheres  sSo  como  os 
agiotas:  não  emprestam  nunca  sem  receber  juros.  E  eu  d'isso 
entendo  alguma  coisa. 

—  Das  damas? 

—  Entendo  ainda  mais  dos  agiotas. 
Gargalhada  geral. 

—  Outro  dia  fez  elle  um  soneto  a  Jazente. 

—  Alguma  dama? 

—  Nao,  senhor.  E',  como  ha  pouco  disse,  a  freguezia  onde 
está  por  abbade.  Fica  na  margem  esquerda  do  rio  Mendes, 
d'aqui  a  uma  hora  de  caminho. 

—  Já  me  não  lembrava  de  Jazente.  Vê-se  que  o  padre  só 
canta  o  género  feminino :  as  damas  e  as  íreguezias.  Mas  digam 
lá  o  soneto  para  a  gente  fazer  uma  idéa  do  homem. 

—  Apenas  sei  o  principio. 

—  Diga  sempre.  Pelos  domingos  se  tiram  os  dias  santos. 

—  Direi.  Começa  assim: 

Aqui  eobre  esta  penha,  que  defronte 
Me  fica  do  Marão,  sentar-me  intento, 
Para  lançar  ao  mundo  o  pensamento 
Antes  que  o  sol  se  metta  no  horisonte. 

—  O'  diabo!  exclamou  António  Lobo.  E'  philosopho  medi- 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  81 


tativo,  sentado  sobre  uma  penha,  a  olhar  para  um  monte.  Nao 
gosto  do  género.  Prefiro  a  satyra. 

—  Elle  também  tem  algumas  satyras. 

—  Também!  Ah  !  então  estou  com  a  minha  gente. 

—  Faz  satyras,  sim,  mas  não  gosta  que  lh'as  façam.  Outro 
dia  o  abbade  de  Jazente,  estando  deante  de  senhoras,  ia  a  tirar 
o  solidéo  e  veio-lhe  pegada  a  peruca. 

—  Oh!  que  bello  laniíe !  apostrophou  António  Lobo. 

—  Vai  depois,  outro  poeta  que  temos  cá,  Theodoro  de  Sá 
Coutinho,  fez-lhe  uma  glosa  e  diz-se  que  o  abbade  nSo  gostou. 

—  Nao  gostou  !  Talvez  por  serem  inimigos  ? 

—  Não,  senhor.  Sao  amigos.  Nao  gostou,  ao  que  parece, 
por  lhe  fallar  na  peruca  ;  do  mais  nao  se  importaria. 

—  Com  que  então  não  gostou?  Pois  tem  homem  pela  proa.  Faça 
favor  de  escrever.  Torne  a  dizer -me  como  o  padre  se  chama. 

—  Paulino  Cabral  de  Vasconcellos. 

—  Bem.  Então  escreva  lá. 

E  António  Lobo  dictou,  n'uma  impetuosa  pujança  de  im- 
provisação, este  soneto : 

Quiz  Paulino  ostentar  de  christandade, 
Co*a  careca  do  tempo  á  inclemência  ; 
Porém  esta  excessiva  reverencia 
Involve  circumstancias  de  vaidade  : 

Lembrou-se  que  em  cabellos  n'outra  idade 
Com  Abrahão  tivera  competência  ; 
E  que  faz,  vendo  a  calva  em  decadência  ? 
Pede  a  Deus  lhe  reforme  a  enormidade. 

Tirou  do  solidéo  ;  e  indo  a  erguel-o 

A  peruca  descobre  o  casco  liso, 

Onde  rastos  não  ha  nem  d'um  só  pêllo  : 

Mas  o  que  sobre  tudo  move  o  riso, 
E'  vèr  que  só  a  Deus  peça  cabello 
Quem  muito  mais  carece  de  juizo  ! 

As  gargalhadas  retumbaram  de  par  com  os  applausos, 
n'uma  enthusiastica  expansão  própria  de  rapazes  quando,  ines- 
peradamente, se  encontram  na  presença  de  um  outro  que  se 
impõe  a  todos  elles  pelo  duplo  prestigio  do  talento  litterario  e 
da  vida  bohemia. 

—  Vamos  agora  mandar  isto  ao  homem,  disse  serenamente 
António  Lobo,  para  vêr  se  elle  acode  á  puxada. 

E  logo  foi  chamado  um  portador,  que  levou  a  Jazente  o 
soneto -cartel. 

Paulino  Cabral  não  respondeu  immediatamente.  Tirou  in- 
formações, e  soube  que  o  auctor  era  um  rapaz  chamado  Lobo, 

6 


82  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


que  vinha  fugido  de  Guimarães  por  qualquer  estroinice  prati- 
cada em  desabono  da  sabia  academia  vimaranense. 

Resolveu-se  então  a  responder,,  nao  só  para  não  dar  o  braço 
a  torcer  como  poeta  satyrico,  mas  também  porque  tinha  ami- 
gos na  academia  de  Guimarães,  onde  elle  próprio,  alguns  annos 
depois,  glorificou  a  presença  do  arcebispo  D.  Gaspar  de  Bra- 
gança:  e  assim,  de  uma  cajadada,  ripostava  ao  bote  e  deprimia 
o  inquietador  dos  seus  amigos  vimaranenses. 

António  Lobo  recebeu  este  soneto,  que  era  a  desforra  do 
abbade  de  Jazente : 

Oh  !  que  ruslico  estás,  monte  Parnaso, 
Feito  pasto  de  «Lobos»  1  quem  dissera 
Que  uma  tão  atrevida  e  voraz  fera 
Teu  alto  nome  havia  deixar  razoH 

Da  tua  Cabalina  não  faz  caso 
Quem  puro  cysne  d'essas  aguas  era  ; 
Vendo  ter-te  ultrajado  a  clara  esphera 
Outro  bruto,  mais  feio  que  o  Pegáso  : 

A  Castalia  está  turva,  o  Pindo  secco 
E  até  o  mesmo  Apollo  erra  o  caminho 
Mettendo  se  na  venda  do  Janeco  ! 

Intractavel  estás,  pobre,  e  mesquinho ; 
Pois  teus  bellos  jardins  são  sujo  beco, 
E  teus  bellos  cristaes  botado  vinho  ! 

Se  António  Lobo  tivesse  de  ficar  em  Amarante,  este  so- 
neto, comquanto  apenas  contivesse  vagas  allusões,  seria  para 
elle  motivo  de  inextinguível  resentimento,  e,  para  ambos,  causa 
permanente  de  azedos  conflictos,  porque  a  verdade  é  que  os 
poetas  satyricos  sao  os  mais  susceptíveis  ás  satyras  dos  outros, 
sobretudo  á  primeira  satyra  que  os  alveja. 

Mas  a  resposta  do  abbade  de  Jazente  foi  já  recebida  quando 
Lobo  e  Gaspar  Duarte  iam  sahindo  de  Amarante  para  Villa 
Real,  preparados  como  peregrinos  para  atravessar  o  Marão, 
com  seu  alforge  cada  um. 

Forneceram-lhes  carinhosamente  as  provisões  do  caminho 
os  rapazes  de  Amarante,  que  os  acompanharam  até  á  distancia 
de  uma  légua,  e  se  despediram  d'elles  com  muitas  expansões 
de  saudade,  como  se  fossem  amigos  Íntimos  desde  a  infância. 

Cada  um  dos  que  ficavam  invejava  a  sorte  d'aquelles  dois 
fugitivos  estróinas,  que  iam  agora  metter-se  ás  ásperas  veredas 
do  Marão,  passagem  aliás  nada  convidativa  e  agradável. 

Por  sua  vez,  António  Lobo  e  Gaspar  Duarte  partiam  como 
para  uma  festa,  que  n'aquella   agreste  serra  lhes  tentasse  o 


o    LOBO    DA    MADHAGÔA  83 


animo  juvenil  com  desconhecidas  seducções  e  inéditos  attra- 
ctivos. 

Em  Amarante  offereceram  a  Gaspar  Duarte  uma  espingar- 
da, que  elle  acceitou,  porque  os  lobos  creados  nos  barrocaes 
do  Marão  poderiam  incommodal-os  no  transito.  Foi  feito  igual 
offerecimento  a  António  Lobo,  mas  elle  recusou-o  dizendo: 

—  Lobos  f  Não  tenho  medo  nenhum  d'elles.  São  da  minha 
familia.  Havemos  de  tratar-nos  como  parentes. 

Durante  o  caminho,  especialmente  até  á  Ovelha,  onde  a  ve- 
getação começava  a  ser  escassa,  muitas  vezes  Gaspar  Duarte 
chamou  a  attenção  de  António  Lobo  para  os  relances  de  formi- 
dável paizagem,  que  relampagueavam  por  entre  as  penhascosas 
quebradas  do  Marão. 

Ao  avistarem  o  valle  pittoresco  de  Anciães,  disse  elle  a  An- 
tónio Lobo : 

—  Olha  que  para  admirar  a  natureza  não  ha  como  viajar  a 
pé.  Dentro  de  uma  liteira  ou  a  cavallo,  o  horisonte  parece  dar- 
nos  a  impressão  de  nos  ir  acompanhando  monotonamente,  como 
um  arrieiro  a  que  ninguém  dá  importância.  Mas  quando  viaja- 
mos a  pé,  o  caso  é  differente,  somos  nós  próprios  que  procu- 
ramos os  pontos  de  vista,  reparando  n'elles,  e  para  melhor  os 
contemplar  subimos  um  cômoro,  trepamos  um  penedo  ou  per- 
demos alguns  passos. 

António  Lobo,  nada  contemplativo,  respondeu-lhe  dizendo 
que  a  natureza,  vista  uma  vez,  não  tinha  mais  que  vér:  era 
uma  linda  semsaboria,  que  já  não  offerecia  surpreza  a  ninguém. 

—  São  montes,  são  valles,  são  rios,  são  arvores,  são  ro- 
chedos. Com  estes  elementos  imprescindíveis  tens  que  variar 
o  quadro ;  portanto  a  variedade  não  pôde  ser  grande.  Quanto 
ao  homem,  isso  é  bem  differente.  Todos  os  dias  surgem  novos 
caracteres,  novas  perversões,  novos  crimes,  novas  loucuras, 
que  fazem  da  alma  humana  um  variadíssimo  panorama.  Eu 
pendo  mais  para  a  observação  do  homem ;  gosto  de  lhe  surpre- 
hender  as  paixões,  a  audácia  ou  a  fraqueza,  e  castigar-lh'as. 
Prefiro  Juvenal  a  Virgílio. 

Estas  palavras  são  como  um  nitido  reflexo  da  individuali- 
dade moral  de  António  Lobo ;  elle  a  si  próprio  se  julgava  com 
acerto. 

Sem  embargo,  e  parecendo,  á  primeira  vista,  contrariar  a 
sua  mesma  doutrina,  acrescentava  : 

—  Crês  tu  que  eu  me  conheça  tão  bem  como  agora  conheço 
estes  relances  do  Marão?  Pois  não  creias.  Quem  sabe  por  que 
metamorphoses  a  minha  alma  terá  de  passar  amanhã?  Quem 
sabe  que  espécie  de  mulheres  poderei  encontrar  no  meu  cami- 
nho? E  acredita  tu,  Gaspar  Duarte,  o  homem  não  é  outra  coisa 


84  o    LOBO    DA    MADRAGOA 


mais  do  que  um  pedaço  de  cera,  que  a  mulher  molda  capri- 
chosamente entre  os  dedos,  fazendo  d'elle  um  idiota,  um  heroe, 
um  anjo,  um  demónio  ou  um  monstro.  Tal  será  o  homem, 
qual  a  mulher  que  encontrar  cada  dia.  Já  vês  que  estou  intei- 
ramente dentro  da  minha  doutrina  :  o  que  o  homem  terá  de  ser 
amanha,  nao  o  sabe  ninguém.  E'  uma  surpreza  que  está  reser- 
vada para  todos,  até  para  elle  mesmo. 

Gaspar  Duarte  ouvia-o  com  reverente  fanatismo,  já  dis- 
posto a  despresar  os  aspectos  do  Marão  e  a  concordar  em  que 
só  o  homem  merece  ser  observado  entre  todas  as  manifesta- 
ções da  natureza. 

Felizmente,  não  tiveram,  os  dois  amigos,  maus  encontros 
na  serra.  Os  lobos  não  appareceram,  talvez  em  respeito  ao  pa- 
rente Encontraram,  sim,  alguns  pastores  que  andavam  guar- 
dando seus  rebanhos,  e  que  do  alto  dos  rochedos  vigiavam 
attentos  as  rezes  errantes. 

—  Estranhas  existências  estas!  disse  António  Lobo  indicando 
um  dos  pastores.  Aqui  tens  tu  aquelle  homem,  immovel,  além, 
sobre  o  rochedo.  O  que  pensa?  o  que  sente  elle?  Quem  sabe ! 
E'  um  livro  fechado  para  nós  ambos. 

—  Segundo  a  tua  doutrina,  pensa  n'uma  mulher. 

—  Que  duvida !  Pensa  n'uma  mulher,  que  talvez  não  pense 
n'elle.  Pensa  no  bem,  pensa  no  mal?  EUa  o  estará  inspirando 
de  longe,  enlouquecendo-o  talvez  como  se  fosse  uma  rajada  de 
vento  leste. 

—  Em  todo  o  caso:  infelizes  creaturas,  os  pastores.  Que 
tristeza  de  vida  a  d'elles ! 

—  infelizes,  por  que? 

—  Por  viverem  na  solidão. 

—  Quem  te  diz  a  ti  que  um  doce  pensamento  os  não  acom- 
panhe constantemente  na  solidão  das  montanhas?  Podes  crer 
que  a  maior  parte  d'elles  se  julga  feliz. 

—  Isso  agora ! 

—  Não  sabes  a  historia  do  rei  e  da  camisa? 

—  Não  sei. 

—  Pois  eu  te  conto:  Havia  um  rei,  sempre  triste,  que  não 
encontrava  prazeres  nem  cuidados  que  o  distraíssem.  Em  vão 
consultou  feiticeiras  e  magos  para  descobrir  remédio  á  sua  in- 
explicável melancolia.  Davam-lhe  beberagens,  ensinãvam-lhe 
exorcismos,  mas  o  rei  era  sempre  triste,  cada  vez  mais  triste 
ainda.  Um  dia  alguém  foi  dizer  ao  desgraçado  soberano  que 
apparecera  um  adivinho  eximio,  o  qual  sabia  o  principio  e  o  fim 
de  todas  as  cousas.  Foi  logo  chamado  á  corte  o  adivinho,^  e 
disse  ao  rei:  «Senhor,  a  causa  da  vossa  tristeza  foi  certamente 
um  sortilégio,  mas  é  fácil  combater  seus  funestos  effeitos,  com- 


o    LOBO    DA    MAEfRAGÔA 


85 


tanto  que  mandeis  procurar  a  camisa  de  um  homem  feliz  e  a 
vistaes,  cingida  a  vosso  corpo,  por  sete  dias  e  sete  noites.»  E 
desde  aquella  hora  toda  a  criadagem  do  rei  andou  em  cata  de 
um  homem  que  se  julgasse  feliz,  mas  nao  apparecia  nenhum, 


António  Lobo  e  Gaspar  Dnarte  atravessando  o  Marão 


porque  os  mais  contentes  sempre  accusavam  alguma  razão  de 
queixa  contra  o  destino. 

«De  uma  vez  foi  visto  um  pastor  tangendo  a  sua  frauta  e 
bailando  sósinho  na  chapada  de  um  monte.  —  Olá,  ó  pastor  f 
chamaram-n'o.  Tu  és  contente  com  a  tua  sorte?  —  Muito.  —  E 
consideras-te  feliz?  —  Muitíssimo.  —  Dá-nos  cá  a  tua  camisa, 
que  t'a  vamos  pagar  a  peso  de  oiro.  —  A  minha  camisa!  — 
Sim  —  Mas  eu,  senhores,  nao  trago  camisa.  Aqui  tens  tu,  Gas- 
par Duarte,  como  na  solidão  dos  montes  podem  os  pastores 
considerar-se  felizes.  » 

Os  dois  amigos  foram  amenisando  com  este  e  outros  des- 


86  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


enfados  de  espirito,  durante  umas  longas  dez  horas,  a  sua  ca- 
minhada através  do  Marão,  cujas  asperezas  soffreram  com 
alegria,  pouco  menos  alegria  que  a  dos  pastores  felizes,  se  não 
era  tanta. 

Já  se  avistava  ao  longe  no  ponto  culminante  de  Villa  Real 
a  egreja  do  Senhor  Jesus  do  Calvário,  quando  tornaram  a  en- 
contrar outro  rebanho  de  cabras. 

Era  guardado  por  uma  pastora,  que  estava  comendo  uma 
côdea  de  pão  e  uma  cebola  crua. 

—  Terá  camisa?  perguntou  maliciosamente  Gaspar  Duarte. 

—  Bem  vês  que  tem.  Mas,  apezar  d'isso,  é  tão  feliz,  que 
nem  sequer  deu  ainda  por  nós. 

—  Então  seria  menos  feliz  se  nos  visse? 

—  Não.  E'  que  vive  em  si  mesma,  sem  dar  attenção  a  mais 
nada. 

—  Olá,  cachopa  !  gritou  Gaspar  Duarte- 

A  pegureira  voltou  a  cabeça,  espantada,  e,  suspendendo  a 
mão  que  ia  levar  á  bocca,  respondeu  com  indifferença  : 

—  Adeus,  moços. 

Depois  continuou  a  comer  tranquillamente. 

—  A  pragmática  dos  trat^jmentos  não  chega  até  aqui  1  disse 
jovialmente  António  Lobo.  Esta  nossa  gente  do  norte  tem  uma 
rasoira  sensata  para  medir  as  idades,  que  são  a  única  base  da 
sua  classificação  social :  moços  e  tios.  Eu  não  fallei  em  Lisboa 
senão  com  o  estalajadeiro  Reboto  e  com  dois  jarrêtas  amigos 
d'elle,  mas  se  me  tivesse  avistado  com  pessoas  da  corte,  havia 
de  me  vêr  atrapalhado  para  lhes  não  errar  os  tratamentos. 
Adeus,  moços  f  E'  simples  e  próprio.  De  mais  a  mais  isto  veiu 
lembrar-nos  que  estamos  na  mocidade,  e  que  a  mocidade  nos 
auctorisa  a  fazer  todas  as  tolices  que  quizermos. 

—  Vamos  a  isso,  respondeu  rindo,  Gaspar  Duarte. 

D^ali  a  pouco  entravam  em  Villa  Real  pelo  bairro  de 
Almodena. 


VII 


Despedida  em  verso 


Foi  em  Villa  Real  de  Traz-os-Montes  que  António  Lobo 
de  Carvalho  pôde  livremente  dar  largas  á  sua  exaltada  imagi- 
nação de  rapaz  estróina  e  de  poeta  satyrico. 

Ali  entrara  já  com  a  sua  lenda,  que  fora  logo  espalhada 
por  Gaspar  Duarte.  Creara  immediatamente  novos  adeptos,  ra- 
pazes fortes  como  troncos  de  cedro  e  mais  valentes  que  os  de 
Guimarães. 

A  vida  era  também  mais  alegre,  porque,  apezar  dos  fu- 
mos de  fidalguia  que  divinisavam  algumas  famílias,  havia  maior 
sociabilidade  do  que  no  vetusto  e  somnolento  berço  da  monar- 
chia. 

Jogava-se,  bebia-se,  amava-se.  Muitos  conflictos  resol- 
viam-se  á  bordoada,  e  ninguém  ia  queixar-se  ao  corregedor  da 
comarca  como  em  Guimarães. 

As  aventuras  amorosas  eram  uma  tradição  galante  de 
Villa  Real :  António  Lobo  explicava  isto  dizendo  que,  por  ser 
frio  o  clima,  o  sangue  affluia  ao  coração,  aquecendo-o  de  mais. 

Entre  os  rapazes  que  andavam  na  borga  havia  trez  ou  qua- 
tro que  tinham  graça  e  talento.  Um  d'elles  chamava-se  Jorge 
Mariz,era  espirituoso  e  audaz,  e  affeiçoou-se  devotadamente  a 
António  Lobo,  tornando-se,  como  Gaspar  Duarte,  seu  compa- 
nheiro inseparável. 

Era  oriundo  de  uma  illustre  e  numerosa  familia  de  Riba- 
Corgo,  que  dera  muitos  frades  e  freiras  aos  conventos  de  todo 
o  reino. 


o    LOBO    DA   MADRAGOA 


Estudava  com  os  frades  de  S.  Francisco  para  seguir  a 
vida  ecclesiastica,  se  pôde  dizer-se  —  estudar  —  o  viver  como 
estudante  sem  propósitos  de  estudioso. 

Os  livros  eram-lhe  apenas  pretexto  para  receber  a  mezada, 


Um  aspecto  de  Villa  Eeal :  Porto  Eomao 


que  elle  se  apressava  a  dissipar,  gastando  sempre  mais  alegria 
que  dinheiro. 

António  Lobo  gozou  durante  dois  mezes  a  hospitalidade 
que  lhe  deram  os  parentes  de  Gaspar  Duarte,  mas  elle  próprio, 
comquanto  lhe  aborrecesse  o  trabalho,  procurara  a  maneira  de 
conquistar  maior  liberdade  de  acção,  ensinando  soffrivelmente 
francez  e  latim. 

Quando,  porém,  se  via  em  grandes  apuros,  mandava  me- 
moriaes  em  verso  ás  casas  fidalgas,  que,  segundo  a  moda  do 
tempo,  lh'os  despachavam  com  generosidade. 

Nós  hoje  não  comprehendemos  sem  repugnância  a  pedin- 
chice  dos  poetas  portuguezes  de  outr'ora,  especialmente  do  sé- 
culo XVIII,  mas  ahí  estão  as  obras  d'elles  a  demonstrar  o  facto, 
que  parece  lisonjeava  tanto  os  poetas  como  os  fidalgos. 

Aquelles,  inculcavam-se  victimas  do  mesmo  destino  atroz 
dos  seus  antigos  confrades  em  Apollo,  a  maior  parte  dos  quaes, 
pelo  menos,   viveu  na  ociosidade  e  na  miséria;  estes  vanglo- 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  89 


riavam-se  de  ser  cantados  e  louvados  como  illustres  Mecenas, 
protectores  das  musas. 

Acrescia  a  circumstancia  de  que  António  Lobo  era  tido 
na  conta  de  gracioso  e  ladino,  sendo  moda  em  Villa  Real  achar 
pilhéria  ás  suas  facécias  e  ribaldarias. 

Assoprado  por  esta  aura  lisonjeira,  elle  ia  avançando  em 
phantasias  doidas  de  turbulenta  bohemia,  estravagancias  rebus- 
cadas com  o  propósito  de  alimentar  a  celebridade. 

Uma  vez,  António  Lobo  e  os  seus  companheiros  insepará- 
veis lembraram-se  de  explorar  a  monomania  amorosa  de  um 
velho  tonto,  então  muito  conhecido  em  Villa  Real  pelo  dimi- 
nutivo de  Quinzinho,  escrevendo-lhe  apaixonadas  cartas  em 
nome  de  uma  supposta  dama  mysteriosa. 

Ella,  por  mSo  d'elles,  confessava-lhe  o  seu  ardente  amor, 
e  ao  mesmo  tempo  um  discreto  pejo  de  lhe  declarar  quem  fosse 
sem  estar  bem  segura  de  ser  correspondida  com  sinceridade  e 
firmeza. 

Quinzinho  respondia  a  ponto,  ardendo  em  curiosidade  e 
paixão,  offerecendo-se  para  dar  todas  as  provas  de  firmeza  e 
sinceridade,  que  a  mysteriosa  dama  lhe  exisse. 

Impuzeram-lhe  alguns  sacrificios ;  exigiram-lhe  que  se 
prestasse  a  exhibições  ridículas. 

Obrigaram-n'o  a  passar  em  certa  rua,  que  devia  ser  a  da 
bella  desconhecida,  com  uma  carga  de  lenha  ás  costas. 

Ora  n'essa  rua,  que  era  a  dos  Vazes,  moravam,  com  ou- 
tros estudantes,  António  Lobo  e  Jorge  Mariz. 

Quinzinho  cumpriu  a  imposição. 

Também  o  obrigaram  a  dar  serenatas  de  gaita-de-folles, 
passando  e  repassando  a  deshoras  na  mesma  rua, 

Os  rapazes  juraram  guardar  segredo  de  todas  estas  machi- 
nações,  emquanto  não  chegasse  a  hora  do  ultimo  lance  especta- 
culoso  que  tinham  combinado. 

Queixavam  se  os  visinhos  de  ser  accordados,  alta  noite, 
pelo  toque  repetido  e  insistente  da  flagelladora  cornemusa. 

—  Quem  a  tange  é  o  Quinzinho. 

—  Quinzinho!  Está  cada  vez  mais  tolo! 

Houve  quem  logo  alvitrasse  que  devia  andar  em  tudo 
aquillo  alguma  tramóia  gaiata  do  Lobo  e  dos  outros. 

Mas  elles  negavam  tão  obstinadamente,  que  conseguiam 
ser  acreditados. 

Muitas  pessoas  perguntaram  ao  próprio  Quinzinho : 

—  Por  que  andas  tu,  fora  de  horas,  a  tocar  gaita-de-folles? 

—  E'  cá  uma  coisa...  respondia  elle  com  vaidosas  reti- 
cencias. 

—  Volta  de  amor? 


90  o   LOBO    DA   MADRAGÔA. 


—  E'  cá  uma  coisa. . . 

—  Quem  pôde  ser  na  rua  dos  Vazes?  A  mulher  de  Fulano? 
A  cunhada  de  Sicrano? 

E  o  Quinzinho,  muito  lépido: 

—  E'  cá  uma  coisa. . . 

A  verdade  é  que  elle  sabia  tanto  como  todas  as  outras 
pessoas. 

Ao  cabo  d'estas  provas,  que  se  repetiram  durante  muitas 
noites,  Quinzinho  recebeu  uma  carta  mais  confiante  e  auspi- 
ciosa. 

A  sua  dama  estava  satisfeita,  contente  de  saber-se  amada 
com  verdadeira  dedicação.  Como  recompensa,  concedia-lhe  uma 
entrevista  muito  intima,  que  devia  realizar-se  ás  duas  horas  da 
noite,  quando  em  Villa  Real  apenas  velassem  duas  pessoas : 
ella  e  elle. 

Abrir-lhe  a  porta  era  impossível,  mas  elle  podia  sem  receio 
subir  n'um  cesto,  que  estaria  pendente  de  uma  corda,  rente 
com  a  parede.  Onde  achasse  o  cesto,  ahi  era  a  casa :  condição 
única,  ir  com  os  olhos  vendados  apegando-se  aos  muros.  Nâo 
tivesse  medo  de  uma  queda,  porque  a  mysteriosa  dama,  auxi- 
liada por  uma  criada  confidente,  faria  subir  o  cesto  sem  perigo. 

No  amor,  concluía  a  carta,  tudo  depende  de  mutua  con- 
fiança :  acreditasse  Quinzinho  tanto  na  sua  dama,  quanto  ella 
acreditava  n'elle. 

Quinzinho  foi,  de  olhos  vendados,  tacteando  os  muros,  até 
encontrar  pendente  de  uma  corda  um  cesto  vindimo. 

Metteu-se  dentro  do  cesto,  que  principiou  a  subir  lenta- 
mente. Mas,  a  meia  altura  do  prédio,  o  cesto  parou. 

—  Meu  amor,  dizia  cautelosamente  Quinzinho,  puxa  mais 
a  corda. 

E  uma  voz,  que  parecia  feminina,  respondia  de  cima  no 
mesmo  tom : 

—  NSo  podemos,  e  somos  duas!  Ai  que  tormento!  que 
vergonha ! 

Quinzinho,  tendo  arrancado  a  venda,  perguntava  : 

—  Mas  onde  estou  eu? 

—  Estás  no  cesto,  filho. 

—  Nao  é  isso!  Pergunto  o  prédio. 

—  O  prédio  é  o  meu. 

—  Mas  quem  és  tu? 

—  Sou  a  mulher  que  te  ama. 

—  Então,  se  me  amas,  puxa  mais  a  corda. 

—  Nao  posso  ;  não  podemos. 

—  Ora  esta  !  EntSo  deixa-me  ir  para  baixo. 

E  de  cima,  a  mesma  voz,  simulando  grande  perturbação  : 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


91 


—  O  meu  pae  accordou  !  Foge  !  foge ! 

Fugir,  como?  Quinzinho,  se  tivesse  levado  uma  navalha, 
haveria  cortado  a  corda,  embora  apanhasse  um  tombo  mestre. 
Assim,  na  impossibilidade  de  escapulir-se,  agachou-se,  muito 


Qninziulio  pendurado  no  cesto 


encolhido,  dentro  do  cesto,  esperando  a  cada  momento  a  cólera 
implacável  de  um  pai  de  familia,  ultrajado  na  fachada  do  seu 
prédio. 

A  cólera  não  veio  nunca,  mas  veio  o  frio  da  manhã,  e  a 
certeza  de  que  a  bella  dama  não  apparecéria  mais. 

Quinzinho,  de  tempos  a  tempos,  gemia. 

Quem  poderia  ouvil-o  á  hora  do  somno  profundo  n'uma 
terra  de  província? 


92  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


No  dia  seguinte,  quando  Quinzinho  fez  rir  Villa  Real  in- 
teira, apparecendo  dentro  do  cesto  vindimo,  pendurado  da  ja- 
nella  de  António  Lobo,  soube-se  que  uma  visinha  tinha  ouvido 
gemer  de  noite. 

Ella  própria  o  confessou  dizendo : 

—  Ouvi,  mas  pensei  que  fosse  alma  penada.  Metti  a  cabeça 
debaixo  da  roupa,  e  rezei  um  Padre  Nosso,  a  tremer  com 
medo. 

Esta  brincadeira,  que  teve  em  toda  a  villa  um  «successo 
de  gargalhada»,  como  dizem  hoje  em  dia  os  francelhos  do  no- 
ticiário, foi  o  ponto  de  partida  para  a  organização  de  um  club, 
que  António  Lobo  planeou  com  o  propósito,  dizia  elle,  de  dar 
cabo  do  «rançoso  Amor  dos  lusos.» 

O  leitor  quer,  decerto,  que  eu  lhe  troque  isto  em  miúdos. 

O  «rançoso  Amor  dos  lusos»  era  o  namoro  por  meio  de 
«gargarejos  nocturnos»,  epistolas  amatorias,  sonetos,  glosas, 
madrigaes,  olhai-es  languidos,  ademanes  aífectados  e  outras 
denguices  piegas. 

As  freiras  clarissas  n5o  escapavam  a  este  programma  in- 
transigente, que  visava  também  a  supprimir  o  tiroteio  de  motes 
e  glosas  galantes  nos  abbadeçados,  vulgarmente  conhecidos 
pela  designação  de  «outeiros.» 

António  Lobo  escreveu,  com  a  collaboração  dos  seus  ami- 
gos, o  texto  do  programma,  justificando-o  primeiro  por  meio 
de  um  preambulo  elucidativo. 

Graças  ao  caderno  manuscripto  em  que  mão  desconhecida 
reuniu  as  memorias  biographicas  de  António  Lobo,  posso  trans- 
crever alguns  períodos  d'esse  revolucionário  preambulo : 

«Todos  os  animaes  nascem  predestinados  ao  amor,  por 
condição  natural  a  que  só  o  homem  obedece  com  conhecimento 
de  causa,  ao  passo  que  os  outros  seres  mais  inferiores  o  fazem 
cegamente,  apenas  por  bruto  instincto. 

«Que  uns  d'estes  seres,  occupando  logar  secundário  na  or- 
dem da  creação,  sejam  excessivamente  selvagens  no  amor, 
como  por  exemplo  os  tigres  e  ainda  os  gatos  que  d'elle3  deri- 
vam remotamente;  que  outros  sejam  em  demasia  ternos,  e  mi- 
mosos, taes  como  os  pombos,  coisas  são  essas  que  sem  esforço 
podem  comprehender-se ;  mas  deve  causar  justa  estranheza,  e 
até  repugnância,  que  o  homem,  dotado  da  faculdade  de  ra- 
ciocínio, não  saiba  graduar  suas  paixões  amorosas,  de  modo 
a  não  amesquinhar  nem  o  amor,  nem  a  razão,  nem  a  si 
próprio. 

«Em  o  nosso  paiz  os  amantes  e  namorados  chegaram  ao 
extremo  de  tornar- se  pessoas  ridículas,  que  merecem  escar- 
neo.  São  peraltas,  chechisbéos  em  ponto  de  rebuçado,  são  es- 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  93 


padachins  por  amor,  sSo  freiraticos  de  grade,  são  vates  de 
olhos  em  alvo  e  mão  no  peito,  sSo  jarretas  de  flor  serôdia,  são 
fedelhos  a  engatinhar  para  o  templo  de  Gnido,  são  todos  elles 
uma  sucia  e  cambada  de  parvoeirões  amanteticos,  que  devem 
ser  corridos  e  monteados  para  onde  nào  tornem  a  fazer  damno 
á  dignidade  humana,  nem  prejuizo  ao  senso-commum. 

«D'esta  entrepreza  tao  necessária  como  sympathica  encar- 
rega-se  voluntariamente  o  «Grupo  philosophico  de  Villa  Resl», 
que  de  tão  louvável  resolução  deita  o  presente  clamor,  para  co- 
nhecimento e  governo  de  todos  os  habitantes  de  um  e  outro 
sexo. 

«Amem  os  portuguezes  as  portuguezas,  que  não  ha  mais 
bellas  mulheres  no  orbe  terráqueo. .  .» 

Aqui,  não  resistimos  á  tentação  de  interromper  o  pream- 
bulo para  lembrar  que  se  está  lendo  nas  entrelinhas  a  recorda- 
ção da  perfídia  de  Min  e  da  patriótica  parlenda  do  estalajadeiro 
Reboto  em  Lisboa. 

A  experiência  é  a  mestra  da  vida,  por  ser  a  historia  d'ella, 
escripta  por  cada  homem. 

<Amem-n'as,  continua  o  preambulo,  porque  é  seu  natural 
e  seu  goso.  Amem-n'as  com  puro  ou  impuro  amor,  com  vil 
egoismo  ou  nobre  desinteresse,  mas  devem  fazel-o  sem  den- 
guice,  nem  requebro,  nem  galanteria  excessiva,  que  torna  di- 
gna de  riso  uma  sublime  lei  da  natureza  e  um  fraternal  preceito 
da  religião  christã. 

«Ame- se  a  camponeza  ou  a  dama,  a  pastorinha  do  monte 
ou  a  fidalga  de  solar^  mas  amem-se  para  que  ellas  o  saibam, 
não  para  que  o  saibam  todos.  Seja  um  negocio  entre  dois,  e 
não  uma  transacção  publica  e  notória.  Dizem  os  chatins  que  a 
alma  do  negocio  é  o  segredo;  pois  seja-o  também  d'este  nego- 
cio em  que  dois  corações  ajustam  viver  um  para  o  outro,  com 
interesse  commum. 

«Guerra  aos  peraltas  e  casquilhos  enamorados,  aos  pinta- 
legretes  e  tafues  namoradiços.  Guerra  aos  freiraticos,  aos  assu- 
carados  e  delambidos  galans.  Fiquem  só  os  amantes  que  sai- 
bam honrar  a  sua  espécie  e  a  sua  pátria,  bem  como  o  bello 
sexo,  que  devem  saber  merecer». 

Este  preambulo  é  um  grito  revolucionário,  lançado  em  pleno 
século  xvni  contra  a  pieguice  amorosa  dos  portuguezes,  que  já 
vinha  do  século  anterior  como  sendo  moda  e  tradição  geral  - 
mente  acceita. 

Ha  n'esta  brincadeira  de  rapazes  o  que  quer  que  seja  de 
alto  programma  de  restauração  nacional  pela  sobriedade  do 
sentimento,  e  de  restauração  da  raça  pelo  corte  cerce  dos  vicios 
de  educação. 


94  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Nao  deve  admirar-se  o  leitor  se  lhe  eu  disser  que  a  este 
pregão  respondeu  logo  outro  pregão  de  um  grupo  que  a  si 
mesmo  se  denominou  «tradicional»,  e  cuja  doutrina  se  oppunha 
fundamentalmente  á  de  António  Lobo  e  dos  seus  amigos. 

Aqui  temos,  pois,  constituídas  em  Villa  Real  duas  espécies 
de  «academias»,  ao  gosto  d'aquelle  século,  para  discutir  e  dis- 
sertar sobre  theses  philosophicas ;  com  a  differença,  porém, 
de  que  estes  jovens  académicos  juntavam  a  acção  á  pala- 
vra, e  combatiam  a  braços  depois  de  terem  discutido  littera- 
riamente. 

Vê-se  que  o  espirito  de  António  Lobo  avançava  e  progre- 
dia, porque  em  Villa  Real  já  o  infeliz  amante  de  Min  nSo  era 
apenas  o  chefe  de  uma  horda  de  revoltos  arruaceiros,  mas  de 
um  grupo  de  rapazes  que  desfraldavam  um  pendão  litterario, 
comquanto  não  estivessem  ainda  isentos  da  pecha  do  tempo:  o 
«sport»  da  arruaça. 

O  «grupo  philosophico»  fazia  correrias  nocturnas  em  Villa 
Real  com  o  fim  de  impedir  os  «gargarejos»  e  as  serenatas,  no 
que  encontrou  apoio  ém  todos  os  pais  de  familia,  que  diziam 
rindo:  aCom  esta  brincadeira  lucramos  nós;  sempre  é  uma 
ronda  vigilante.» 

Houve  collisões  entre  os  dois  grupos,  mas  o  maior  confli- 
cto  occorreu  por  occasião  de  um  «outeiro»  no  convento  de 
Santa  Clara. 

Fecharam-se  dentro  da  grade  os  freiraticos  para  glosar  os 
motes  das  clarissas,  e  saborear  os  pasteis  e  o  o  Porto»  que  el- 
las  galantemente  liberalisavam  aos  seus  poetas. 

O  «grupo  philosophico»,  querendo  estorvar  a  festa,  mu- 
niu-se  de  tambores,  zabumbas,  trombones,  requintas,  chaves 
e  panellas  velhas  e  marchou  em  pé  de  guerra  para  o  campo  do 
Tabolado. 

Estava  o  «outeiro»  no  apogeu  do  enthusiasmo  poético, 
quando  chegou  á  portaria  do  convento,  com  o  mais  discreto 
silencio,  esta  «troupe»  de  endiabrados  instrumentistas. 

Em  occasião  de  abbadeçado,  a  liberdade  e  o  regosijo  nos 
conventos  eram  communs  ás  madres,  ás  noviças  e  até  ás  cria- 
das da  casa,  vulgarmente  denominadas  «tachos.» 

Ao  passo  que  as  freiras  se  ajuntavam  em  tertúlia  na  grade 
da  abbadeça,  escapando-se  alguma  d'ellas  para  qualquer  outra 
grade,  onde  de  relance  pudesse  trocar  um  segredo  com  o  apai- 
xonado galãn  ;  as  criadas  vinham  para  as  janellas  e  d'ahi  ati- 
ravam motes,  gulodices  e  beijos  aos  felizes  dominadores  dos 
seus  corações. 

De  modo  que  pôde  dizer-se  que  os  «outeiros»  eram  dois, 
o  das  freiras  e  o  das  criadas,  por  igual  animados. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  95 


Na  grade  da  abbadeça  havia  mesa  posta  durante  trez  noi- 
tes consecutivas;  serviço  permanente  de  bolos,  pudins,  fiam- 
bres,  vinhos  e  licores. 

As  freiras  estavam  enjauladas  ao  fundo  da  grade  e  senta- 
das em  cadeiras  de  espaldar,  dispostas  em  semicírculo. 

Da  parte  de  fora  agrupavam-se,  em  torno  da  mesa,  os  frei- 
raticos,  que  ordinariamente  se  punham  em  pé  para  recitar  as 
suas  glosas.  • 

Motes  e  glosas  eram  outros  tantos  vehiculos  amorosos, 
que  transportavam  declarações,  galanteios,  ás  vezes  remo- 
ques ciumentos,  do  interior  para  o  exterior  da  grade  e  vice- 
versa. 

E,  quando  era  preciso,  também  a  «roda»  trabalhava  pas- 
sando, de  dentro  para  fora  ou  de  fora  para  dentro,  uma  epis- 
tola, um  mimo,  qualquer  lembrança  gentil,  que  assim  escapa- 
vam á  observação  do  conspícuo  auditório. 

Dentro  da  grade,  havia  nos  «outeiros»  d'aquelle  tempo  um 
«cravo»  ou  espineta,  espécie  de  piano  primitivo,  em  que  as  frei- 
ras se  acompanhavam  para  cantar  algum  dos  «minuetes»  então 
em  voga. 

A  abbadeça  e  as  outras  monjas  fingiam  não  entender  que 
a  volta  d'ellas  Cupido  esvaziava  o  carcaz  despedindo  settas  in- 
cendiarias. 

Já,  na  sua  mocidade,  tinham  aquellas  vetustas  madres  sido 
attingidas,  em  occasião  idêntica,  por  iguaes  farpões.  Conheciam- 
Ihe  a  tempera,  o  impulso  e  o  sybillo.  E  sorriam  gravemente, 
como  n'um  êxtase  pudibundo,  recordando  doces  horas  do  pas- 
sado, ternas  memorias  fugitivas,  que  ellas  estavam  agora  tra- 
duzindo mental  e  saudosamente  n'esta  simples  phrase :  «O 
amor.» 

As  criadas  das  Claras  deram  fé  de  se  aproximar  do  muro 
do  convento  um  rancho  de  homens  embuçados,  mas  julgaram 
que  seriam  Adónis  seus,  que  viessem  fazer-lhes  agradável 
surpreza. 

Estava  um  joven  ecclesiastico  no  afogo  de  glosar  um  mote 
que  lhe  dera  agua  pela  barba,  quando  de  repente  o  rancho  dos 
embuçados  rompeu  n'um  tremendo  charivari  alroador,  verda- 
deiro temporal  de  notas  dissonantes. 

O  mote  exigia  rimas  difíiceis  e  provocara,  por  isso,  a  atten- 
çâo  geral  : 

«O  coração  tem  caprichos». 

E  o  joven  ecclesiastico,  que  diziam  ser  admirador  platónico 
de  uma  noviça  trintona  de  Villa  Pouca  d'Aguiar,  tendo-se  final- 


96  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


mente  desembaraçado  das  dificuldades  da  glosa,  ia  dizendo 
com  inflammada  emphase : 

De  Amor  aos  doces  tormentos 
Não  resistem  trovadores, 
Nem  monarchas,  nem  pastores, 
Nem  cadeas,  nem  conventos, 
Nem  os  lapões  friorentos, 
Nem  os  aéreos  cochichos. 
Até  os  santos  dos  nichos. . . 

N'isto  esíusiou  como  inesperado  vendaval  um  conjuncto 
medonho  de  sons,  guinchos  agudos,  ribombos  rouquenhos,  fi- 
fias  irritantes,  que  arripiavam  o  ouvido  e  o  cérebro. 

O  joven  ecclesiastico  deteve-se,  muito  pallido,  com  os  «san- 
tos dos  nichos»  entalados  nos  gorgomilos,  talvez  por  castigo 
de  sua  irreverência.  E  todos  os  seus  ouvintes,  especialmente 
as  freiras,  não  menos  lividas  do  que  elle,  olhavam  uns  para  os 
outros,  surprehendidos,  confusos,  como  se  de  prompto  nSo  ati- 
nassem com  a  explicação  de  tão  estranho  successo. 

De  repente  uma  voz  exclamou  troando  para  se  fazer  ouvir: 

—  E'  o  «grupo  philosophico  !)) 

E  outras  vozes  confirmaram  muito  de  rijo : 

—  E'  o  grupo! 

—  E'  o  grupo ! 

Accenderam-se  então  os  espirites  guerreiros  dos  freiraticos, 
como  chamma  que  uma  súbita  viração  atiçasse. 

—  Temos  que  desaffrontar-nos,  berrava  um. 

—  Vamos  a  elles  !  alvitrava  outro. 

—  A  elles !  repetiam  muitos  ou  todos. 

As  freiras  não  quizeram  ouvir  mais.  Correram  em  tropel 
para  a  porta  interior  da  grade,  assustadas,  empurrando-se, 
acotovellando-se,  perseguidas  por  aquelle  ingente  fragor  de 
sons  discordes  que  se  repercutia,  retumbante,  no  vasto  corre- 
dor, mal  illuminado  por  lanternas  sextavadas  suspensas  do  tecto. 

Os  freiraticos  procuravam  as  nodosas  mocas,  de  que  por 
cautela  se  faziam  acompanhar  todas  as  noites. 

Alguns,  já  sobraçada  a  moca,  atafulhavam  os  bolsos  de 
rebuçados  e  pasteis,  outros  despejavam,  guellas  abaixo,  copos 
de  velho  «Porto»,  estimulando-se  para  a  briga. 

Em  dois  ou  trez  minutos  a  grade  tomara  o  aspecto  de  mu 
campo  de  batalha,  coberto  de  destroços  e  ruinas:  cadeiras  des- 
alinhadas, bolos  espalhados  fora  das  bandejas  de  prata,  vinho 
entornado,  copos  partidos  ou  tombados  sobre  a  mesa. 

A  hoste  dos  freiraticos,  disposta  em  ordem  de  batalha,  va- 
lentões á  frente,  abriu  a  porta  que  dava  para  o  Campo  do  Ta- 
bolado  e  sahiu. 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  97 


Sentindo  este  movimento,  o  «grupo  philosophico»  puxou 
com  maior  fúria  o  clangor  dos  trombones  e  a  percussão  das 
caixas  de  rufo. 

Era  uma  inferneira  de  ninguém  se  entender:  parecia  o  ini- 
cio de  um  combate  selvagem. 

E,  quando  os  freiraticos  avançaram,  António  Lobo  e  os 
seus  companheiros  jogaram  contra  elles  os  pesados  instrumen- 
tos como  armas  de  guerra,  ouvindo-se  então  o  retinido  aspér- 
rimo do  choque  das  mocas  com  os  tambores,  os  trombones  e 
as  panellas  velhas. 

O  combate  foi  rápido  e  decisivo.  Dentro  em  pouco  o  Campo 
do  Tabolado  estava  limpo  de  combatentes  válidos;  apenas  ja- 
ziam no  chão  trez  homens  inutilisados. 

Eram  dois  freiraticos,  e  Jorge  Mariz  Um  dos  freiraticos, 
justamente  o  joven  ecclesiastico  que  ficara  engasgado  com  a 
sua  glosa,  cahira  aturdido  pela  pancada  de  um  tambor,  que 
lhe  enfiaram  pela  cabeça  abaixo.  Jorge  Mariz  tinha  apanhado 
uma  forte  mocada  em  cheio  no  peito,  e  perdera  os  sentidos. 

António  Lobo  voltara  pouco  depois  com  Gaspar  Duarte 
para  reconhecer  as  victimas,  inquieto  por  lhe  faltar  Jorge  Mariz. 

Vendo-o  cabido  por  terra,  ambos  o  levantaram  em  braços. 

Quasi  ao  mesmo  tempo,  vieram  trez  freiraticos  procurar  os 
seus  correligionários. 

Uma  voz  de  mulher  disse  com  serena  firmeza,  do  alto  da 
janella : 

—  Parece  que  esses  dois  são  o  Padre  Gonçalo  e  o  Torcato 
de  Mouçoz. 

Ao  ouvir  pronunciar  estas  ultimas  palavras,  outra  freira 
deu  um  gritinho  de  saguim  e  recolheu-se  da  janella. 
Mas  aquella  mesma  voz  continuou  resolutamente : 

—  Se  precisardes  alguns  soccorros,  vinde  por  elles  á 
portaria. 

Então  Padre  Gonçalo,  o  da  glosa,  respondeu,  já  restabele- 
cido, desembaraçando-se  do  aro  do  tambor : 

—  Não,  minha  açucena.  Eu  não  preciso.  Estou  incólume. 
E  a  mesma  voz  de  mulher,  n'um  tom  de  orgulhosa  affouteza : 

—  Sois  um  verdadeiro  Roldão ! 

Jorge  Mariz  teve  uma  copiosa  hemopethise  durante  a  noite, 
o  que  alvoroçou  de  receio  e  cuidado  os  seus  amigos. 

—  Isto  não  está  bom,  disse  António  Lobo.  Para  este  rapaz 
se  tratar  necessitava  maior  descanço  e  commodidade. 

—  Se  me  levam  para  casa,  inquieto  minha  mãe,  pobrezi- 
nha I  Antes  para  Landim. 

—  E'  verdade !  Queres  tu  ir  para  Landim  ?  respondeu  An- 
tónio Lobo.  Arranja-se  uma  liteira,  e  eu  acompanho-te. 


98    '  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Entretanto  chegara  um  dos  do  grupo  e  dissera : 

—  António  Lobo!  tu  precisas  safar-te  quanto  antes. 

—  Então  só  eu  é  que  sou  culpado ! 

—  Somos  todos,  mas  tu  és  o  «Mafarrico  de  Guimarães», 
conhecido  como  tal,  e  toda  a  gente  se  queixa  de  que  accordou 
por  tua  causa.  Isso  é  que  te  nSo  perdoam:  que  lhe  estragasses 
a  noitada. 

—  Pois  dize  lá  a  essa  gente  toda  que  eu  vou  levar  o  Mariz 
a  Landim,  e  que  entretanto  podem  dormir  a  somno  solto. 

Foram  uns  arranjar  a  liteira,  e  António  Lobo,  vendo  Jorge 
Mariz  mais  tranquillo,  sentou-se  e  escreveu : 

Pátria  de  valentões,  paiz  guerreiro, 
Só  tu,  Villa  Real,  comtigo  falio ; 
Vão  Pansas  e  Roldões  jogar  o  talo, 
Ou  vSo  na  tua  escola  andar  primeiro. 

Quem  ha  que  os  teus  aguarde  no  terreiro, 
Se  até  S.  Jorge  foram  desmontal-o, 
Pois  indo  nas  mais  terras  a  cavallo 
N'esta  é  capucho  o  santo  cavalleiro  ! 

No  triumpho  de  Baccho  a  villa  armada, 
Uns  com  brancos  arnezes,  outros  tintos, 
Â's  moças  todas  dão  uma  assaltada. 

Fez-lhe  Baccho  os  broqueis,  compoz-lhe  os  cintoa 
E  soltou-lhe  um  pendão  co'  esta  fachada  : 
Todos  são  pobretões,  mas  mui  distinctos. 

Jorge  Màriz  abriu  os  olhos  e  perguntou : 

—  O  que  estás  tu  fazendo,  ó  LoboV 

—  Estou  a  despedir-me  de  Villa  Real. 

A  allusão  a  S.  Jorge  explica-se  pelo  facto  de  ter  o  senado 
villarealense  resolvido  que,  na  procissão  de  «Corpus  Christi», 
d'aquelle  anno,  o  guerreiro  santo  fosse  em  andor  e  não  a  ca- 
vallo. 

Quando  dois  os  trez  estudantes  tornaram  conhecido  em 
Villa  Real  este  soneto,  os  fidalgos,  tratados  de  pobretões,  man- 
daram os  seus  moxillas  em  perseguição  dos  fugitivos.  Alguns 
freiraticos,  sentindo  as  costas  quentes,  quizeram  acompa- 
nhal-os. 

Tem-se  escripto  que  António  Lobo  foi  alcançado  pelos  seus 
perseguidores  e  espancado  por  elles.  Esta  noticia  carece  de 
fundamento,  porque  entre  a  composição  do  soneto  e  a  organi- 
zação da  cavalgada  vingadora,  medearam  horas. 

Lobo  calculava  o  que  viria  a  acontecer  e  por  isso  não  per- 
deu tempo  no  caminho. 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  99 


Já  muito  a  seguro,  dizia  elle  a  Jorge  Mariz : 

—  A  esta  hora,  se  os  rapazes  divulgaram  o  meu  soneto, 
estão  rabiando  os  valentões  de  Villa  Real.  Olha  se  elles  me 
apanhassem  agora  lá ! 

Dentro  da  liteira,  António  Lobo  ia  distraindo  com  os  seus 
ditos  graciosos  e  picantes  o  pobre  Jorge  Mariz,  a  quem  o  ba- 
lanço do  vehiculo  incommodava  por  vezes. 

—  Desconfio,  dizia-lhe  Lobo,  que  esta  liteira  é  muito  mais 
brava  do  que  o  animo  dos  valentões  de  Villa  Real.  E  comtudo 
os  machos  são  apenas  dois.  Os  de  fora. . .  bem  entendido. 


VIII 


Therezinha 


E  agora  tornamos  ao  momento  em  que  este  romance  prin- 
cipiou. 

O  leitor  já  conhece  de  sobra  a  vida  airada  do  «Mafarrico 
de  Guimarães»  até  esse  momento,  em  que  uma  nova  phase  da 
sua  existência  ia  começar. 

Jorge  Mariz  chegou  a  Landim,  acompanhado  por  António 
Lobo,  mas  não  encontrou  seu  tio,  o  padre  Dom  Joaquim,  que 
estava  na  quinta  da  Palmeira  a  recrear-se  no  exercicio  da  pesca. 

—  Melhor!  disse  Jorge.  Vamos  para  a  Palmeira,  que  sem- 
pre é  mais  linda  e  variada  terra  que  Landim. 

A  jornada  era  curta,  de  Landim  á  Palmeira,  e  não  aggra- 
vou,  por  isso,  a  fadiga  de  Jorge  Mariz,  que  apesar  de  ter  ainda 
alguma  expectoração  sanguínea,  vinha  animado  da  esperança 
de  uma  cura  radical. 

Os  rapazes  confiam  tanto  da  mocidade,  quanto  os  velhos 
se  receiam  da  velhice,  que  já  de  si  mesma  é  uma  doença  grave. 

O  padre  Dom  Joaquim  Mariz  sobresaltou-se  quando  viu 
enfermo  o  sobrinho,  mas  approvou  a  mudança  de  ares,  e  rece- 
beu de  boa  sombra  António  Lobo,  cuja  apresentação  Jorge  fi- 
zera o  mais  summariamente  possível. 

E'  que  António  Lobo  lhe  tinha  recommendado : 

—  Não  digas  quem  eu  sou,  para  evitar  que  teu  tio  veja 
logo  em  mim  um  inimigo  dos  frades  e,  portanto,  um  péssimo 
hospede. 

Comtudo  esta  prevenção  não  teria  sido  necessária,  porque 


o    LOBO    DA    MADHAGÔA  101 


António  Lobo  se  mostrou  discreto  e  agradável  a  ponto  de  con- 
quistar as  sympathias  de  quantos  cónegos  regrantes  estavam 
«breviando»  na  Palmeira. 

Especialmente  Dom  Joaquim  Mariz  se  lhe  confessou  aííei- 
çoado  e  reconhecido  pelos  serviços  prestados  ao  sobrinho. 

—  Fizeste  bem,  dizia  o  cónego  a  Jorge,  em  trazer  um 
amigo  da  tua  mesma  idade  para  te  acompanhar  e  distrair.  Isto 
é  casa  de  padres,  cuja  recreação  única  se  resume  na  pesca. 
Nós  divertimo-nos  pouco,  e  ainda  menos  podemos  divertir. 

Estava-se  na  primavera  de  1758,  justamente  na  occasiào 
em  que  principiavam  a  recrudescer  as  hostilidades  entre  os 
cruzios  da  Palmeira  e  os  benedictinos  de  Santo  Thyrso  á  conta 
da  recente  construcção  da  «pesqueira  nova». 

António  Lobo  viu  logo  n'esta  questão  uma  variante  ao  seu 
génio  turbulento,  que  poderia  tornar  mais  agitada  a  vida  mo- 
nótona da  Palmeira. 

Sem  querer  saber  de  que  lado  estava  a  razão,  manifestou- 
se,  immediatamente,  a  favor  dos  cruzios  contra  os  bentos,  ani- 
mando-os  á  lucta  e  offerecendo-se  para  seu  auxiliar  e  pro- 
pugnador. 

Os  cruzios  gostaram  de  encontrar  um  rapaz  de  animo  va- 
loroso, que  de  nada  parecia  ter  medo,  e  redobraram  de  carinhos 
para  elle. 

Chegara  em  boa  hora,  no  momento  opportuno.  Agradece- 
ram á  fortuna  o  ter-lh'o  enviado  n'aquella  occasião,  e  fizeram - 
lhe  saber  que  folgariam  muito  de  o  reter  ali  como  seu  hospede. 

António  Lobo  estava  satisfeitíssimo :  tinha  boa  mesa  e  boa 
companhia,  gastava  o  tempo  na  caça,  na  pesca  e  na  leitura. 

De  vez  em  quando  sahia-se  com  alguma  satyra,  que  os 
padres  cruzios  apreciavam  devidamente,  sobretudo  quando  era 
desfechada  contra  os  seus  visinhos  benedictinos. 

Jorge  Mariz  ia  melhorando»  a  olhos  vistos,  mais  por  eífeito 
da  vida  tranquilla  que  ali  passava,  do  que  por  virtude  de  dro- 
gas medicinaes  que  houvesse  ingerido. 

O  tio  era  adversário  convicto  da  medicina  e  dos  médicos, 
aos  quaes,  como  outr'ora  Frei  Bartholomeu  dos  Martyres,  cha- 
mava {(trampões»,  isto  é,  mistificadores. 

—  A  saúde  ou  a  doença,  dizia  elle  ao  sobrinho,  é  o  próprio 
individuo  que  a  faz.  Eu  tenho  feito  a  minha  saúde.  Tu  fizeste 
a  tua  doença,  não  sei  como,  nem  quero  saber.  Mas  como  acer- 
tadamente te  propuzeste  agora  a  ter  saúde,  has  de  tel-a,  e  já  a 
vais  tendo,  que  nem  pareces  o  mesmo  de  quando  aqui  chegas- 
te. O  nosso  António  Lobo  esse  está  são  como  um  pêro.  Ainda 
elle  ha  de  compor  um  poema  em  honra  dos  bons  ares  da  Pal- 
meira e  das  lindas  vistas  do  rio  Ave. 


102  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


António  Lobo,  sempre  que  isto  ouvia,  agarrava  pelos  ca- 
bellos  a  opportunidade  de  adular  os  cruzios  : 

—  Eu  hei  de  cantar,  sr.  Dom  Joaquim,  mas  é  a  derrota 
dos  bentos  sobre  o  rio  Ave  no  dia  em  que  a  Palmeira  assegu- 
rar a  reivindicação  dos  seus  direitos  de  propriedade. 

Os  cruzios  riam -se,  e  por  sua  vez  o  estimulavam  dizendo  : 

—  Vamos  a  isso,  que  já  temos  as  nossas  hostes  augmen- 
tadas  com  o  feliz  advento  de  um  legionário  esforçado. 

E  António  Lobo,  sempre  no  mesmo  trilho  de  lisonja,  pon- 
do-se  em  attitude  de  continência  militar : 

—  Prompto,  meu  capitão. 

Passado  algum  tempo,  notaram  os  cruzios,  e  notou  Jorge 
Mariz,  que  António  Lobo,  não  obstante  mostrar-se  sempre 
muito  interessado  nas  contendas  com  os  benedictinos  de  Santo 
Thyrso,  parecia  menos  jovial,  e  um  nadinha  contemplativo, 
contra  a  inclinação  natural  do  seu  génio. 

—  Já  está  aborrecido  da  nossa  hospedagem  fradesca,  dis- 
se-lhe  um  dia  o  padre  Dom  Joaquim  Mariz. 

—  Pelo  amor  de  Deus !  contestou  com  sincera  vivacidade 
António  Lobo.  O  maior  sacrifício  a  que  poderiam  condemnar-me 
era  levarem-me  d'aqui  para  outro  sitio,  tão  bem  e  tão  contente 
estou. 

N'isto  fallava  o  Lobo  inteira  verdade. 

Os  cruzios,  em  vista  d'esta  peremptória  declaração,  con- 
cluíram que  o  hospede  tinha  faltas  de  dinheiro  e  cotisaram-se 
para  lhe  fazer  a  amável  surpresa  de  collocar  sobre  a  almofada 
do  seu  leito  um  dobrão  embrulhado  n'um  papel  que  dizia : 
«Lembrança  de  amizade  dos  padres  hospedeiros  ao  seu  estimá- 
vel hospede,  o  qual  certamente  os  desculpará  da  benévola  ou- 
sadia». 

Era  a  primeira  vez,  depois  da  morte  do  pai,  que  alguém 
lhe  facilitava  a  posse  de  uma  quantia  avultada. 

O  dobrão,  essa  linda  moeda  de  oiro  que  tinha  a  efíigie  de 
el-rei  D.  João  V,  valia  24$000  réis. 

Um  presente  que  parecia  cahir  do  céu. 

António  Lobo  também  explorou,  além  das  contendas  com 
os  frades  thyrsenses,  o  gosto  que  alguns  padres  cruzios  mos- 
travam em  praticar  com  elle  a  lingua  franceza,  que  a  respeito 
do  latim  bem  podiam  elles  ensinar-lh'o  a  fundo. 

D.  João  V  conseguira,  pelo  exemplo,  introduzir  em  Portu- 
gal os  usos  e  costumes  francezes,  as  cabelleiras,  as  camisas, 
as  canções,  todas  as  galanterias  de  Pariz.  Um  peralvilho  era 
um  «frança.»  Os  que,  fallando,  cultivavam  a  «francezia,»  mes- 
clando de  gallicismos  a  nossa  lingua,  começaram  a  ser  trata- 
dos de  francelhos  e  galliciparlas  pelos  bons  puritanos. 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  103 


O  gosto  pela  lingua  franceza  invadiu  os  salões,  as  acade- 
mias e  os  conventos. 

D.  João  V  morreu,  mas  a  moda  ficou. 
Os  cruzios  de  Landim  e  da  Palmeira  foram  também  na 
corrente  da  francezia,  como  os  seus  confrades  de  muitas  outras 
communidades  tanto  masculinas  como  femininas. 

Annos  volvidos,  o  abbade  de  Jazente,  Paulino  Cabral,  des- 
crevendo as  manias  ridículas  dos  frades,  só  achou  para  attri- 
buir  aos  cónegos  regrantes  a  de  gostarem  preferentemente  do 
idioma  francez. 

Refiro-me  a  um  soneto,  que  tem  aqui  opportuna  transcri- 
pçao : 

Desterrado  murmura  o  Jesuitn, 
O  Dominico  seu  logar  pretende, 
O  Nery  «Novos  Methodos»  defende, 
E  ás  ricas  confessadas  faz  visita: 

Intrometter-se  o  Grillo  premedita; 
O  Cruzio,  que  está  só,  «francez  aprende,» 
E  em  casa  do  juiz,  de  quem  depende, 
Entra  com  pés  de  lã  o  Carmelita: 

O  Capucho  no  estrado  toma  assento, 
Exorcisma,  e  responsa  qual  juer  damno, 
E  depois  sempre  traz  para  o  convento: 

O  Loio  é  fofo,  triste  o  Graciano, 
Tolo  o  Bernardo,  comedor  o  Bento, 
O  Franciscano,  em  flm,  é  Franciscano. 

Como  estivesse  ainda  viva  na  memoria  de  António  Lobo 
a  resposta  do  abbade  de  Jazente  á  satyra  que  lhe  mandou  ao 
passar  em  Amarante,  aproveitou  o  nosso  heroe,  que  a  ninguém 
perdoava  em  taes  assumptos,  a  occasião  de  lhe  dar  azedo  tro- 
co a  este  soneto  com  esfoutro,  obrigado  ás  mesmas  consoan- 
tes: 

Que  lhe  importa  ao  Abbade  o  Jesuita  ? 

Do  Nery,  ou  Dominico  que  pretende  ? 

Vá  cuidar  nas  ovelhas,  que  defende, 

Que  pode  no  bispado  haver  visita: 

Saber  quer  o  que  o  Grillo  premedita, 
E  que  francez  é  o  que  o  Cruzio  aprende? 
E'  darem-lhe  as  lições  de  que  depende. 
Para  o  metterem  leigo  Carmelita. 

Não  torne  «  fazer  outra,  que  eu  assento 
Que  do  santo  cordão  sentirá  damno, 
Se  inquietar  o  Capucho  no  convento: 

Perdem  muito  o  Bernardo,  e  o  Graciano; 
Não  se  metta  c'o  Loio,  deixe  o  Bento, 
E... 


104  o    LOBO    DA   MADRAGÔA 


Aqui  tenho  de  suspender  a  transcripçSo,  porque  António 
Lobo  termina  mandando  que  o  abbade  de  Jazente  beije  em  lo- 
gar  impróprio  o  frade  franciscano. 

Estes  dois  sonetos  servem,  comtudo,  para  mostrar  quanto 
o  Lobo  se  insinuou  no  animo  dos  cruzios  da  Palmeira,  até  no 
es(imular-lhes  o  gosto  pela  lingua  franceza,  e  quanto  ficaram 
sempre  mal  avindos  os  dois  poetas,  António  Lobo  e  o  abbada 
de  Jazente,  por  causa  d'aquella  troca  de  sonetos  em  Ama- 
rante. 

E'  que,  mais  uma  vez  o  dizemos,  os  poetas  satyricos  não 
prescindem  de  represálias  uns  contra  os  outros. 

Sem  embargo  dos  regalos  e  commodidades  que  os  cónegos 
regrantes  prodigalisavam  na  Palmeira  ao  seu  dilecto  hospede, 
nSo  ha  duvida  que  elle  parecia  agora  menos  estouvado  e  le- 
viano. 

Os  cruzios  não  deram  a  principio  com  a  causa  d'esta  trans- 
formação, posto  que  a  estranhassem;  mas  descobriu-a  logo  Jor- 
ge Mariz  sem  que  o  seu  amigo  lh'a  confessasse. 

António  Lobo  amava ;  eis  tudo. 

Amava  n'uma  doce  idealidade,  pela  primeira  vez  na  sua 
vida. 

Tinha  já  vinte  e  oito  annos,  e  comtudo  não  havia  amado 
ainda  d'aquelle  modo,  porque  nem  as  cachopas  de  Guimarães 
e  Villa  Real,  nem  a  «tancareira»  de  Cantão  puderam  dar-lhe 
sensações  de  immaculado  lyrismo  no  amor. 

António  Lobo  encontrara,  finalmente,  uma  rapariga  casta, 
de  uma  honestidade  varonil,  digamos  assim,  porque  sabia  im- 
por respeito  a  um  homem  habituado  a  conquistas  fáceis  e  con- 
tel-o,  reverente,  como  deante  de  um  altar  onde  a  virtude  tives- 
se culto. 

Era  a  Therezinha  de  Villalva, 

António  Lobo  experimentou  então  na  pratica  aquelle  senti- 
mento lerno  e  recatado  que,  no  programma  do  «grupo  philoso- 
phico»,  tinha  sido  apenas  uma  theoria  excêntrica. 

Amava  com  mysterio,  em  segredo,  que  é  talvez  o  maior 
encanto  do  amor;  amava  sem  ostentação  e  descaro;  amava  go- 
zando uma  felicidade  até  ahi  desconhecida  para  elle,  recolhido 
agora  n'uma  concentração  muito  intima  e  muito  funda. 

Jorge  Mariz  disse- lhe  uma  vez: 

—  O'  António,  tu  gostas  da  Therezinha? 

Lobo  ficou  surprehendido  com  esta  inesperada  pergunta, 
pois  que  suppunha  que  tinha  aquelle  delicioso  amor  bem  escon- 
dido no  coração;  e  ficou  desgostoso  também,  porque  não  que- 
ria que  se  quebrasse  o  encantador  mysterio  que  tão  grato  e  apra- 
zível lhe  era. 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  105 


Respondeu,  pois,  contrariado : 

—  Gostar !  Acho-a  apenas  boa  rapariga,  e  por  isso  a  es- 
timo. 

Mariz  insistiu: 

—  Mas  parece-me  que,  o  julgar  pelo  que  me  contaste  em 
Villa  Real,  não  estimaste  assim  a  china. 

António  Lobo  replicou  com  mal  disfarçada  indignação: 

—  Ora  essa !  Pois  tu  queres  comparar  uma  innocente  ra- 
pariga do  campo  com  uma  mulher  perdida,  que  já  trazia  do 
Oriente  um  curso  completo  de  vicios  e  torpezas !  Nao  compa- 
res as  duas  mulheras,  nem  os  sentimentos  que  ellas  podem 
inspirar. . .  aos  outros. 

Repugnou  a  António  Lobo  a  lembrança  do  tempo  que  pas- 
sara na  companhia  de  Min;  parecia-lhe  que  tinha  sido  um  so- 
nho negro  que  o  asphyxiava  ainda. 

Mariz  carecia  de  experiência  em  negócios  de  amor,  mas 
compensava-a  pela  instinctiva  penetração  própria  da  sua  idade 
em  taes  assumptos. 

Os  rapazes  adivinham,  nos  segredos  do  coração,  o  que  não 
sabem ;  ao  passo  que  os  velhos,  ainda  os  mais  condecorados 
nas  campanhas  amorosas,  nem  sempre  descobrem  com  faci- 
lidade as  affeições  dos  moços  que  com  elles  convivem. 

Sirvam  de  exemplo  os  padres  cruzios  da  Palmeira,  mui- 
tos dos  quaes  teriam,  por  ventura,  amado  muito. 

Quem  descobriu  a  paixão  de  António  Lobo  pela  Therezinha 
de  Villalva  não  foram  elles,  mas  Jorge  Mariz,  um  rapaz. 

Faz  isto  lembrar  as  creanças  da  beira-mar,  que  não  anda- 
ram ainda  no  mar  largo,  mas  que  são  capazes  de  enxergar 
muito  ao  longe  a  mastreação  de  um  navio,  que  os  velhos  ma- 
rinheiros não  descobrem. 

Mariz  quiz  ter  a  certeza  de  que  se  não  havia  enganado,  e 
formulou  uma  pergunta  astuciosa  : 

—  Então,  se  apenas  a  estimas,  não  te  oppões  a  que  alguém 
possa  amal-a? 

António  Lobo  fez-se  pallido  como  um  combatente  que  se 
vê  apertado  contra  o  ultimo  entrincheiramento,  e  replicou  com 
vivacidade: 

—  Amal-a  tu? 

Mariz  desfechou  uma  sonora  gargalhada  e  respondeu : 

—  Socega,  homem!  Quiz  apenas  levar-te  a  confessar  um 
sentimento   que  eu  já  havia  surprehendido,  e  que  tu  negavas. 

—  Negava,  é  certo.  Desculpa-me.  Mas  eu  nunca  na  minha 
vida  tinha  sentido  esta  espécie  de  amor,  cuja  confissão  me  pa- 
rece ser  uma  publicidade  que  o  profana.  E'  um  estado  d'alma 
que  se  compraz  no  mysterio  e  no  recato.  Dá-lhe  isso  um  certo 


106  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


caracter  de  sigillo  religioso,  de  segredo  de  confessionário,  que 
guardamos  respeitosamente  dentro  da  nossa  própria  consciên- 
cia. Eu  mesmo,  a  principio,  não  sabia  classificar  este  senti- 
mento. Nao  sabia  que  era  amor. 

—  Bravo !  E'  o  programma  do  nosso  grupe  de  Villa  Real 
posto  em  acção ! 

—  Mas  assim  é,  realmente !  Já  tenho  pensado  n'isso  com 
alguma  surpreza,  porque  eu,  até  chegar  á  Palmeira,  não  tinha 
conhecido  senão  o  amor  que  deve  occultar-se,  não  porque  seja 
puro,  mas,  ao  contrario,  por  ser  impuro. 

—  Estás  transformado ! 

—  Não  sei  se  estou.  Sei  apenas  que  encontrei  em  mim 
mesmo  um  aspecto  novo  do  meu  próprio  ser. 

—  Apaixonado  é  que  tu  estás.  Aposto  que  tens  feito  versos 
d'amor  á  Therezinha. 

—  E'  curioso  !  Não  tenho.  Dir-se-ia  que  os  sei  sentir,  e  não 
os  sei  fazer.  Ao  pé  d'ella  fallo-lhe  de  todas  as  cousas  que  ella 
pode  entender,  as  cousas  mais  vulgares  d'este  mundo.  E  sin- 
to-me  então  poeta  sem  versos  e  sem  rimas;  poeta  de  um  es- 
tranho encanto  que  me  inebria  e  que,  se  o  passasse  ao  papel, 
ficaria  profanado  deante  de  mim  próprio. 

—  Mas  então  é  o  amor  dos  anjos! 

—  Não,  é  o  amor  que  todos  os  homens,  decerto,  devem 
sentir  uma  vez  na  vida,  porque  eu,  que  nunca  tive  pretensões 
a  ser  anjo,  o  sinto  agora  pela  primeira  vez  aos  vinte  e  oito  an- 
nos. 

—  Mas  a  que  leva  esse  amor?  Ao  casamento  ?  O'  António  ! 
muito  me  havia  de  rir,  se  te  visse  casado,  pai  de  meninos, 
chefe  de  família  pacato  e  pesadão  ! 

—  Deus  me  livre! 

—  Deus  te  livre?!  Então  para  que  amas  tu?  Para  perde- 
res a  Therezinha,  cuja  virtude  encareces? 

—  Não,  nunca.  Amo-a  para  ser  feliz  um  momento  na  mi- 
nha vida.  como  um  caminheiro  que  se  senta,  cançado,  á  som- 
bra de  uma  boa  arvore  e,  depois  de  restauradas  as  forças,  se- 
gue seu  caminho.  Não  tenho  génio  para  casado,  nem  o  posso 
ser,  porque  sou  pobre  e,  com  franqueza,  não  gosto  de  trabalhar. 
Habituei-me,  como  sabes,  a  viver  ao  acaso,  sem  eira  nem  beira, 
esperando  sempre  vér  cahir  do  céu  o  maná  do  deserto.  Que 
mulher  toleraria  esta  vida,  e  que  outra  vida  differente  toleraria 
eu  ?  Mas  suppõe  que  eu  chegava  á  allucinação  de  me  casar. . . 

—  Ah  !  admittes  a  hypothese  ? 

—  Admitto-a  apenas  para  discutil-a  e  combatel-a.  No  dia 
em  que  eu  tivesse  a  primeira  desillusão  ou  o  primeiro  desgosto, 
seria  o  mais  infeliz  e  o  mais  revoltado  dos  homens.  Iria  por 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  107 


esse  mundo  fóra  pregar  contra  o  casamento,  confessando  pu- 
blicamente, em  toda  a  parte,  que  só  tinha  escripto  desconcha- 
vos  no  programma  de  Villa  Real :  que  a  mulher,  ainda  que  seja 
a  mais  bella  das  portuguezas,  é  só  para  vêr  e  nSio  para  despo- 
sar. Podes  crer  que  havia  de  crear  fanáticos,  de  fazer  escola. 
Eu  sinto  em  mim  uma  costella  revolucionaria  de  Luthero. 

—  Se  fizesses  escola,  acabava-se  o  mundo!  disse  Jorge 
Mariz  rindo. 

—  Nao.  Acabava-se  o  casamento,  o  que  é  differente.  Nas 
espécies  irracionaes  não  ha  casamento,  e  ellas  subsistem.  Eu 
tenho  sido  irracional  até  hoje;  voltarei  a  sel-o  talvez  amanha. 
Mas  parei  agora  dentro  de  um  parenthese  de  raciocínio  encan- 
tador, sei  que  existe  ainda  a  mulher  pura  e  honesta,  que  existe 
para  mim,  e  que  pode  existir  para  os  outros,  ao  menos  uma 
vez  na  vida,  e  depois,  provavelmente,  fecha-se  o  parenthese,  e 
acabou-se,  nao  íica  mais  nada. 

—  Fica  sempre  o  poeta  com  a  sua  imaginação  fogosa. 

—  Não  confundas.  O  meu  génio  é  que  é  fogoso;  a  minha 
imaginação,  não.  A  satyra  é  para  mim  um  desafogo  necessário, 
uma  válvula  de  segurança  que  eu  abro  de  vez  em  quando  para 
não  morrer  asphyxiado.  Imaginação  fogosa,  eu  t  Vê  lá  se  fui 
capaz  de  idealisar  uma  tal  mulher  como  a  Therezinha  de  Vil- 
lalva  antes  de  a  ter  encontrado.  Posso  compor  uma  grosa  de 
sonetos  para  descompor  o  abbade  de  Jazente,  mas  não  serei  ca- 
paz, nunca,  de  inventar  uma  novella  de  cavallaria.  «Vade  re- 
tro» ! 

E,  como  se  quizesse  voltar  de  novo  á  silenciosa  concen- 
tracção  da  sua  alma,  António  Lobo  sorriu  dizendo  que  bastava 
de  parola  :  queria  ir  pescar  no  rio.  E  foi. 

O  leitor  já  conhece,  vagamente,  a  Therezinha  de  Villalva. 

Mas  certamente  não  desestimará  que  eu  lhe  desenhe  o  per- 
fil d'essa  linda  camponeza,  que  inspirou  a  António  Lobo  um 
amor  purificado  de  vulgares  materialidades. 

O  leitor  seria  menos  exigente  do  que  a  leitora  n'este  ponto, 
razão  de  mais,  porém,  para  eu  querer  esboçar  o  retrato  de  The- 
rezinha :   gosto  de  ser  gentil  com  as  damas...  até  nos  romances. 

Sim,  não  ha  duvida  que  as  leitoras  estarão  esperando  algo 
mais  do  que  aquella  rápida  phrase,  já  escripta  mais  longe,  para 
dar  a  primeira  impressão  do  aspecto  de  Therezinha  :  «honesta 
gracilidade». 

Esta  phrase  é  pouco,  e  é  muito. 

E'  pouco  para  satisfazer  o  desejo  de  examinar  um  retrato, 
discriminar  feições,  accentuar  traços  physionomicos. 

E'  muito  porque  se  ficará  fazendo  sempre  alguma  idéa  da 
mulher  a  cujo   respeito  se  tenha  dito  que  era  graciosa  e  dis- 


108  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


creta,  grave  e  gentil,  o  que  tende  a  estabelecer  uma  suave  har- 
monia entre  o  seu  caracter  e  o  seu  aspecto. 

O  leitor,  esse,  não  protestou  ainda,  que  me  conste,  contra  o 
facto  de  eu  lhe  nao  haver  descripto  a  physionomia  de  António 
Lobo. 

Nem  eu,  francamente,  o  poderia  fazer,  dada  essa  exigência, 
á  falta  de  elementos  de  pintura.  Não  existe  nenhum  retrato  seu, 
e  a  tradição  apenas  informa  que  era,  physicamente,  um  homem 
vulgar,  magro  e  moreno,  com  certa  expressão  de  vivacidade 
intellectual  no  olhar. 

Quanto  ao  retrato  de  Therezinha  poderei,  felizmente,  satis- 
fazer a  curiosidade  da  leitora,  porque  ouvi  o  depoimento  tradi- 
cional dos  seus  conterrâneos. 

Era  uma  rapariga  de  estatura  regular,  de  uma  brancura  lu- 
minosa, querendo  eu  significar  com  esta  expressão  que  de  ne- 
nhum modo  devem  suppôl-a  de  uma  pallidez  de  cecém  ou  de 
uma  coloração  baça  como  as  pérolas. 

Não.  Havia  luz  e  saúde,  vida  e  calor  no  tom  suave  das 
suas  carnes ;  nem  appareciam  a  descoberto  os  sulcos  azues  das 
veias  como  em  certas  mulheres  extremamente  brancas. 

Tinha  os  olhos  e  os  cabellos  pretos :  os  olhos  mais  que- 
brados de  brandura  que  fulgidos  e  provocantes;  os  cabellos 
naturalmente  ondeados  desciam  n'um  ligeiro  recorte  sobre 
a  fronte. 

Mas  assevera  a  tradição  que  em  duas  coisas  se  assignalou 
principalmente  a  Therezinha  de  Villalva  entre  todas  as  rapari- 
gas do  seu  tempo :  na  compostura  desaffectada  e  senhoril  do 
gesto ;  e  no  cuidado,  ainda  hoje  pouco  vulgar  no  Minho,  com 
que  tratava  o  aceio  do  seu  corpo  e  da  sua  roupa. 

—  Segundo  ouvi  dizer  a  velhos,  (contou-me  um  que  já  o 
era  também)  as  suas  mãos,  posto  estivessem  habituadas  aos 
trabalhos  da  lavoura,  pareciam  de  princeza. 

E  insistiu  n'um  pormenor,  cujo  realismo  não  é  despi- 
ciendo : 

—  As  unhas  pareciam  seixinhos  côrde  rosa,  da  beira-mar. 
Ah!   a  leitora  elegante,   que  todos  os  dias  gasta  algumas 

horas  no  apuro  da  sua  «toilette,»  não  poderá  facilmente  admit- 
tir  que  lindas  raparigas  do  Minho,  verdadeiras  «madonnas»  de 
Raphael,  façam  recuar  de  horror  deante  da  ponta  negra  dos 
seus  dedos. 

Pois  assim  mesmo  é  que  é.  O  que  ha  de  peior  no  Minho 
são  as  unhas^  nas  mulheres  como  nos  homens. 

Se  António  Lobo  tivesse  dito  francamente  a  Jorge  Mariz 
♦  Amei  a  Therezinha  de  Villalva  porque,  «rara  avis,»  ella  limpa 
as  unhas»,  eu  haveria  comprehendido  logo  a  razão  do  seu  amor. 


o   LOBO    DA   MADRAGÔA  109 


Nao  era  preciso  maior  discurso. 

Mas  d'onde  viria  este   excepcional  cuidado  de  aceio,  que 
distinguia  a  Therezinha  de  Villalva  entre  todas  as  raparigas 
minhotas  do  seu  tempo. . .  e  do  nosso  ? 
Respondo  já. 

EÍla  era  filha  do  Manuel  barqueiro  da  quinta  da  Palmeira; 
e  afilhada  do  padre  cruzio  Dom  Joaquim  Mariz. 

Nasceu  em  Villalva,  onde  o  pai,  filho  de  lavradores  humil- 
des, foi  creado  nas  poucas  geiras  de  terra  que  elles  ahi  pos- 
suíam. 

A  mãe  era  uma  rapariga  que  tinha  estado  alguns  annos 
ao  serviço  da  casa  de  Ruivães,  onde  adquiriu  hábitos  senhoris. 
Seus  amos  contrariaram  muito  o  casamento  com  o  barqueiro 
dos  cruzios,  porque  desejavam  dal-a  como  esposa  á  algum  la- 
vrador abastado.  Mas  a  rapariga  teimou,  e  casou  com  o  Ma- 
nuel barqueiro, 

Quatro  annos  depois  de  casada,  morreu  de  um  typho. 

O  barqueiro,  muito  protegido  pelos  cruzios,  comquanto  já 
pudesse  viver  melhor  do  que  os  pais  tinham  vivido  em  Villalva, 
viu-se  na  situação  embaraçosa  de  não  ter  quem  olhasse  pela 
infância  da  filhinha. 

Foi  a  Villa  do  Conde  pedir  conselho  a  uma  tia  materna, 
que  ali  estava  como  criada  no  convento  das  freiras. 

Era  uma  mulher  de  cincoenta  annos,  doente  e  beata,  mas 
que  tinha  feito  o  seu  pé  de  meia  com  o  fim  de  passar  uma  ve- 
lhice descançada,  pensando  apenas  nos  achaques  e  nos  santos. 

—  Olha,  disse  ella  ao  sobrinho,  quem  vai  tomar  conta  da 
tua  filha,  sou  eu.  Estou  farta  de  trabalhar,  e  quero  tratar  de 
mim.  Se  a  tua  Thereza  não  tivesse  já  trez  annos,  não  lhe  pega- 
ria, que  não  estou  para  desmamar  creanças.  Mas  já  tem  idade 
de  cahir  e  levantar-se  sem  ser  preciso  acudir-lhe.  Pois  olha 
que  vou,  sobrinho,  que  também  a  saudade  de  Villalva  nunca 
se  amorteceu  cá  dentro. 

E  indicava  o  coração. 

Ora  a  «tia  Rosa,»  educada  pelas  freiras  de  Villa  do  Conde, 
adquirira  no  convento  hábitos  de  esmero,  que  ella,  por  sua  vez, 
transmittiu  á  Therezinha,  cuja  mãe  os  havia  trazido,  á  sua 
parte,  da  casa  nobre  de  Ruivães. 

O  barqueiro  dizia  ás  vezes  á  tia  Rosa: 

—  Vossemecê  é  como  a  minha  companheira,  que  Deus  te- 
nha em  bom  logar.  Cria-me  esta  rapariga  para  rainha !  Olhe 
que  ella  é  filha  de  um  barqueiro. 

Mas,  no  intimo  da  sua  alma,  gostava  de  vêr  a  filha  mais 
aprimorada  de  maneiras  que  as  outras  raparigas. 

—  Deixa-te  d'isso,  sobrinho,  replicava  a  tia  Rosa.  Eu  tam- 


110  o    LOBO   DA    MADRAGÔA 


bem  fui  creada  de  servir,  mas  nem  por  isso  deixei  de  prezar- 
me  sempre.  A  tua  cachopa  trabalha  quanto  faz  mingua.  Não 
querer  ser  vasculho  não  é  defeito ;  antes  virtude.  Deixa  ir  as- 
sim, que  vai  vem. 

A  estas  duas  correntes  de  educação,  a  da  criada  das  fidal- 
gas de  Ruivães  e  a  da  criada  das  freiras  de  Villa  do  Conde, 
deveu  a  Therezinha  de  Villalva  o  muito  de  senhoril  que,  nos 
hábitos  e  nas  maneiras,  a  tornavam  mais  distincta  que  todas 
as  outras  raparigas  da  sua  idade. 

O  pai,  vivendo  de  dia  e  de  noite  na  Palmeira^  indo  raras 
vezes  a  casa,  não  dava  tempo  a  que  a  filha  fosse  aprendendo 
d'elle  qualquer  rudeza  no  sentir  ou  no  fallar;  e  já  era  tarde 
para  isso,  ainda  que  não  acontecesse  assim,  porque  a  educa- 
ção cria  raizes  como  as  plantas. 

Quando  Therezinha  andava  nos  quatorze  annos,  a  tia  Rosa 
ficou  paralytica. 

Era  a  sobrinha  que  tratava  d'ella  com  o  mesmo  carinho 
e  dedicação  com  que  por  ella  havia  sido  tratada. 

Logo  pela  manhã,  Therezinha  ia  á  Palmeira  cuidar  dos 
arranjos  do  pai,  da  sua  roupa  branca,  do  seu  fato,  ás  vezes  da 
sua  saúde ;  e  levava  os  engommados  e  os  trabalhos  de  cos- 
tura que  os  padres  cruzios  lhe  encommendavam. 

Quasi  sempre  tinha  occasião  de  beijar  a  mão  ao  padrinho, 
o  sr.  Dom  Joaquim  Mariz,  que  a  estimava  muito. 

Voltando  da  Palmeira,  Therezinha  preparava  o  seu  almo- 
ço e  o  da  tia. 

Depois  ia  lavar  no  Sanguinhêdo,  trabalhar  nas  suas  terras, 
pequenas  mas  lindas  e  bem  tratadas  como  um  brinco;  e  ainda 
o  tempo  lhe  chegava  para  costurar,  fiar,  engommar  e  brunir, 
cantando  sempre. 

Na  Palmeira,  emquanto  ali  se  demorava,  a  sua  presença 
era  um  sol  radiante,  que  a  todos  dava  alegria  e  vida. 

Dir-se-ia  que  só  rompia  a  manhã  quando  ella  chegava. 

Um  coração,  especialmente,  palpitava  então  mais  vivo,  com 
um  sentimento  que  não  era  apenas  o  simples  contentamento 
de  a  vêr  tão  alegre,  tão  moça,  e  tão  donairosa. 

Não.  Esse  sentimento  era  o  amor. 

Havia  na  Palmeira  um  rapaz,  ajudante  do  barqueiro,  que 
a  adorava  loucamente. 

Tinha  desenove  annos,  e  chamava-se  Miguel. 

Forte  e  sadio,  era,  como  todos  os  rapazes  da  sua  condi- 
ção, ignorante,  rude  e  trabalhador. 

Therezinha  estimava-o  como  bom  rapaz  e  companheiro  de 
seu  pae,  porque,  dizia  ella,  nem  ás  arvores  da  Palmeira  dei- 
xava de  ter  estima. 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  111 


Mas  n5o  o  queria  para  marido,  porque  havia  entre  os  dois, 
ella  e  elle,  um  abysmo  a  separal-os  :  a  differença  de  educação 
e,  portanto,  de  caracter. 

Eram  duas  pessoas  que  tinham  nascido  na  mesma  condi- 
ção social,  mas  que  divergiam  profundamente  entre  si  pelos 
hábitos  adquiridos  desde  a  infância. 

Quando  António  Lobo  chegou  á  Palmeira,  na  primavera 
de  1758,  Therezinha,  que  tinha  então  24  annos,  sentia  comple- 
tamente livre  o  coração. 

Era  essa  a  razão  da  sua  alegria  e  da  sua  felicidade. 

Toda  a  liberdade  é  boa;  principalmente  a  do  coração. 

E,  comtudo,  o  pobre  Miguel  amava-a  loucamente. 


IX 


flmop  pupo 


António  Lobo  íôra  mais  feliz,  porque  logrou,  quando  che- 
gou á  Palmeira,  enfeitiçar  o  coração  de  Therezinha. 

Elle  tinha  attractivos  que  o  Miguel  nao  possuia :  era  ale- 
gre, discursivo,  audaz,  estouvado,  e  sabia,  quando  o  julgava 
conveniente,  temperar  a  sua  doidice  com  uns  amaneirados  pro- 
pósitos, que  vinham  mais  da  intelligencia  que  da  educação. 

Nós  bem  sabemos  como  elle  fora  creado  á  vontade  nas 
ruas  de  Guimarães. 

A  Therezinha  de  Villalva  causou-lhe,  como  já  o  ouvimos 
confessar  a  Jorge  Mariz,  uma  profunda  sensação,  tão  nova  co- 
mo fascinante. 

EUa  era  a  mulher  honesta,  que  a  si  mesma  se  guarda  com 
a  encantadora  innocencia  de  quem  desconhece  a  existência  do 
mal. 

Fazia-se  amar  e  respeitar,  sem  pensar  n'uma  ou  n'outra 
coisa. 

De  mais  a  mais  esta  creaturinha  adorável  pela  belleza  e 
pela  honestidade  appareceu  deante  de  António  Lobo  como  en- 
gastada n'uma  excepcional  moldura  de  maneiras  tão  discreta- 
mente senhoris,  que  faziam  surprehendente  contraste  com  a  ru- 
deza crassa  e  bronca  do  femeaço  do  Minho. 

Tão  rara  espécie  de  mulher  não  conhecia  elle  ainda  e,  com- 
tudo,  comprehendeu  desde  logo  toda  essa  poética  espiritualisa- 
ção  que  na  mulher  do  christianismo  sobrevelou  as  fascinações 
carnaes  da  mulher  pagã. 


o   LOBO   DA  MADRAGÔA 


113 


O  que  elle  principiou  a  amar  na  Therezinha  de  Villalva, 
nao  foi  o  corpo,  mas  a  alma.  E  o  seu  amor,  por  isso  mesmo 
que  não  irrompeu  de  um  deslumbramento  dos  sentidos,  nas- 
ceu gradualmente,  na  convivência  de  todos  os  dias.  Dá-se  com 
o  amor,  quasi  sempre,  o  mesmo  phenomeno  que  se  nota  no 
modo  como  as  aves  levantam  vôo:  quanto  maiores  sSo,  como 


A  barca  da  Palmeira 


por  exemplo  a  abetarda,  mais  lhes  custa  a  subir.  Quanto  mais 
puro  e  sincero  é  o  amor,  mais  vagarosamente  nasce. 

António  Lobo,  como  todos  os  poetas  levianos  e  vagabun- 
dos, tão  vulgares  no  seu  tempo,  e  ainda  depois,  porque  foi 
Bocage  quem  fechou  a  porta  a  essa  classe  de  poetas,  experi- 
mentou o  amor  platónico,  o  amor  casto  e  impolluto,  inspirado 
por  uma  «alma  suave»  de  mulher. 

Bocage,  para  em  tudo  ser  um  bohemio  extraordinário, 
amou  assim  duas  vezes. 

Lobo  affeiçoou-se  lentamente  a  Therezinha,  fazendo  reparo 
nas  suas  peregrinas  qualidades,  quando  ella  ia  pela  manha  á 
Palmeira. 

Esperava-a   para  a  vêr  e  para  lhe  fallar,  sem  a  principio 


114  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


ter  a  consciência  de  que  era  o  coração  que  o  punha  de  senti - 
nella  á  chegada  da  barca.  Mas  levantava-se  cedo,  de  madruga- 
da, e  nao  tirava  os  olhos  da  margem  esquerda  do  Ave  até 
avistar  a  Therezinha  no  decHve  que  desce  para  o  rio.  Parecia- 
Ihe  que  a  passagem  da  barca  era  excessivamente  vagarosa.  E 
quando  a  Therezinha  saltava  em  terra,  António  Lobo,  varian- 
do sempre  o  local,  preparava  a  occasião  de  se  fazer  encontrado 
com  ella. 

Nao  se  lhe  declarou  nunca ;  fallava-lhe  de  tudo,  menos  de 
si  mesmo. 

Por  sua  parte,  a  Therezinha  nao  tinha  bem  a  certeza  de 
que  o  amasse;  e  menos  ainda  de  que  fosse  amada.  Estimava-o 
muito,  gostava  de  o  vêr  e  de  o  ouvir,  e  o  pobre  Miguel  pare- 
cia-lhe  cada  vez  mais  seccante  como  namorado,  comquanto 
continuasse  a  ser  para  ella  um  bom  rapaz. 

Na  Palmeira,  apenas  duas  pessoas  puderam  desde  logo 
classificar  com  segurança  o  sentimento  que  a  Therezinha  ins- 
pirava a  António  Lobo. 

Estas  duas  pessoas  eram  Jorge  Mariz,  como  já  sabemos, 
e  o  barqueiro  Miguel. 

Nenhum  dos  outros  habitantes  da  Palmeira,  incluindo  o 
pae  de  Therezinha,  estranhavam  os  repetidos  encontros,  as 
conversações  repetidas,  entre  a  cachopa  e  o  hospede  dos  cru- 
zios. 

No  campo,  especialmente  no  Minho,  a  convivência  toma 
sempre  o  caracter  de  familiaridade,  permitte  liberdades  que 
n'outro  qualquer  meio  social  seriam  muito  reparadas. 

Bastará  dizer  que  os  rapazes  e  as  raparigas,  de  differentes 
famílias,  se  tratam  por  tu,  e  que  esse  tratamento  nao  importa 
a  idéa  de  qualquer  intimidade  condemnavel. 

O  que  principalmente  indignou  o  barqueiro  Miguel  foi  a 
suspeita  de  que  o  «Mafarrico  de  Guimarães»,  cuja  fama  lhe  nao 
abonavM  a  pureza  dos  costumes,  quizesse  perder  Therezinha. 

Constituiu-se,  portanto,  n'uma  espécie  de  esculca  vigilan- 
te, que  nao  a  perdia  nunca  de  vista  emquanto  ella  se  demorava 
na  Palmeira,  e  que  procurava  seguir  os  passos  de  António 
Lobo  depois  que  a  Therezinha  regressava  a  Villalva. 

Uma  coisa  o  admirava,  e  era  que  o  Lobo  nao  atravessas- 
se o  rio  para  a  margem  esquerda,  não  fosse  a  Santo  Thyrso, 
nao  sahisse  do  couto  da  Palmeira,  onde  caçava  e  pescava. 

Muitas  noites  andou  o  Miguel  rondando  o  edifício,  espe- 
rando sempre  encontrar  António  Lobo  a  surgir- lhe  de  uma 
porta  ou  a  saltar  de  uma  janella  para  sahir  sem  ser  presen tido 
dos  cruzios. 

Nunca  o  encontrou,  porém. 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


115 


A  janella  do  quarto  do  hospede  estava  fechada,  os  cSes 
nSo  ladravam,  o  silencio  era  profundo  tanto  dentro  da  casa  co- 
mo na  quinta. 

Ainda  assim,   Miguel,   n'uma  occasião  em  que  o  Manuel 


*^yt*.: 


A  barca 


a  Therezinha  e  o  Miaruel 


barqueiro  lhe  mandou  buscar  Therezinha  na  barca,  não  teve 
mão  em  si  que  lhe  nao  dissesse,  muito  embaraçado,  fincando 
a  vara  no  peilo  e  pregando  os  olhos  na  corrente: 

—  Ando  ha  muito  para  te  dizer  uma  coisa,  Therezinha... 

—  Pois  diz. 

—  E'  que  nao  tenho  tido  occasião.  Deante  de  teu  pae,  não 
t'a  dizia.  Na  Palmeira,  todo  o  tempo  te  parece  pouco  para  con- 
versares com  o  «Mafarrico». 

—  Queres  fallar  do  sr.  António  Lobo?  Pois  elle  tem  nome 
de  baptismo.  Mafarrico  é  o  demo,  salvo  seja. 

—  Eu  não  sei  se  elle  é  o  demo,  se  já  o  foi  ou  se  está  para 
o  ser.  O  que  sei  é  que  elle  te  persegue  todos  os  dias. 

—  Perseguir-me !  a  mim?  Onde  viste  tu  isso,  ó  Miguel? 

—  Tenho-o  visto  com  estes  que  a  terra  ha  de  comer. 


Ii6  o    LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Não  mettas  a  tua  alma  no  inferno,  rapaz !  O  sr.  Antó- 
nio Lobo  nunca  fez  pouco  de  mim,  e  se  o  fizesse  perdia  o  seu 
tempo. 

—  Mas  é  que  eu  tenho  medo. . . 

—  De  quê? 

—  Nao  sei  se  t'o  diga. . . 

—  Podes  dizer.  Quem  não  deve,  não  teme. 

—  Digo? 

—  Já  se  vê  que  sim. 

—  Tenho  medo  que  elle  te  deite  a  perder. 

Therezinha  levantou-se  n'um  Ímpeto,  fazendo  oscillar  li- 
geiramente a  barca. 

Depois,  olhando  para  a  margem  direita,  que  se  aproxima- 
va, respondeu  sem  olhar  para  Miguel : 

—  Tu  perdeste  o  juizo,  rapaz! 

E,  sempre  de  pé,  logo  que  a  proa  da  barca  tocou  em  ter- 
ra, saltou  de  um  pulo,  sem  proferir  mais  palavra. 
Miguel,  muito  aturdido,  disse  ainda : 

—  Desculpa. 

Ella  não  respondeu. 

Quando  começaram  a  aggravar-se  as  hostilidades  entre  os 
cruzios  e  os  benedictinos  ou  entre  os  criados  de  uns  e  outros, 
Thereza  mostrou-se  muito  preoccupada  com  a  possibilidade  de 
um  conflicto  sério. 

—  Trago  o  coração  a  tremer,  disse  ella  a  António  Lobo. 

—  E  comtudo  já  deve  estar  habituada,  respondeu  elle,  a 
esta  guerra  dos  frades. 

—  A  gente  nunca  se  habitua  ao  que  é  mau.  De  mais  a 
mais  tenho  tantas  pessoas  amigas  na  Palmeira,  que  sinto  me- 
do de  que  passem  por  algum  perigo. 

—  Seu  pae,  por  exemplo. 

—  Está  bem  de  vêr  que  sim.  Mas  não  é  só  meu  pae. 

—  Quem  mais  então? 

—  Meu  padrinho,  todos  os  senhores  cónegos  e... 

—  Diga,  diga. 

—  E  o  sr.  António  Lobo  também.  • 

—  Mas  repare  que  me  deu  o  ultimo  logar. 

—  Não,  senhor.  Ainda  ha  mais  gente  aqui. 

—  Quem? 

—  O  sr.  Jorge. 

—  Esse  não  se  mette  na  contenda,  que  o  tio  não  deixa. 
Mas  dá-lhe  tanto  cuidado  o  sr.  Jorge?! 

—  Dá-me  tanto  cuidado  como  todos  os  outros  Ainda  o  se- 
nhor me  dá  mais,  porque  sou  mais  sua  amiga. 

—  Deveras  ? 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  117 


—  Deveras.  Creio  que  nao  fiz  mal  em  dizer  isto. .. 

—  Nenhum.  Pelo  contrario... 

—  E  também  tenho  pena  dos  criados  que  precisam  ganhar 
o  <pao  nosso  de  cada  dia»  e  podem  arriscar  a  vida. 

—  Tem  talvez  maior  interesse  por  algum  d'elles? 

—  Nao,  sr.  Pensa  que  eu  tenho  algum  conversado?... 

—  E  se  pensasse? 

—  Enganava-se.  Nao  tenho,  e  nao  tive  nunca. 

—  Mas  ha  por  ahi  alguns  rapazes. . .  O  Miguel,  por  exem- 
plo, de  quem  seu  pae  é  tao  amigo. . . 

—  Também  eu  sou. 

—  E'  ? ! 

—  Sou,  porque  elle  é  muito  bom  rapaz  e  dá-se  muito  bem 
com  meu  pae. 

—  Ahi  está  um  casamento  possível. 
Therezinha  respondeu  com  evidente  convicção : 

—  Nao  havia  ninguém  n'este  mundo  que  fosse  capaz  de 
me  fazer  casar  com  elle;  mas  isso  nao  tira  que  seja  bom  ra- 
paz. 

—  Imagine  que  alguém  tinha  de  morrer  na  Palmeira  por 
causa  da  contenda.  Quem  lhe  custaria  menos  que  morresse? 

—  Ora  essa !  disse  Therezinha  rindo.  Pois  nao  fica  sem 
resposta. 

—  Quem  ? 

—  O  «Drago,»  respondeu  ella  continuando  a  rir. 
«Drago»  era  o  cao  mais  bravo  dos  cruzios. 

E  d*ahi  a  minutos,  Therezinha,  dominando  o  riso,  como 
se  de  repente  a  preoccupasse  um  pensamento  sério  : 

—  Sabe  uma  cousa,  sr.  Lobo?  Eu  queria  pedir-lhe  um  fa- 
vor. . . 

—  Que  lhe  não  torne  mais  a  fallar? 

—  Nao,  senhor !  Que  me  avise  quando  forem  deitar  a  baixo 
a  pesqueira. 

—  Quer  então  que  eu  lhe  revele  um  segredo  ? 

—  Quero. 

E,  logo,  corrigiu  com  pejo : 

—  Peço. 

—  Mas  para  que  o  desejava  saber? 

—  Para  ir  rezar  a  Nossa  Senhora  da  Piedade,  em  Arge- 
mil. 

—  Por  mim  ? 

—  Já  lhe  disse  que  por  todos. 

—  Pois  bem,  direi,  assim  eu  possa. 

—  Pode,  porque  vamos  combinar  um  signal,  que  nao  dê 
muito  nas  vistas. 


118  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Qual  ha  de  ser? 

Therezinha  deteve-se  a  reflectir  um  momento. 

—  Olhe,  o  sr.  Lobo,  quando  me  vir  chegar  á  beira  do  rio, 
desfolhe  o  ramo  de  uma  arvore. 

—  Bem,  está  combinado. 

De  novo  Therezinha  se  deteve  silenciosa. 

—  O  que  mais  quer?  perguntou  sorrindo  António  Lobo. 

—  Desejava  que,  no  fim  de  tudo,  me  apparecesse  de  longe 
para  eu  saber  que  lhe  n3o  aconteceu  mal  algum. . . 

—  Ah  !  como  lh'o  agradeço,  Therezinha  ! 
E  ella,  continuando  a  phrase  serenamente  : 
— . . .  nem  a  meu  pae. 

—  Fique  certa.  Logo  que  eu  julgue  ter  passado  a  borrasca, 
apparecer-lhe-hei  n'alguma  clareira  da  malta.  Esteja  bem  at- 
tenta  para  me  ver. 

—  Hei  de  estar;  lá  isso  não  tem  duvida. 

—  Se  eu  apparecer. . . 

—  Ha  de  apparecer.  Tenho  fé  em  Nossa  Senhora  da  Pie- 
dade. Mas  em  todo  o  caso  é  preciso  ter  juizo,  também. 

—  Ter  juizo,  como? 

—  O  sr.  Lobo  não  se  guarda  muito  dos  perigos.  Não  seja 
tão  destemido. 

—  E'  génio  meu.  Que  lhe  hei  de  eu  fazer? 

—  Faça  o  que  lhe  eu  digo  e . . .  adeus ! 

António  Lobo  ficou  pensativo  durante  algum  tempo,  a  re- 
construir este  dialogo,  que  tinha  para  elle  o  encanto  d'uma  di- 
vina musica  desconhecida.  E  concluiu  como  deante  de  uma 
surpreza  que  o  inebriava  :  «Mas  é  certo  I  eu  amo  esta  rapariga, 
e  ella  também  me  amai. 

Isto  passou-se  poucos  dias  antes  de  Jorge  Mariz  o  inter- 
rogar:  já  então  elle  não  tinha  duvidas  sobre  a  espécie  de  sen- 
timento que  a  Therezinha  de  Villalva  lhe  havia  inspirado. 

O  dobrão  dos  cruzios  andou,  muito  tempo,  intacto  na  algi- 
beira de  António  Lobo. 

Pela  primeira  vez  deixou  o  dinheiro  de  arder  rapidamente 
nas  suas  mãos. 

—  E'  curioso  I  dizia  Lobo  comsigo  mesmo.  Até  parece  que 
me  fiz  avarento  por  amor,  eu,  um  perdulário  ! 

Pensou  em  offerecel-o  a  Therezinha. 
Um  dia  abordou  o  assumpto. 

—  Therezinha  f 

—  Sr.  Lobo! 

—  Queria  fazer-lhe  um  presente. 

—  Ora  que  idéa  1  Um  presente !  Diga  lá  o  que  é. 
Elle  mostrou  o  dobrão  que  resplandecia  á  luz  do  sol. 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  119 


—  E*  uma  rodella  de  ouro!  exclamou  ella  admirada. 

—  E'  dinheiro,  explicou  António  Lobo. 

—  Dinheiro?  Nunca  tinha  visto  este. 

—  Acceita? 

Therezinha  não  respondeu.  Olhou  vagarosamente  em  der- 
redor, parecendo  procurar  alguma  cousa. 

O  chão  estava  alastrado  de  boninas,  como  se  a  Natureza 
houvesse  entornado  sobre  a  terra  a  paleta  de  um  pintor. 

Florinhas  miúdas,  muito  pequenas  e  muito  vivas,  davam 
a  impressão  de  uma  poeira  colorida,  que  manchava  alegremente 
o  tapete  verde  da  relva. 

Era  a  urze,  com  os  seus  baguinhos  roixos ;  o  codêço  bri- 
lhando n'uma  floração  translúcida  de  topasio;  o  trovisco,  con- 
tribuindo poderosamente  para  a  variedade  das  cores,  com  o 
seu  claro  esmalte  de  coral ;  era  a  abrótea,  branca  como  um 
pingo  de  neve;  a  macella,  redondinha,  coroada  de  amarello  e 
branco;  a  violeta  brava,  vacillando,  branca  e  roixa,  entre  o 
noivado  e  a  viuvez;  era  a  leituga  vivamente  amarella;  o  trevo 
campestre,  emulo  do  lilaz  dos  jardins;  o  myosótis  docemente 
azul;  o  tremontêlo  rivalisando  a  ametista;  era  uma  riqueza 
infinita  de  cores,  passando  por  delicadas  graduações,  a  vestir 
a  terra  com  uma  singeleza  e  uma  opulência,  cuja  polychro- 
mia  o  maior  poeta  e  o  maior  pintor  nâo  seriam  capazes  da 
attingir. 

Therezinha,  como  se  encontrasse  o  que  procurava,  res- 
pondeu : 

—  Sabe  o  que  eu  posso  acceitar-lhe?  E'  alguma  d'estas  flo- 
res, se  quizer  dar-m'a. 

N'esse  momento,  António  Lobo  lembrou-se  de  Min,  por 
mais  extraordinário  que  pareça  isso. 

Lembrou-se,  sim,  impressionado  pelo  frisante  contraste 
que  diff"erençava  o  caracter  da  «tancareira»  de  Cantão  e  da 
camponeza  de  Villalva:  uma  roubara  o ;  a  outra  repellia  o  di- 
nheiro que  elle  queria  off"erecer-lhe. 

Sentiu-se  quasi  vexado. 

—  Pois,  bem,  Therezinha,  off^erecer-lhe-hei  uma  flor,  sepro- 
mette  guardal-a. 

—  Prometto. 

António  Lobo  olhou  um  momento,  embaraçado  na  esco- 
lha; depois,  resolutamente,  curvou-se,  arrancou  um  raminho 
de  myosótis,  e  entregou-lh'o. 

—  Sabe  como  se  chama  esta  flor? 

—  Ao  certo  nao  sei,  porque  me  parece  que  não  pode  ter  o 
nome  que  lhe  dão  os  meus  aldeões.  É'  tão  pequena  e  tão  bonita, 
que  bem  ha  de  ter  outro  nome,  porque  o  merece.  De  mais  a 


120 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


mais  é  azul  como  o  céu,  mas  um  pouco  mais  desmaiadinha 
que  elle. 

—  Foi   por  isso,  talvez,  que  lhe  attribuiram  uma  significa- 
ção melancólica:  a  da  ausência,  da  separação  que  vai  começar. 

—  Então,  se  é  agouro,  não  n'a  quero. 


António  Lobo  offereoendo  o  ramo  a  Therezinha 


—  Não  é  agouro;  não  creia  em  agouros,  Therezinha.  Esta 
flor  pequenina  quer  dizer:  Não  me  esqueças. 

—  Ah!  como  é  lindo!  Bem  me  queria  a  mim  parecer!... 

—  Mas  então  como  lhe  chamam  cá? 

—  Um  nome  muito  feio. 

—  Não  se  pode  dizer? 

— Pode.  «Orelhas  de  rato». 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  121 


— Feio,  sim,  mas  também  nao  deixa  de  ser  expressivo.  A 
ausência   é  como  um  ratinho  que  róe  os  corações  namorados. 
— Isso  deve  ser! 

—  E  e:.ta  flor,  quando  a  gente  a  manda,  descobre  o  segredo 
da  nossa  alma,  é  como  a  orelha  do  rato  que  ficasse  de  fora  para 
o  denunciar. 

—  Mas  pensa  em  ir-se  embora  da  Palmeira? 

—  Nao  penso.  Quem  me  dera  aqui  ficar  eternamente! 

—  Está  isso  na  sua  mSo. 

— Ah!  Therezinha!  Que  homem  pode  gabar-se  de  ter  o  fu- 
turo fechado  na  mão?  Nenhum.  E  eu  menos  que  todos. 

— Porque? 

— Porque  sou...  como  hei  de  dizel-o?  Sou  uma  espécie 
de  «Judeu  Errante». 

—  Credo!  Judeu ! 

—  Nao  se  assuste,  Therezinha.  Quero  eu  dizer  que  sou  um 
homem  que  nao  tem  familia,  nem  pátria... 

—  Mas  o  sr.  Lobo  é  de  Guimarães. 

—  Sou.  Que  importa  ser?  Já  não  tenho  lá  ninguém  que 
me  estime. 

—  Mas  pode  ter  n'outra  terra.  E  se  tivesse,  ficava? 

—  Eu  sei  lá,  Therezinha!...  O  meu  destino  não  se  parece 
talvez  com  o  dos  outros  homens. 

—  Não  entendo  isso  I 

—  Nem  eu  próprio;  mas  é  assim.  Olhe  aquella  andorinha 
que  vai  passando  no  ar.  Para  onde  irá  ella  agora? 

—  Quem  sabe! 

—  Pois  eu  sou  como  aquella  andorinha. 

—  E'  porque  quer.  A  terra  de  que  a  gente  gosta  faz-nos 
crear  raizes  n'ella.  Não  gosta  da  nossa  terra? 

—  Gosto  muito. 

—  A  mim  parece-me  que  não  haverá  outra  mais  linda  em 
todo  o  mundo.  Gosto  tanto  das  nossas  arvores  e  dos  nossos 
campos !  Havia  de  me  custar  muito  ter  de  deixar  tudo  isto. 

—  E'  natural.  E  não  deixe  nunca,  Therezinha. 

—  Faço  tenção  :  aqui  nasci  e  aqui  espero  morrer.  Olhe,  uma 
rapariga,  a  Margarida  Prata,  que  casou  com  o  brazileiro  de 
Guimarei,  foi  viver  para  Lisboa  e  chorava  lá  com  quem  a  ma- 
tava. Tinha  muita  riqueza,  muitas  roupas  e  muitos  criados. 
Que  monta  isso?  Ao  cabo  de  seis  annos,  morreu  de  saudade. 
O  brazileiro  quiz  tornar  a  casar  com  outra  rapariga  dos  nossos 
silios.  E  sabe  o  que  aconteceu? 

—  Provavelmente  casou,  mas  a  segunda  mulher,  aprovei- 
tando a  lição  da  primeira,  conseguiu  que  elle  não  voltasse  mais 
para  Lisboa.  E'  isto  ? 


122 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


—  Agora!  Nao  encontrou  cachopa  que  o  quizesse. 

—  Também  a  Therezinha? 

—  Qual !  Eu  n'esse  tempo  era  um  tapulho,  mas  tenho  ou- 
vido dizer.  Ai !  sr.  Lobo,  que  é  já  tão  tarde !  Vou-me  embora. 

—  Então,  adeus.  Veja  se  guarda  as  flores  que  lhe  dei. 

—  O  «Nao  me  esqueças?»  Guardo,  sim.  Ainda  que  as  flores 
sequem,  e  fiquem  mirradinhas,  hei-de  conserval-as. 

Dito  isto,  despediu-se,  e  vinha  descendo  para  o  rio,  quando 
Miguel  lhe  sahiu  ao  encontro,  surgindo,  inesperadamente, 
d'entre  o  arvoredo. 

Elle  tinha  estado  á  espreita.  NSo  pôde  ouvir  o  que  os  dois 
disseram,  mas  viu  António  Lobo  entregar  as  flores  a  There- 
zinha e  ella  acceitar-lh'as. 

—  O'  cachopa!  gritou  elle. 

—  Ah  !  és  tu,  Miguel ! 

—  Sou  eu,  sou. 

E  dirigindo-se  para  ella,  mas  conservan- 
do as  mãos  escondidas  atraz  das  costas,  per- 
guntou : 

—  Que  flores  sao  essas  que  tu  ahi  levas? 

—  Então  nao  n'as  vêsV 

—  Vejo.  Quem  me  havia  de  dizer  que  tu 
gostavas  tanto  d'ellas ! 

—  Pois  gosto. 

—  Então,  se  gostas,  pega  lá  mais. 
E  mostrou  a  mão  direita,  que  empunhava 

um  grande  ramo  de  myosótis. 

Therezinha  desatou  a  rir  e  estugou  o  passo, 
caminho  do  rio. 

—  Que  nome  dás  tu  a  essas  flores,  ó  Mi- 
guel? 

—  Farta  estás  tu  de  o  saber.  São  cOre- 
Ihas  de  rato.» 

E  Therezinha,  rindo  cada  vez  mais: 

—«Orelhas  de  rato!»  Isso  são  ellas!  Valha-te  Deus,  rapaz! 
Dando  uma  corridinha  saltou  ligeira  á  barca,  onde  o  pae  a 
esperava. 

—  Anda,  rapariga,  que  são  horas,  disse  o  Manuel  bar- 
queiro. Se  te  demorasses  mais,  tinhas  de  ir  á  volta  pela  ponte, 
que  eu  amarrava  a  barca. 

—  Olha  a  grande  caminhada! 

O  barqueiro  metteu  a  vara  á  agua,  e  fincou-a  no  peito. 
Como  visse  então  o  Miguel  á  beira  do  rio,  com  os  myosótis 
na  mão,  gritou-ihe : 

—  O'  Miguel !  essa  ramalhoça  é  para  varreres  o  forno  1 


o  ramo  de  António  Lobo 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


123 


Miguel  respondeu : 

—  Não,  senhor.  E'  para  atirar  flores  aos  peixes. 
E  arremessou-as  ao  Ave. 

O  Manuel  barqueiro  replicou,  gritando  cada  vez  mais  : 

—  EUes  nSo  pegam  n'essa  isca. 

Emquanto  Therezinha  passa  na  barca,  recordemos  ao  leitor 
que,  no  dia  em  que  a  pesqueira  nova  explodiu, ]Antonio  Lobo 
não  se  esqueceu  de  fazer  os  si- 
gnaes  combinados,  tanto  para 
avisar  Therezinha  do  rompimen- 
to das  hostilidades,  como  depois 
para  lhe  dar  a  saber  que  elle  e 
o  Manuel  barqueiro  estavam  in- 
cólumes. 

Apesar  dos  conselhos  do 
Chantre  da  Real  Collegiada  de 
Guimarães,  a  contenda  entre  os 
cruzios  e  os  benedictinos  conti- 
nuou, por  vezes  muito  acirrada. 
Mas  isso  não  faz  ao  nosso  pro- 
pósito. Bastará  dizer  que  vimos 
um  documento  pelo  qual  se  ve- 
rifica que  em  1761,  isto  é,  trez 
annos  depois  da  explosão,  o 
Dom  Prior  do  mosteiro  de  Lan- 
dim, que  era  então  o  padre  Agos- 
tinho de  Nossa  Senhora,  propu- 
nha aos  benedictinos  um  con- 
vénio medeante  a  indemnisação 
de  oito  mil  cruzados,  paga  aos 
cruzios. 

Se  este  convénio  fosse  acceito,  os  cruzios  renunciariam 
aos  seus  suppostos  direitos,  mas,  de  futuro,  não  poderiam  os  be- 
nedictinos de  Santo  Thyrso  construir  azenhas  em  qualquer 
parte  do  Ave  defronte  da  quinta  da  Palmeira,  nem  conservar 
pesqueira  alguma,  ou  fazel-a  de  novo. 

Era  o  que  elles  chamavam  to  rio  livre.» 

Suspeito  que  os  benedictinos  não  transigiram,  mas  não 
tenho  d'isso  prova  segura. 

Quando  Therezinha,  depois  de  haver  saltado  da  barca, 
passava  em  Argemil,  os  criados  da  quinta  da  Batalha,  atalayas 
do  rio,  disseram-lhe  as  costumadas  galanterias. 

—  Ah!  Therezinha!  Therezinha!  Ninguém  é  capaz  de 
tirar-te  essa  balda  de  gostares  mais  de  Santo  Agostinho  que  de 
S.  Bento  I 


o  ramo  do  Miguel 


124  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Um  bello  dia  embargamos-te  a  passagem  por  ordem  do 
nosso  santo  patriarcha. 

—  E  veremos  então  se  santo  Agostinho  tem  animo  de  vir 
cá  buscar-te. 

Therezinha,  caminhando  atrigada,   por  ser  já  tarde,  res- 
pondeu : 

—  Eu  também  gosto  muito  do  vosso  S.  Bento.  Quereis  vós 
vêr? 

E  desatou  a  cantar  : 

S.  Bentinho  da  Batalha, 
Aqui  tendes  as  solteiras. 
Se  não  quizerdes  casal-as, 
Dailhe  um  dote,  serão  freiras. 


CahiP  do  Géa 


António  Lobo  não  gostou  nada  de  que  o  Chantre  da  Real 
Collegiada  de  Guimarães  o  tivesse  visto  na  Palmeira  por  occa- 
siao  da  feira  de  S.  Bartholomeu. 

Antes  quereria  que  os  vimaranenses  o  suppozessem  morto 
ou  errante  por  esse  mundo  de  Christo,  como  já  uma  vez  o  jul- 
garam ausente  em  Macau,  quando  elle  estava  no  Porto  e  depois 
em  Lisboa. 

Conhecia  bem  os  costumes  da  provinda,  onde  sempre 
tinha  vivido,  e  quão  duradoiros  e  violentos  são  os  ódios  que  lá 
germinam  de  qualquer  futilidade. 

E'  que  os  ódios  parece  serem  como  os  líquidos :  quanto 
menor  é  a  superfície  que  os  contém,  mais  se  alteam ;  quanto 
maior,  mais  baixam. 

Nas  grandes  cidades,  o  ódio  espraia  se,  dilue-se;  chega  a 
perder  de  vista  o  seu  alvo  e,  por  isso,  a  poupal-o  durante  lon- 
gos intervallos  de  tempo. 

Na  província  zumbe  constantemente  como  um  enxame  de 
abelhas  contido  n'uma  pequena  colmea;  e  morde,  a  cada  mo- 
mento, porque  a  toda  a  hora  encontra  a  sua  victima. 

De  mais  a  mais,  segundo  a  grande  verdade  bíblica,  nin- 
guém é  propheta  na  sua  terra. 

E  elle  tinha  nascido  em  Guimarães. 

Peior  que  tudo  isso,  porém,  era  o  momento  histórico  que 
a  sociedade  portugueza  atravessava. 

As  famílias  nobres  —  e  as  de  Guimarães  não  cediam  em 


126  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


jactância  a  nenhumas  outros  —  procuravam  agora  estreitar  os 
laços  de  solidariedade  de  classe  contra  um  inimigo  commum, 
unindo-se,  encostando-se  umas  ás  outras,  fazendo  parede,  como 
um  rebanho  de  ovelhas  que  sente  o  farejar  do  lobo  á  porta  do 
redil. 

A  nobreza  começava  a  sentir-se  affrontada  com  o  valimento 
politico  do  conde  de  Oeiras,  que  parecia  nao  querer  reconhecer 
as  balisas  impostas  pelo  consenso  tradicional  na  organização 
da  sociedade  portugueza. 

Sebastião  José  de  Carvalho  entrara  no  poder  por  influencia 
da  rainha  viuva  junto  de  el-rei  D.  José.  Fora  nomeado  secre- 
tario de  Estado  dos  negócios  da  guerra  e  estrangeiros,  e  nin- 
guém diria  que  d'esse  gabinete,  de  que  faziam  parte,  além  d'elle, 
que  era  um  estreante,  Diogo  de  Mendonça,  um  fraco,  e  Pedro 
da  Motta,  um  velho  gasto,  sahiria  o  inicio  de  uma  nova  épo- 
ca de  administração  económica  e  politica. 

Os  acontecimentos  favoreceram  a  rápida  manifestação  das 
faculdades  governativas  de  Sebastião  de  Carvalho,  especialmen- 
te da  energia  e  firmeza  do  seu  caracter. 

Por  occasião  do  incêndio  no  Hospital  de  Todos  os  Santos, 
occorrido  poucos  dias  depois  da  entrada  de  Sebastião  de  Car- 
valho nos  conselhos  da  coroa,  mostrou  elle  que  se  não  deixa- 
va assoberbar  j^or  circumstancias  imprevistas. 

Era  o  dedo  a  denunciar  o  gigante. 

Vieram  logo  depois  as  medidas  tendentes  a  evitar  a  expor- 
tação do  ouro  para  restabelecer  a  balança  de  commercio  e,  pe- 
rante as  reclamações  da  Inglaterra,  Sebastião  de  Carvalho  mos- 
trou-se  destemido  e  altivo,  comquanto  depois  tivesse  de  modi- 
ficar, pela  lição  da  experiência,  esta  sua  theoria  económica. 

Vieram  também  a  reducção  dos  direitos  sobre  o  tabaco,  a 
emancipação  dos  Índios  do  Brazil,  a  formação  das  grandes 
companhias  de  navegação  e  commercio  e,  sobretudo,  vieram 
os  actos  de  força,  as  providencias  rápidas  e  decisivas  com  que 
Sebastião  de  Carvalho  acudiu  á  população  da  capital  por  occa- 
sião  do  terremoto  de  1755  e  com  que  tratou  de  fazer  recons- 
truir a  cidade,  que  tinha  ficado  reduzida  a  um  montão  de  ruí- 
nas. 

O  rei  e  o  paiz  começaram  a  comprehender  que  havia  n'a- 
quelle  homem  o  vulto  de  um  reformador  audaz. 

Ao  rei,  inspirava  confiança;  ao  paiz,  receio;  especialmente 
á  nobreza,  que  estava  costumada  a  dominar  na  corte. 

Em  1756,  fallecia  Pedro  da  Motta  e  o  conde  de  Oeiras  fo- 
ra transferido  para  a  secretaria  do  reino,  onde  mais  directa- 
mente ainda,  como  primeiro  ministro,  podia  subjugar  todos  os 
elementos  da  vida  interna  do  paiz. 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  127 


No  anno  seguinte,  os  tumultos  do  Porto  contra  a  forma- 
ção da  Companhia  do  Alto  Douro  foram  punidos  com  draco- 
niana severidade,  nSo  pelo  que  em  si  mesmos  valiam,  porque 
não  tinham  passado  de  uma  arruaça,  mas  para  aproveitar  a 
occasião  de  impor  respeito  e  de  crear  temeroso  prestigio. 

N'esse  mesmo  anno  foram  expulsos  do  Paço  os  jesuítas  e, 
a  breve  trecho,  prohibidos  do  exercido  da  confissão  e  da  pré- 
dica no  patriarchado 

Então  a  nobreza,  vendo  accentuar-se  de  dia  para  dia  o 
plano  de  absorpção  politica  traçado  por  Sebastião  de  Carvalho, 
conheceu  que  a  hora  do  ostracismo  da  sua  classe  não  tardaria 
muito,  e  procurava  fortalecer-se  pela  união  e  pela  solidarieda- 
de na  lucta  de  poderio  travada  contra  o  primeiro  ministro. 

E  a  nobreza  não  se  enganava,  porque  não  tardariam  a  le- 
vantar-se  os  patíbulos  de  Belém. 

António  Lobo,  depois  que  o  Chantre  da  Real  Collegiada  o 
foi  encontrar  na  Palmeira,  receiou  a  desforra  da  academia  vi- 
maranense, composta  de  fidalgos  e  ecclesiasticos,  agora  mais 
que  nunca  unidos  pelas  circumstancias  politicas  da  época. 

Julgava-se  elle  pequeno  de  mais  para  que  o  conde  de  Oei- 
ras se  occupasse  em  defendel-o,  ainda  quando  lhe  reclamasse 
justiça  contra  uma  villa  inteira,  que  certamente  tomava  o  par- 
tido da  academia. 

De  mais  a  mais  a  consciência  accusava-o  de  ter  sido  ar- 
ruaceiro e  brigão,  tanto  em  Guimarães  como  em  Villa  Real,  e 
Sebastião  de  Carvalho  já  havia  dado  sufíicientes  provas,  em 
Lisboa,  de  querer  oppôr  a  repressão  policial  á  liberdade  de 
costumes  tolerada  pela  tradição. 

Por  todos  estes  motivos,  e  por  saber  quanto  o  ódio  na  pro- 
vinda é  minaz  e  persistente,  António  Lobo  ficou  receioso  de- 
pois da  visita  do  Chantre  á  Palmeira. 

Comtudo  decorreu  o  mez  de  setembro,  que  é  o  mais  ale- 
gre no  campo,  sem  que  a  academia  vimaranense  desse  signal 
de  si. 

Chegaram  as  vindimas,  e  Therezinha  demorava-se  agora 
mais  na  Palmeira  por  esse  motivo. 

A  vindima  é  uma  festa  agrícola,  que  pôde  durar  alguns 
dias,  e  quasi  sempre  dura,  nas  propriedades  importantes. 

No  Minho,  as  vinhas  d'enforcado  contribuem  para  dar  um 
aspecto  mais  pittoresco  á  apanha  das  uvas. 

Rapazes  e  raparigas  trepam  por  altas  escadas  de  mão,  ar- 
rimadas contra  as  arvores  onde  a  vinha  se  enlaça,  e,  assim 
empoleirados,  colhem  cachos  que  vão  atirando  para  dentro  dos 
cestos  pendentes  das  escadas. 

Cabeças  humanas,   resguardadas  do  sol  por  toscos  som- 


128  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


breiros  de  palha,  surgem  d'entre  os  ramos  das  arvores,  o  tron- 
co do  corpo  collado  ao  tronco  da  arvore,  de  modo  a  parecer 
que  estão  espreitando  do  alto  rostos  de  esquivas  dryades  e  de 
silvanos  medrosos. 

As  raparigas  comprimem  as  saias  apertando  os  joelhos, 
pelo  que  nao  teem  a  receiar  os  olhares  indiscretos  dos  seus 
companheiros  de  trabalho. 

E  todos,  firmando-se  nas  escadas,  desaninham  as  aves, 
substituindo-as  no  canto,  emboscados  na  copa  das  arvores, 
que  enchem  de  musica  e  alegria. 

São,  pôde  dizer-se  assim,  as  canções  das  uvas. 

E'  uma  festa  que  primeiro  se  passa  no  ar  para  depois  con- 
tinuar  na  terra,  porque  á  noite  é  servida  a  ceia  aos  vindimado- 
res  e  o  bailarico  põe  um  remate  brilhante  a  cada  dia  de  traba- 
lho. 

Parentes,  amigos,  visinhos  e  até  jornaleiros  de  profissão 
acodem,  quando  é  preciso,  a  auxiliar  a  faina  das  vindimas,  que 
é  ao  mesmo  passo  um  motivo  para  folguedos. 

Therezinha  não  faltava  na  Palmeira  ás  arrincadas  do  linho, 
ás  esfolhadas  do  milho,  e  ás  vindimas. 

Os  cruzios  tratavam  generosamente  os  seus  trabalhadores, 
de  modo  que  os  attrahiam  sempre  em  grande  numero,  e  os  se- 
rões da  Palmeira  tinham  fama  de  ser  os  melhores  da  comarca. 

Therezinha  era  o  «enfant-gaté»  d'aquella  casa  e,  portanto, 
a  rainha  de  cada  festa  agrícola  que  se  ali  desse. 

N'essas  occasiões  demorava-se  na  Palmeira  de  dia  e  noite. 
O  pae  transportava-a  na  barca  e  ia  depois  acompanhal-a  a  ca- 
sa. Mas  agora,  na  vindima  de  1758,  pôde  bem  imaginar-se  o 
praser  com  que  ella  quereria  alongar  as  horas  que  fugiam  ve- 
lozes. 

Dantes  prendiam-n'a  ali  a  alagria  do  trabalho  em  com- 
mum,  o  canto,  a  dança,  o  serão,  a  folga  campestre. 

Agora. ..  era  o  amor,  doce  grilhão,  leve  como  um  fio  de 
retroz,  que  prende  as  almas  ás  almas,  solidamente. 

A  vindima  correra  mais  animada  do  que  nunca,  porque  a 
Therezinha  de  Villalva,  sem  quebra  da  sua  discreta  gracilida- 
de, não  se  mostrara  jamais  tão  contente  e  expansiva. 

Os  padres  cruzios  riam  de  vêr  António  Lobo  empoleirado 
n'uma  arvore  a  vindimar. 

—  E'  um  rapaz  para  tudol  diziam  elles  gabando-o. 

Não  teria  que  procurar  muito  quem  quizesse  encontrar  a 
Therezinha  no  rancho  dos  vindimadores. 

Bastaria  achar  António  Lobo ;  ella  havia  de  estar  perto. 

Havia  momentos  em  que  ambos  podiam  conversar  de  ar- 
vore para  arvore,  como  os  pássaros  se  namoram  cantando. 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA 


129 


As  uvas,  atiradas  d'alto,  chofravam  no  fundo  dos  cestos; 
era  o  azai,  o  bogalhal,  o  espadeiro,  o  vinhao,  as  castas  minho- 
tas de  Santo  Thyrso,  que  dao  vinho  verde. 

Nao  sao  táo  doces  estas  castas  como  por  exemplo  o  mos- 


António  Lobo  e  Therezinha  vindimando 


catei,  que  parece  ter  melaço  dentro  de  cada  bago,  e  que  se  en- 
contra em  regiões  mais  quentes,  no  Alto  Douro,  e  no  sul,  a 
partir  de  Setúbal. 

A  uva  do  Minho  é  um  pouco  amarga,  por  isso  produz  o 
«verdasco»,  áspero  no  sabor  e  na  palavra. 

Mas  as  horas  da  vindima  são  ali  mais  doces  do  que  as 
uvas ;  e  eram-n'o  principalmente  para  António  Lobo  e  There- 
zinha. 

Dizia-lhe  elle  mettendo  a  cabeça  por  entre  os  ramos  de 
uma  arvore  á  procura  de  cachos : 


130  o    LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Se  eu  aqui  já  não  estiver  para  o  anno,  a  Therezinha 
estará  tão  contente  como  agora? 

—  E  por  que  não  ha  de  estar  aqui?! 

—  Sei  lá!  Sou  errante  como  a  andorinha.  Não  se  lembra 
que  já  lh'o  disse? 

—  Mas  a  andorinha  faz  ninho,  e  demora-se. 

—  Para  emigrar  quando  chegar  o  outono. 
Therezinha  respondia  cantando : 

O'  meu  amor,  se  te  fores, 
Leva-me  na  tua  alminha. 
Eu  sou  como  a  borboleta: 
Onde  quer  vai  mettidinha. 

E,  para  affastar  um  pensamento  triste  ou  para  desorientar 
a  curiosidade  dos  vindimadores,  dizia  depois: 

—  Olhai  que  lindo  cacho  este! 
Um  velho  commentava  olhando: 

—  E'  vinhão,  e  vonda  ! 

António  Lobo  reatava  o  dialogo,  baixando  a  voz: 

—  Na  minha  alma,  Therezinha,  ha  de  ir  sempre  para  on- 
de eu  fôr. 

—  Mas  que  teima! 

—  E  como  quer  que  eu  fique  na  Palmeira?  Só  se  eu  me  fi- 
zer padre  cruzio. . . 

—  Do  mal  o  menos.  Assim  poderia  eu  vêl-o  todos  os  dias, 
como  vejo  meu  padrinho. 

—  È  quando  casasse? 

—  Eu  não  caso  nunca. 

.  —  Tem  muito  quem  a  queira. 

—  Mas  eu  não  quero  ninguém. 
^Ninguém? 

—  Só  quero  quem  me  não  quer;  e  quem  me  quer  não 
quero  eu. 

O  Miguel,  desesperado  por  não  ouvir  o  que  António  Lobo 
e  Therezinha  estavam  dizendo,  cantava  de  cima  de  uma  ar- 
vore: 

Hei  deitar  os  meus  olhos 

A'quelle  poço  sem  fundo; 

Olhos  que  não  têm  ventura 

De  que  me  servem  no  mundo? 

—  Ouve,  Therezinha?  Já  vê  que  tem  muito  quem  a  queira. 

—  O  Miguel  ?  Pobre  rapaz ! 

Uma  rapariga  subindo  rapidamente  os  degraus  da  sua  es- 
cada: 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  131 


—  O'  Miguel!  nSio  deites  os  olhos  ao  poço,  que  te  fariam 
muita  falta  para  enxergar  os  cachos. 

Elle,  apanhando  a  deixa. . .  no  ar : 

—  Com  os  olhos  fechados  ou  abertos  até  vejo  de  mais... 
o  que  não  queria  vêr! 

Therezinha  fallando  muito  alto : 

—  O'  sr.  Lobo !  Faça  favor  de  trazer  a  sua  escada,  que  es- 
tá aqui  um  lindo  cacho  a  que  não  posso  chegar. 

—  Lá  vou,  lá  vou. 

Miguel  continuando  a  cantar  : 

Se  o  passarinho  vendesse 
As  pennas  que  Deus  lhe  deu, 
Também  eu  vendia  as  minhas, 
Ninguém  n'as  tem  mais  que  eu. 

António  Lobo  encostou  a  escada  á  mesma  arvore  em  que 
estava  Therezinha. 

Subiu  ligeiramente  e  encontrou-se,  entre  os  ramos,  frente 
a  frente  d'ella.  Nunca  lhe  parecera  mais  bonita  do  que  n*essa 
occasiao. 

—  E'  ali!  dizia  Therezinha  indicando  o  supposto  logar  de 
um  cacho. 

—  Ainda  não  vejo  ! 

E  ella,  baixinho,  como  ajudando-o  a  procurar : 

—  O  Miguel  está  muito  arrenegado,  que  eu  bem  lh'o  conheci 
na  voz.  O  sr.  Lobo  acautele-se  sempre. 

—  Pobre  rapaz ! 

~  E'  bom,  é.  Mas  tem  génio,  e  deu-lhe  para  gostar  de  mim. 

Therezinha  tinha  razão. 

N'esse  dia  o  ciúme  atormentava  o  Miguel  barqueiro,  que 
foi  cantando  sempre,  durante  a  vindima,  as  suas  penas  de 
amor. 

No  bailarico  não  quiz  dançar,  e  á  ceia  tinha  bebido  mais 
do  que  a  sua  conta. 

Quando  o  serão  acabou,  e  o  rancho  dos  vindimadores  par- 
tiu vozeando  alegremente,  António  Lobo  ficou  por  algum  tempo 
sentado  ao  luar. 

Parecia-lhe  vêr  ainda  Therezinha,  empoleirada  na  arvore, 
deante  d'elle,  n'esse  idylio  aéreo,  que  fazia  lembrar  o  amor  das 
aves. 

Quando  accordou  do  seu  extasi,  levantou- se  para  reentrar 
em  casa. 

Poucos  passos  andados,  surgiu-lhe  de  frente  o  Miguel,  de 
caçadeira  ao  hombro. 

—  Sr.  Lobo  1  disse  elle  com  voz  alterada. 


132  o    LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  E's  tu,  Miguel !  E  de  espingarda!  Que  é  lá  isso? 

—  Ando  rondando,  que  não  vá  ter  ficado  alguém  escon- 
dido no  couto. 

—  Mas  que  queres  tu  de  mim? 

—  Quero  dizer-lhe  uma  cousa  muito  séria. 

—  Pois  aqui  estou  para  te  ouvir,  respondeu  serenamente 
António  Lobo. 

—  O  senhor,   ainda  que  o  negue,  gosta  da  Therezinha  . . . 

—  Não  o  nego.  Gosto.  E  creio  que  não  tenho  que  te  dar 
explicações  por  isso. 

—  Mas  é  para  casar  que  gosta  d'ella? 

—  Para  casar...  não  sei.  Sou  solteiro,  posso  casar;  mas 
não  vejo  como. 

—  Então  é  para  a  perder!  exclamou  Miguel  muito  exal- 
tado. Pois  se  fôr,  mato-o. 

António  Lobo  íitou-o  reflexivamente  e,  após  um  momento 
de  silencio,  respondeu : 

—  Miguel,  eu  bem  sei  que  tu  gostas  da  Therezinha,  e  nâo 
te  quero  mal  por  isso.  Não  tenho  medo  das  tuas  ameaças  ;  nem 
receio  homem  nenhum.  Mas  digo-te  uma  cousa  francamente: 
se  eu  tentasse  perder  Therezinha  tinhas  razão  para  matar-me. 

—  O  senhor  não  diz  a  verdade! 

—  Digo,  e  juro.  Eu  gosto  d'ella  tão  honestamente  como  tu. 
Façamos,  porém,  um  contrato.  No  dia  em  que  a  julgares  per- 
dida por  mim,  a  minha  vida  pertence-te.  Dá-me  um  tiro  onde 
quer  que  me  encontres.  Estamos  tratados. 

—  Veja  lá  o  que  diz  ! 

—  Digo,  e  repito. 

—  Bem.  O  senhor  é  um  hemem  morto  no  dia  em  que  a 
Therezinha  apparecer  desgraçada. 

—  Dou-te  esse  direito.  E,  agora,  adeus. 

—  Boa  noute,  respondeu  Miguel. 

António  Lobo  seguiu  seu  caminho  vagarosamente,  sem 
olhar  para  traz. 

E,  muito  tranquillo,  ia  dizendo  comsigo  mesmo  : 

—  Este  rapaz  tinha  razão,  se  eu  a  perdesse. 

Nos  primeiros  dias  de  outubro  chegou  a  Landim  uma  carta 
do  secretario  de  sua  reverendíssima  o  Geral  da  ordem  e  con- 
gregação de  Santo  Agostinho..  Prior  do  real  mosteiro  de  Santa 
Cruz  de  Coimbra. 

O  assumpto  d'essa  corta  era  António  Lobo. 

Dizia  o  padre  secretario  que  o  prelado  da  ordem  canónica 
agostiniana  tivera  conhecimento,  por  informações  fidedignas, 
de  que  na  quinta  da  Palmeira  de  Riba  d'Ave  se  acoitava  como 
hospede  um  mancebo  de  ruins  costumes  e  destragada  vida.  Sua 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  Í33 


reverendíssima  o  Padre  Prior  Geral  estranhava  este  facto,  que 
podia  ser  damnoso  á  disciplina  conventual,  e  ordenava  que  fosse 
despedido  o  hospede,  cuja  visinhança  inquietava,  além  de  tudo, 
pessoas  de  qualidade  que  d'elle  conservavam  justo  resentimento. 
A  carta  concluía  recommendando  ao  prior  de  Landim  que  de 
futuro  declarasse  ao  prelado  quaes  os  hospedes  acolhidos  no 
seu  mosteiro  ou  na  brévia  da  Palmeira. 

Este  fecho  continha,  manifestamente,  uma  comminação  se- 
vera, espécie  de  censura  imposta  aos  cruzios  de  Landim  por 
haverem  recebido,  na  Palmeira,  António  Lobo. 

Mandava  quem  podia. 

Os  priores  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  eram  prelados  ge- 
raes  e  reformadores  de  todos  os  mosteiros  de  cónegos  regran- 
tes de  Santo -Agostinho  no  reino  de  Portugal,  por  breve  apos- 
tólico de  Paulo  IV  dado  em  Roma  no  anno  de  1556. 

A  principio,  a  congregação  níio  abrangia  mais  de  quatro 
ou  cinco  communidades,  mas  no  decorrer  do  tempo  foi  cres- 
cendo e  prosperando  a  ponto  que,  no  século  XVÍII,  o  Prior 
Geral,  honrado  com  o  titulo  de  cancellario  da  Universidade  de 
Coimbra  desde  D.  João  III,  era  o  chefe  de  vinte  ou  mais  con- 
ventos onde  exercia  jurisdicção  autónoma,  isto  é,  isenta  da  au- 
ctoridade  dos  prelados  diocesanos. 

Quando,  pois,  o  Prior  Geral  enviava  uma  ordem  aos  seus 
súbditos,  era  como  se  um  monarcha  expedisse  um  decreto 
real. 

Em  Landim  todos  os  cónegos  regrantes  ficaram  magua- 
dos  com  a  inesperada  carta  do  padre  secretario,  nSo  só  porque 
incluia  uma  censura  e  estabelecia  uma  comminaçSo,  mas  tam- 
bém porque  os  constrangia  a  despedir  um  rapaz  de  quem  ape- 
nas tinham  motivo  de  agrado  e  sympathia. 

Aquelles  dos  cruzios  que  o  não  conheciam  pessoalmente, 
sabiam  a  respeito  d'elle  as  melhores  referencias  trazidas  pelos 
seus  confrades  que  mais  frequentavam  a  Palmeira. 

Não  ignoravam  que  António  Lobo  tivera  já  verduras  e  des- 
mandos da  mocidade,  mais  ou  menos  ruidosos,  mas  desde  que 
estava  na  Palmeira  quasi  chegava  a  ser  um  moço  exemplar, 
honesto,  jovial,  affectuoso,  muito  grato  e  aíTeiçoado  aos  seus 
hospedeiros. 

O  padre  Dom  Joaquim  Mariz,  ao  conhecer  a  ordem  do  Ge- 
ral, não  teve  mão  em  si  que  não  censurasse  a  irreflexão  com 
que  subsci-evendo  a  pedidos  insensatos  se  atirava  um  mancebo 
para  o  trilho  de  seus  erros  passados,  desviando-o  do  caminho 
da  rehabilitação  em  que  mostrava  querer  proseguir. 

—  Tão  certo  é,  dizia  o  padre  Mariz,  que  o  homem,  como 
as  plantas,  é  susceptível  de  peior  ou  melhor  cultura  segundo  o 


134  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


terreno  em  que  vegeta.  Aqui,  o  supposto  «rMafarrico»  humani- 
sou-se,  amansou,  fez-se  sociável  e  querido.  Amanha  não  sei  o 
que  será  d'elle,  de  novo  entregue  a  si  próprio  e  ás  suas  pai- 
xões. 

Foi  este  mesmo  cónego  que  se  encarregou,  bem  a  pesar 
seu,  de  transmittir  a  António  Lobo  a  ordem  do  Prior  Geral. 

Serviu-se  de  suaves  circumloquios  para  attenuar  a  aspe- 
resa  da  communicaçâo;  por  vezes  se  embaraçava  na  escolha 
dos  termos,  que  procurava  adoçar. 

António  Lobo,  quando  percebeu  o  que  o  padre  Mariz  já 
dissera  e  o  que  nSo  tinha  dito  ainda,  exclamou  raivoso  : 

—  Eu  já  o  esperava  desde  que  em  Guimarães  havia  de 
constar  que  eu  estava  aqui ! 

—  Filho !  tornou  o  padre  Mariz.  Tende  a  coragem  própria 
do  vosso  animo  esforçado,  e  nao  penseis  em  represálias,  que 
são  como  os  elos  de  uma  cadeia :  travam-se  umas  nas  outras. 
Estaes  ainda  muito  novo,  nem  vos  faltam  talentos  e  energias 
para  abrir  caminho  na  sociedade.  Mas  se  quereis  vida  mais 
repousada,  vinde  para  nós,  ordenai-vos  clérigo,  tomareis  a 
nossa  murça.  Landim  vos  receberá  de  braços  abertos,  e  eu 
mais  que  ninguém. 

—  Ah!  sr.  Dom  Joaquim  !* Vossa  Reverendíssima  não  me 
conhece  ainda.  Eu  sou  como  a  ventoinha,  que  vae  para  onde  o 
vento  a  leva,  mas  que  nunca  pode^estar  quieta.  Uma  benigna 
aragem  trouxe-me  para  aqui,  onde  realmente  cheguei  a  ser  fe- 
liz; um  impetuoso  vendaval  empurra-me  agora  para  longe,  e 
com  elle  tornarei  a  ser  infeliz  em  qualquer  parte.  E'  a  minha  si- 
na, e  ninguém  foge  ao  seu  destino.  De  mais  a  mais  quem  sa- 
be se  aqui  mesmo  eu  não  teria  que  obedecer  amanhã  a  des- 
encontrados ventos,  que  me  levassem  do  bom  caminho  para 
algum  inferno  de  paixões  miseráveis!. . . 

Dom  Joaquim  Mariz  não  comprehendeu  o  sentido  d'estas 
ultimas  palavras,  que  António  Lobo  pronunciou  mysteriosa- 
mente  vendo  perpassar  no  espirito  a  encantadora  imagem  de 
Therezinha. 

Todos  os  cruzios  da  Palmeira  e  alguns  de  Landim  en- 
cheram António  Lobo  de  valiosas  dadivas,  incluindo  dinheiro, 
com  que  elle  á  farta  se  preparou  para  a  jornada. 

Não  quiz  dizer  para  onde  ia,  o  que  os  padres  cruzios  to- 
maram como  precaução  de  segurança  contra  novas  represálias 
de  Guimarães. 

Mas  o  motivo  era  outro:  desejar  que  Therezinha  o  igno- 
rasse. 

Os  cruzios,  para  não  vexar  o  hospede,  nem  a  si  próprios, 
fizeram  segredo  da  ordem  do  Prior  Geral,  de  modo  que  che- 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  135 


gou  a  véspera  da  partida  de  António  Lobo  sem  que  ninguém  o 
soubesse  fora  do  convento. 

Combinou-se  que  Jorge  Mariz,  já  completamente  restabe- 
lecido, deixasse  a  Palmeira  depois  de  António  Lobo,  porque  o 
tio  quiz  que  elle  fosse  continuar  os  estudos  em  Villa  Real;  e 
poderia  causar  estranhesa  aos  visinhos  que  Jorge  partisse  des- 
acompanhado do  amigo  com  quem  viera. 

Teve  António  Lobo  a  serenidade  precisa  para  nao  trair,  na 
presença  de  Therezinha,  um  segredo  que  tanto  o  contrariava. 

Ainda  no  próprio  dia  da  partida,  quando  ella  pela  manha 
veio  á  Palmeira,  elle  parecia  um  homem  absolutamente  tran- 
quillo  e  feliz. 

Encontrou  a  junto  ás  estufas,  cujas  altas  vidraças,  ainda 
embaciadas  de  vapor  d'agua,  eram  como  que  um  anteparo  á 
espionagem  de  Miguel. 

Nas  palavras  de  António  Lobo  havia  um  doce  toque  de  in- 
tima, se  bem  que  plácida  saudade,  que  Therezinha  não  adivi- 
nhou, desprevenida  como  estava. 

Foi  elle  que  n'esse  dia  encurtou  propositadamente  a  entre- 
vista, com  receio  de  fraquejar  e  denunciar-se. 

Ao  proferir  as  ultimas  phrases  teve  as  hesitações  próprias 
de  quem  está  sendo  combatido  por  um  secreto  pensamento,  que 
as  suas  palavras  desejam  occultar 

De  repente,  tendo  relanceado  um  ligeiro  olhar  pelo  recinto 
da  estufa,  pousou  na  face  de  Therezinha  um  beijo  timido. 

Ella  corou,  estremecendo  n'uma  intensa  vibração  nervosa, 
6  dominou-se  para  dizer : 

—  Ah!  sr.  Lobo!  que  me  arrenego!  Não  torne... 

E  já  não  teve  teve  tempo  de  concluir  a  phrase,  porque  An- 
tónio Lobo  desappareceu  precipitadamente. 

Foi  como  se  um  passarinho  abrazado  nas  calmas  do  estio, 
pousando  medroso  á  beira  de  um  rio  caudal,  colhesse  no  bico 
uma  gotta  d'agua  e  fugisse  voando. 


XI 


Om  atoleipo  e  uma  pomba 


António  Lobo  foi  da  Palmeira  para  o  Porto. 

Convintia-lhe  procurar  uma  cidade  populosa,  onde  menos 
facilmente  o  pudessem  ir  incommodar  outra  vez. 

De  mais  a  mais  já  conhecia  a  terra,  desde  que  estivera  ali 
com  a  chineza. 

Fizera  logo  tenção  de  tirar  o  maior  partido  possível  de 
quantas  distracções  o  Porto  lhe  proporcionasse,  e  nSo  seriam 
muitas,  nem  bastantes  para  cicatrisar  rapidamente  a  lembran- 
ça saudosa  da  Therezinha  de  Villalva. 

Era  uma  ferida  que  o  pungia  ainda,  sangrando  a  interval- 
los,  e  avivando-se,  a  ponto  d'elle  confessar  a  si  mesmo,  enter- 
necido : 

—  Amei  sinceramente  aquella  mulher:  uma  camponeza 
que  eu  nSo  trocaria  por  uma  rainha. 

Nao  foi  difficil  a  António  Lobo  procurar  no  Porto  convi- 
vência que  o  distraísse. 

—  Para  conhecer  gente,  nao  ha  como  frequentar  uma  bo- 
tica, pensou  elle,  querendo  abrir  caminho  e  entabolar  rela- 
ções. 

Eífecti vãmente,  n'aquella  época,  as  boticas  e  as  lojas  de 
confeiteiro  eram  logares  frequentados  pelos  mundanos  que  pre- 
tendiam matar  o  tempo;  além  das  grades  dos  conventos,  que 
foram  sempre,  durante  o  século  XVIII,  os  locutórios  mais  pro- 
curados e  concorridos. 

Mas,  dizia  António  Lobo  com  os  seus  botões,  não  lhe  con- 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


137 


vinha  uma  botica  onde  apenas  se  reunissem  velhos  caturras, 
que  só  fallassem  do  passado  e  jogassem  o  gamão  ou  as  damas. 

As  boticas  attrahiam  cHentellas  especiaes,  segundo  a  idade 
e  o  génio  do  boticário 

Importava  pois  ter  mais  em  vista  o  boticário  que  a  botica. 

De  informação  em  informa- 
ção, e  com  o  auxilio  da  sua  ob- 
servação perspicaz,  António 
Lobo  descobriu  o  pharmacopola 
que  lhe  convinha  para  o  effeito 
de  tlançar-se»  na  vida  portuen- 
se, segundo  a  expressão  que 
hoje  usamos. 

Era  o  Mêna,  estabelecido 
na  rua  do  Moinho  de  Vento,  um 
magrizella  que  perdera  todo  o 
seu  ar  de  beirão  para  se  enca- 
dernar no  aspecto  de  peralvilho 
presumpçoso,  que  habitualmen- 
te punha  capa  e  volta. 

Nem  escolhido  a  dedo  o 
podia  António  Lobo  achar  me- 
lhor. 

Sendo  a  francezia  o  fraco  do 
boticário,  calculou  o  nosso  «Ma- 
farrico»,  e  muito  bem,  que  facil- 
mente conseguiria  insinuar-se- 
Ihe  no  animo,  logo  que  se  mos- 
trasse sabedor  da  linguafranceza. 

Entrou  certo  dia  na  botica, 
quando  casualmente  o  próprio 
Mêna  estava  manipulando  umas 
pillulas  de  cynaglossa. 

Ao  rumor  dos  passos,  o 
boticário  olhou,  e  António  Lobo, 
inclinando  a  cabeça,  saudou-o 
em  francez : 

— «Serviteur. . .» 

Mêna  fixou  com  attenção  o  desconhecido,  que  trajava  mo- 
destamente, vestia  e  calções  de  briche  nacional,  comquanto 
trouxesse  a  algibeira  ainda  quente  da  generosa  pecunia  dos 
cruzios.  ! 

—  O  que  pretende  <monsieur?» 

António  Lobo,  dominando-se,  procurou  uma  idéa,  uma 
palavra  que  o  salvasse. 


o  boticário  Mêna 


138  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


E,  encontrando  o  desejado  pretexto,  respondeu  fingindo 
certo  acanhamento : 

— <(Pardonl>  Eu  sou  um  provinciano  do  Alto  Minho,  que 
nao  tenho  familia,  nem  bens  próprios.  Professo  a  lingua  fran- 
ceza,  e  disseram-me  que  vossa  senhoria... 

O  boticário  Ména  arregalou  os  olhos  e  pousou  a  espátula, 
encantado  com  a  presença  d'aquelle  adventício  que  sabia  a  lin- 
gua franceza  e  o  tratava  por  senhoria. 

Mas,  colhendo  as  velas  ao  enthusiasmo  para  retomar  o 
seu  ar  pedante  de  patarata  afrancezado, 

Em  ar  de  grande,  tysico  o  semblante, 

como  Lobo  escreveu  mais  tarde  n'um  soneto,  o  pharmaceutico 
exclamou  com  maneirosa  inflexão  : 

—  Bemvindo  seja  a  esta  casa  tao  estimável  garção!  Nao 
lhe  faltarão  por  certo  discípulos  e  discípulas  que  aproveitem  as 
suas  lições  e  saber.  A  lingua  franceza  é  hoje  a  predilecta  de 
todas  as  pessoas  instruídas,  «la  langue  des  gents  du  monde.» 
Se  disseram  a  «monsieur»  que  eu  me  preso  muito  de  cultival- 
a,  fallaram  verdade. 

—  Isso  realmente  me  disseram  a  respeito  de  vossa  senho- 
ria, e  por  essa  feliz  indicação  me  aventurei  a  prescindir  de  in- 
termediários. 

—  O  talento,  «cher  monsieur)),  não  precisa  de  padrinhos 
nem  abonadores.  E'  recommendação  bastante,  e  bom  passa- 
porte. Pois  não  podia  ser  melhor  a  occasião,  «la  bonne  chan- 
ce», porque  a  regente  do  Recolhimento  do  Anjo  e  uma  freira 
de  Santa  Clara  me  encommendaram  que  lhes  indicasse  profes- 
sor idóneo. 

—  Então  a  lingua  franceza  já  entrou  nos  conventos  do 
Porto  ? 

—  E*  a  moda  corrente,  e  ninguém  a  dispensa.  Os  conven- 
tos são  jocundos  «rendez-vous»  de  galanteria  e  conversação, 
onde  se  exercita  deleitosamente  o  espirito.  Temos  na  cidade 
freiras  muito  lettradas  e  caroaveis,  que  sabem  fazer-se  admirar 
tanto  por  sua  gentileza  como  illustração. 

Não  era  preciso  mais,  nem  tanto,  para  António  Lobo  re- 
conhecer que  estava  na  presença  de  um  <frança))  freiratico,  e 
comquanto  detestasse  o  género,  como  tinha  demonstrado  em 
Villa  Real,  julgou  dever  tirar  todo  o  partido  possível  de  uma 
situação, ^quejhe  trazia  vantagens  de  momento. 

O  boticário  quiz  ser  tão  amável  e  prestadio  que  logo  poz 
o  chapéu  e  acompanhou  António  Lobo  ao  Recolhimento  do 
Anjo,  ali  perto. 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  139 


Este  Recolhimento  (situado  no  local  onde  hoje  está  o  mer- 
cado do  mesmo  nome)  gosava  privilégios  de  casa  religiosa,  ad- 
mittia  exercícios  monásticos,  mas  excluía  os  votos. 

Fora  fundado  no  século  XVII,  fora  das  portas  do  Olival, 
por  uma  D.  Helena  Pereira  da  Maia,  que  o  destinou  a  ser  gua- 
rida e  amparo  de  dez  meninas  orphas  procedentes  de  famílias 
nobres. 

Dentro  de  um  século,  a  idéa  da  fundadora  desvirtuou-se  a 
ponto  do  Recolhimento  do  Anjo  se  ter  convertido  n'uma  nu- 
merosa colmeia  em  que  enxameavam  mulheres  de  varias  pro- 
cedência e  idades. 

Quando  António  Lobo  ali  entrou  acompanhado  pelo  boti- 
cário Mêna,  não  eram  menos  de  sessenta  as  recolhidas,  incluin- 
do as  serventes. 

Havia  até  senhoras  casadas,  que  iam  hospedar-se  no  Anjo 
emquanto  os  maridos  andavam  ausentes,  e  que  se  elles  não 
voltavam  (tal  seria  o  motivo  da  ausência  dos  pobres  maridos) 
facilmente  alliviavam  suas  maguas  em  alegre  convivência,  ga- 
lanteando na  grade  e  rezando  no  coro. 

A  boa  fama  do  primitivo  Recolhimento  perdera-se,  não  só 
por  haver  ainda  maior  liberdade  que  nos  conventos,  mas  tam- 
bém porque  as  aabeihas  mestras»  pervertiam  com  o  mau  exem- 
plo a  ingenuidade  das  donzellas  incautas. 

A  regente,  tirada  d'entre  as  «abelhas  mestras»,  era,  n'a- 
quelle  tempo,  pessoa  cujos  instinctos  libertinos  António  Lobo 
logo  surprehendeu  na  primeira  entrevista,  a  que  o  boticário  o 
acompanhou. 

Passava  dos  quarenta  annos.  Tinha  umas  feições  angulo- 
sas, e  um  buço  espesso,  que  lhe  davam  o  aspecto  de  um  homem 
feio  e  moreno,  enroupado  n'um  habito  pardo  com  touca  branca 
—  o  habito  da  casa. 

—  Esta  mulher,  pensava  António  Lobo  ao  observal-a,  deve 
ser  commum  aos  dois  sexos. 

E  reparou  que  ao  mesmo  tempo  que  ella,  dirigindo-lhe  a 
palavra,  torcia  em  sorrisos  dengosos  a  bocca  avariada,  fallava 
ás  recolhidas,  que  foram  chamadas  á  grade,  com  certa  intima- 
tiva máscula. 

Appareceram  quatro  recolhidas;  as  pretensas  alumnas  de 
lingua  franceza. 

Neuhuma  d'ellas  tinha  aquella  honesta  gracilidade,  aquella 
singeleza  de  virtude  que  na  Therezinha  de  Villalva  tanto  encan- 
tara António  Lobo. 

Duas,  principalmente,  eram  interessantes  raparigas,  de 
semblante  expressivo  e  agraciado,  mas  na  physionomia  de  to- 
das havia  já  o  que  quer  que  fosse  da  complicada  existência  con- 


140 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


ventual,  do  viver  do  locutório  e  da  cella,  com  segredos  incon- 
fessáveis, mexericos  e  intrigas,  rivalidades  e  preciosismos, 
conhecimento  do  mau  e  desejo  de  conhecer  o  peior. 

Tratavam-se  mimosamente  umas  ás  outras  pelos  diminu- 
tivos dos  seus  appellidos. 

Tinha-as  já  crestado  na  face  e  na  alma  esse  terrível  hálito 


o  convento  de  Santa  Clara  no  Porto 


que,  na  vida  em  commum,  parece  sahir  de  muitas  boccas,  tur- 
bilhonante  de  micróbios,  empestando  o  ar. 

Em  nenhuma  se  adivinhava  a  poesia  do  mysticismo,  o 
extasi  da  devoção,  a  vocaçBo  para  a  contemplativa  pureza  do 
claustro. 

Eram  mulheres  frívolas,  presumidas,  que  disputavam  frei- 
raticos  e  que,  para  os  conquistar,  lançavam  a  rede  todas  qua- 
tro ao  mesmo  tempo,  fallando  sempre,  cortando  as  ph rases 
umas  das  outras,  crusando  olhares  astutos  e  disparando  settas 
cupidineas. 

—  Como  foi  que  eu,  pensava  António  Lobo,  que  nao  gosto 
de  frades  e  de  freiras,  menos  ainda  de  freiraticos,  pude  vir 
cahir  n'esta  academia  de  amores  ovidianos,  peior  ainda  que  a 
dos  sábios  de  Guimarães?!  Eu,  o  chefe  do  club  philosophico 
de  Villa  Real  !  A  vida  é  um  xadrez  de  contradicções  e  parado- 
xos; a  minha  vida  principalmente!  Mas  Deus  escreve  direito 
por  linhas  tortas :  é  com  esta  tizana  violenta  que  hei  de  curar 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  141 


a  saudade  de  Therezinha.  O  veneno  também  cura;  a  questão 
é  saber  regular-lhe  as  doses. 

António  Lobo  nSo  sahiu  do  Recolhimento  do  Anjo  sem 
que  as  suas  futuras  alumnas  o  houvessem  disputado  n'um 
ardente  concurso  de  requebrados  galanteios. 

As  duas,  de  que  fizemos  particular  menção,  pareceram 
desde  logo  travar  duello  renhido,  questionando  a  posse  d'aquelle 
sympathico  novato  que  o  boticário  Ména  lhes  levara  pela  porta 
dentro  aos  empurrões. 

Na  frequência  dos  conventos,  os  caloiros  eram  sempre 
muito  apreciados^  e  António  Lobo  nSo  tinha  pratica  da  vida 
das  grades,  mundo  especial  com  que  nunca  havia  querido  fami- 
liarisar-se,  porque  lhe  repugnava. 

O  que  é  certo  é  que  elle  sahiu  dizendo  perspicazmente  a  si 
mesmo : 

—  Bem!  tenho  que  namorar  as  duas,  o  que  é  excellente 
garantia  de  que  me  não  apaixonarei  por  nenhuma.  Duas  garra- 
fadas  de  tizana  devem  curar  mais  depressa  que  uma  só. 

O  boticário  Mêna  não  prescindiu  de  o  levar  também  ao 
convento  de  Santa  Clara,  contente  de  fazer  serviços  ás  freiras 
e  de  lhes  poder  dizer  que  só  elle  seria  capaz  de  ter  encontrado 
um  professor  tão  agradável,  em  vez  de  algum  jarreta  de  óculos 
verdes,  tresandando  a  simonte. 

Ahi  vieram  á  grade  quantas  freiras  puderam  ter  logo  noti- 
cia do  feliz  achado  do  Mêna  e,  coisa  vulgar  nas  casas  religio- 
sas, também  duas,  principalmente,  se  avantajaram  no  «steeple- 
chase»  do  galanteio. 

Nenhuma  d'ellas  teria  muito  mais  de  trinta  annos,  e  am- 
bas possuíam  o  curso  completo  da  vida  mundanal  dos  con- 
ventos. 

Eram  rivaes  por  systema,  pois  que  presumiam  ser  as  pri- 
meiras esgrimistas  na  táctica  do  amor  e  da  galanteria. 

Uma  chamava-se  Clara  Ribeiro,  ou  Ribeira,  como  diziam 
lá  dentro.  Era  uma  tremelga  de  voluptuosidade.  Hoje  dir-se-ia 
uma  hysterica.  A  outra,  apparentemente  menos  impulsiva, 
chamava-se  Terencia,  e,  coincidência  digna  de  nota,  tinha, 
além  do  nome,  mais  alguma  coisa  de  romana:  o  vulto  mages- 
toso  e  uma  expressão  altiva  no  olhar  como  deviam  ter  em 
Roma  as  imperatrizes  devassas. 

—  Bem!  disse  comsigo  António  Lobo.  Duas  vezes  duas, 
são  quatro.  Isto  deve  divertir  muito  a  vida  de  um  homem,  que 
precisa  estontear-se. 

Ao  cabo  de  um  mez  António  Lobo  estava  iniciado  na  arte 
de  fazer  jogos  malabares  com  o  amor  conventual :  realizava 
alguns  prodígios  de  equilíbrio  entre  as  suas  quatro  apaixona- 


142  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


das,  as  do  Anjo  e  as  de  Santa  Clara,  que  se  agatanhavam  nos 
corredores  e  nas  cellas  á  conta  dos  verbos  francezes  e  da  con- 
jugação com  o  respectivo  professor, 

Nenhuma  das  quatro  cedia  terreno,  e  António  Lobo  apa- 
rava os  golpes  destramente,  ripostando  a  ponto. 

Recebia  presentes  de  lindas  meias  de  seda  e  camisas  de 
bretanha,  com  punhos  e  bofes  encanudados;  além  de  bo- 
los, rebuçados  de  limão  ou  rosa,  e  licores  fabricados  pela  pró- 
pria mão,  diziam  ellas,  das  suas  quatro  nymphas  amanteticas. 

A  mão  sempre  teve  altas  missões  de  prestigio  e  predomí- 
nio a  desempenhar  na  vida  dos  conventos. 

Disse  um  poeta  grego  que  o  pé  da  mulher  era  divino.  Pois 
a  mão  da  freira  valia  sempre  mais  do  que  o  pé. 

Lançado  no  turbilhão  das  grades,  e  manobrado  pela  força 
motriz  de  quatro  freiras  e  oito  mãos,  António  Lobo  cahiu  em 
cheio  no  fundo  de  todos  os  enredos,  bisbilhotices,  e  complica- 
ções conventuaes. 

Os  freiraticos  do  Porto  tinham-lhe  inveja,  mas  disfarçavam 
sua  emulação  tratando-o  como  o  primeiro  entre  elles,  porque 
o  temiam. 

E'  que  António  Lobo  despendurou  da  panóplia  a  tremenda 
cimitarra  das  suas  cóleras  poéticas. 

E  vibrava-a  com  o  arreganho  que  já  nós  lhe  conhecemos. 

A  sua  primeira  victima  foi  um  Tenório  tripeiro,  que  a  ma- 
dre Ribeira  de  Santa  Clara  odiava,  porque  tinha  sido  seu  assis- 
tente na  grade  durante  um  trimestre  e  depois  lhe  passou  o  pé 
para  ir  namorar  uma  tricana  maneta,  a  quem  a  natureza  com- 
pensara dando  mais  belleza  que  dedos. 

Clara  Ribeiro,  muito  despeitada,  dizia  que  nunca  vira  ta- 
manho tolo  com  menos  mãos,  porque,  ainda  que  viesse  a  des- 
posar a  tricana,  não  teria  em  casa  mais  de  trez,  quando  deve- 
ria ter  quatro. 

E  vae  o  sujeito,  sabendo  isto,  espalhou  um  dito  de  espirito 
pela  cidade : 

—  Que  as  mãos  eram  menos  precisas  ás  outras  mulheres 
do  que  ás  freiras.  Fora  dos  conventos  bastaria  uma,  e  dentro 
das  grades  não  chegavam  quatro. 

António  Lobo,  para  desaggravar  a  freira,  açacalou  este  so- 
neto contra  o  volúvel  peralta  e  a  linda  manetinha,  que  lhe  ia 
sugando  dispendiosas  tufalarias: 


As  antigas  historias  turbulentas 
Dizem,  que  vira  o  século  dourado 
Um  homem  de  cem  mãos  agigantado, 
Que  n'ellas  vinha  a  ter  unhas  quinhentas: 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  143 


Ora  um  d'estes,  se  as  garras  avarentas 
N'Azambuja  affizesse  a  um  bom  cajado, 
Que  bolças  não  leria  amarfanhado, 
A  quantos  não  quebrara  ambas  as  ventas? 

Assim,  tripeiro,  a  manelinha  bella 

Com  braço  e  meio,  que  no  manto  esconde, 

Nú  e  crú  te  ha  de  pôr,  que  isso  pôde  ella: 

Não  ouças,  não,  a  voz  que  te  responde. 
Que  se  pobre  te  vir,  de  mando  d'ella 
Has  de  ir  logo  beber,  bem  sabes  onde. 

O  homem  não  foi  beber  a  parte  nenhuma :  mas  tratou  de 
alHciar  despeitados  contra  António  Lobo,  o  que  decerto  lhe 
nao  custou  muito  trabalho,  porque  o  invejavam  os  que  não  dis- 
punham de  tantos  recursos  intellectuaes  e  desembaraço  phy- 
sico. 

Cahindo  n'um  meio  corrupto,  onde  paixões  mesquinhas  e 
vicios  torpes  fermentavam,  o  génio  violento  e  o  caracter  aggres- 
sivo  de  Lobo  resurgiram,  porque  já  lhe  faltava  a  contel-os  o 
amor  plácido  e  casto  que  a  Therezinha  de  Villalva  soubera  ins- 
pirar-lhe. 

Fazia  lembrar  realmente  um  lobo,  que  tivesse  adormecido 
e  despertasse  açulado  pela  vozearia  perseguidora  dos  pastores 
da  serra. 

O  que  elle  queria  era  encontrar  um  pretexto  para  destam- 
par satyras,  vingando  resentimentos  próprios  ou  ódios  alheios. 

Assim  foi  que  a  breve  trecho,  por  instigação  da  regente  do 
Anjo,  que  aliás  nao  podia  ver,  compoz  e  divulgou  sonetos  con- 
tra um  negociante  portuense,  secretario  da  Companhia  dos  Vi- 
nhos, recentemente  demittido  d'este  cargo. 

Que  mal  fizera  a  António  Lobo  tal  sujeito  ?  Nenhum.  Mas 
a  regente  tinha-o  tido  por  collaborador  em  duetos  de  motête 
cantados  na  grade.  Seja  dito  de  passagem  que  no  Recolhi- 
mento do  Anjo,  onde  a  padroeira  era  Santa  Cecília,  a  musica 
chegava  a  ser  um  vicio,  entre  os  outros.  E  o  melómano  fras- 
cario,  envergonhado  pela  falácia  da  sua  demissão,  abandonara 
a  grade,  a  freira,  a  solfa,  e  o  culto  de  Santa  Cecília. 

Lobo,  atiçado  insistentemente  pela  regente,  perseguiu-o 
com  irritada  persistência,  gritando-lhe  sonetos  aos  ouvidos  : 

Ponham-lhe  a  borla,  ajustem-lhe  o  capello. 
Mas  enterrem-n'o  logo,  e  é  necessário, 
Antes  que  entre  a  basofia  a  corrompêl-o. 

Leve  cada  vendeiro  um  breviário 
E  vão  todos  rezar  no  Cabedêllo 
Pela  alma  do  seu  grande  Secretario. 


144  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


E,  alludindo  sempre  á  demissão,  que  era  a  balda  certa  por 
onde  o  queria  ferir,  começava  outro  soneto  dizendo : 

Co'um  penedo  ao  pescoço  pendurado 
Lá  vai  um  dar  co'os  ossos  na  Ribeira, 
Sem  bastão,  sem  chapéu,  sem  cabelleira 
A  morrer  pelos  vinhos  afogado. 

A  vingança  pela  inconstância  dos  amantes  era  um  causa 
permanente  d'estes  e  quejandos  conflictos  nos  conventos  de  frei- 
ras :  ellas  vingavam-se  d'elles  e  elles  vingavam-se  d'ellas  por 
igual  systema,  em  prosa  ou  verso,  contando  miudezas  vergo- 
nhosas e  pormenores  escandalosos. 

Se  na  clientella  do  convento  havia  um  poeta,  era  esse  o 
porta- voz  da  vingança  das  freiras,  até  que  outro  poeta  o  viesse 
zurzir  por  sua  vez,  applicando  a  pena  de  Talião. 

Ora  a  verdade  manda  dizer  que  no  Porto  havia  algumas 
casas  religiosas  onde  se  praticava  a  virtude  e  mantinha  uma 
austera  disciplina.  Eram  poucas,  e  entre  ellas  devo  citar  uma, 
que  ficava  fronteira  ao  Recolhimento  do  Anjo.  Refiro-me  ao 
convento  de  «S.  José»  de  Carmelitas  descalças. 

Ahi  a  clausura  attingia  rigores  excessivos,  porque  as  frei- 
ras não  tinham  communicação  nenhuma  com  o  mundo  exte- 
rior, nem  das  suas  próprias  famílias  recebiam  noticias. 

O  padre  Agostinho  Rebello  dizia,  annos  depois,  referindo- 
se  a  este  convento  :  <N'elle  floresce  a  mais  regular  observância, 
e  o  exercido  de  todas  aquellas  virtudes  próprias  do  seu  refor- 
mado instituto.  A  sua  egreja  é  um  devotíssimo  santuário :  as 
festividades  que  n'ella  se  celebram,  o  aceio,  a  gravidade,  o  si- 
lencio e  a  modéstia,  tudo  infunde  um  sagrado  terror.» 

Eu  tenho  ainda  mais  recente  informação  que  a  do  padre 
Rebello.  Ouvi  muitas  vezes  uma  senhora  idosa  dizer  que  o  con- 
vento das  carmelitas  era  uma  sepultura  impenetrável,  onde 
santamente  jaziam  mulheres  impeccaveis.  Essa  mesma  senhora 
tinha  acompanhado  ali  uma  menina  portuense,  que  ia  vestida 
de  branco,  como  para  um  noivado  espiritual :  a  qual  menina 
para  sempre  se  despediu,  á  porta,  dos  pães  e  dos  parentes. 
Elles,  sem  poder  arrancar-se  d'ali,  chegaram  a  ouvir  ranger  a 
tesoura  com  que  a  todas  as  noviças  eram  cortadas  as  tranças 
do  cabello.  Depois,  cerrada  a  clausura,  a  joven  carmelita  não 
tornou  a  saber  mais  nada  do  mundo. 

Em  seguida  á  morte  de  D.  João  V,  o  povo  do  Porto,  para 
fazer  justiça  ás  freiras  virtuosas,  chamava  «odivellas»  ás  que 
o  não  eram. 

As  recolhidas  do  Anjo  pertenciam  ao  rol  das  «odivellas». 
Na  sua  egreja,  toda  de  pedra  lavrada,  o  triduo  da  Senhora  da 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  145 


Apresentação  e  a  festa  de  Santa  Cecília  eram  como  ruidosos 
passatempos  n'uma  sala  mundana,  por  opposiçao  ás  silenciosas 
e  graves  solemnidades  que  se  celebravam  no  visinho  templo 
das  carmelitas  descalças.  E  a  vida  normal  parodiava  as  liber- 
dades da  madre  Paula  e  outras  madres  reguengueiras  no  fa- 
moso serralho  monástico  de  D.  João  V. 

Um   dia  em   que   António  Lobo  sahia  do  Recolhimento  do 
Anjo,  passou  por  elle  uma  camponeza,  «lavradeira»  como  lá  se 
diz,  que  parou  a  observal-o. 
Elle  nem  fez  reparo. 
Era  a  recoveira  de  Santo  Thyrso. 

—  Ou  eu  nao  estou  boa  do  juizo,  pensou  ella,  ou  aquelle  é 
o  «Mafarrico  de  Guimarães»  em  carne  e  osso. 

Iam  passados  quatro  mezes  depois  que  António  Lobo  par- 
tiu da  Palmeira,  e  Therezinha  não  tornara  a  saber  d'elle,  que 
lhe  não  sahira  uma  hora  do  pensamento. 

A  principio,  a  linda  cachopa  de  Villalva  resentiu-se  do  que 
se  lhe  affigurava  uma  traição  :  ter  elle  partido  ás  escondidas, 
guardando  tanto  segredo  para  ella  como  para  as  outras  pes- 
soas. 

Depois  comprehendeu  que  o  beijo,  primeiro  e  único,  que 
elle  lhe  roubara,  valia  tanto  como  a  mais  carinhosa  despedida, 
o  mais  enternecido  adeus. 

E  desde  que  tinha  podido  traduzir  a  expressão  apaixonada 
e  dolorosa  d'esse  beijo,  o  seu  amor  por  António  Lobo  tornou-se 
adoração,  capaz  de  todos  os  sacrifícios. 

A  recoveira  foi  dizer  para  Santo  Thyrso  que  tinha  visto  o 
«Mafarrico»  no  Porto. 

Esta  noticia  depressa  chegou  á  Palmeira,  onde  Therezinha 
logo  a  soube. 

O  mesmo  foi  sabel-a  e  ir  procurar  a  recoveira  no  empe- 
nho de  colher  pormenores. 

—  Diga-me  uma  cousa,  ó  «ti»  Anna,  então  vocemecê,  se- 
gundo por  ahi  sôa,  viu  o  sr.  António  Lobo  no  Porto? 

—  Vi  mesmo,  com  estes  que  a  terra  ha  de  comer.  Vi-o  sa- 
hir  a  porta  do  Recolhimento  do  Anjo. 

—  Pareceu-lhe  que  terá  saúde  ? 

—  Se  tem !  Está  tão  fero  como  na  Palmeira. 

—  Melhor  é  assim. 

Houve  uma  pausa,  o  tempo  preciso  para  a  Therezinha  se 
resolver  a  fallar  claro. 

—  O'  *  ti» 'Anna!  Eu  quero  encommendar-lhe  uma  cousa. 

—  Pois  diz  lá,  cachopa. 

—  Mas  olhe  que  é  um  grande  segredo- 
E  a  recoveira,  muito  ladina  : 

10 


146  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Quantos  segredos  eu  não  levo  e  trago  do  Porto  I  E'  mais 
um.  Hei  de  poder  aguentar-liie  o  peso. 

—  Se  vossemecê  seria  capaz  de  saber  onde  mora  no  Porto 
o  senhor  António  Lobo. 

—  O'  rapariga !   Só  se  eu  o  tornar  a  vêr  e  lh'o  perguntar. 

—  Isso  não  I  que  elle  nâo  Ih^o  dizia. 

—  Então  não  sei  que  te  faça 

—  Olhe!  vá  vossemecê  ao  Recolhimento  do  Anjo,  já  que 
de  lá  o  viu  sahir,  e  pergunte  se  elle  lá  vae  por  uso  e  costume. 
Talvez  por  ahi  se  possa  saber  alguma  cousa. 

—  Lembras  bem  !  Para  a  outra  vez  já  te  eú  trago  a  res- 
posta. Mas,  olha  lá,  ó  cachopa,  isso  não  será  para  teu  mal? 

—  Não,  <iti»'Anna.  Não  suspeite  maldade  nenhuma. 

—  Pois  vê  lá,  que  eu  não  quero  andar  mettida  em  enredos, 
nem  ter  carregos  na  consciência. 

—  Tire  d'ahi  a  idéa,  e  pegue  lá  esta  lembrança. 
Era  dinheiro. 

Na  semana  seguinte,  a  recoveira  de  Santo  Thyrso  andou 
pelos  arredores  do  Recolhimento  do  Anjo  a  vêr  se  encontrava 
António  Lobo. 

Não  o  viu. 

Resolveu-se  a  entrar  na  portaria  e  perguntar  se  ali  costu- 
mava ir  um  individuo  d'aquelle  nome. 

—  António  Lobo  !  repetiu  a  porteira.  Não.  Aqui  vem  á 
grade  alguns  Antonios,  que  visitam  as  senhoras,  mas  nenhum 
é  Lobo. 

—  Este  deve  estar  no  Porto  ainda  ha  pouco  tempo. 

—  Ha  pouco  tempo  V  Vem  cá  um  António  Claudino,  que  é 
do  Alto  Minho;  mas  não  se  chama  Lobo. 

—  O  que  eu  digo  é  de  Guimarães. 

—  Então  é  outro  com  certeza. 

Levou  a  recoveira  esta  desconsoladora  resposta  que  amar- 
gurou o  coração  de  Therezinha. 

—  «Ti»  Anna!  se  vossemecê  descobrir  no  Porto  o  sr.  An- 
tónio Lobo,  pode  contar  com  uma  boa  molhadura. 

—  Pobresinha  sou  eu,  e  preciso  muito  de  ganhar  a  vida. 
Mas  isso  é  o  mesmo  que  procurar  agulha  em  palheiro. 

—  Com  a  ajuda  de  Deus  talvez  consiga. 

Passaram  mais  de  seis  mezes,  e  um  dia  a  recoveira  foi  a 
Villalva  dizer,  muito  contente,  a  Therezinha  : 

—  Rapariga !  tornei  a  vêr  o  sr.  António  Lobo ! 

—  Aonde?! 

—  N'uma  botica  da  rua  do  Moinho  de  Vento.  Puz-me  á 
coca  até  que  elle  sahiu.  Fui  atraz  d'elle  seguindo-o  de  longe,  e 
vi-o  entrar  para  o  Recolhimento  do  Anjo. 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  147 


—  Outra  vez  para  o  mesmo  sitio!  exclamou  Therezinha 
com  atormentado  semblante.  E  depois? 

—  Deixei-o  entrar  no  Recolhimento  e,  passado  algum  tempo, 
fui  perguntar  á  porteira  :  faz  favor  de  me  dizer  como  se  chama 
aquelle  senhor  que  para  aqui  entrou  ainda  agora? 

—  E  ella  o  que  disse? 

—  Que  se  chamava  António  Claudino. 

—  Mas  é  elle? 

—  E'  elle,  sem  tirar  nem  pôr. 

—  E  que  sabe  mais,  «ti»  Anna? 

—  Perguntei-lhe  se  sabia  dizer  onde  elle  morava.  E  vai  ella 
respondeu:  «Olhe,  onde  mora  não  sei  ao  certo;  mas  na  botica 
do  Mêna,  ali  no  Moinho  de  Vento,  lh'o  poderão  dizer.» 

—  E  vossemecê  foi  á  botica  ? 

—  Então  não  havéra  de  ir  1 

—  Como  foi  que  disse  na  botica? 

—  Perguntei  se  me  podiam  dizer  onde  morava  um  sujeito 
da  minha  terra. . . 

—  Bem  !  bem  !  Chamado  como  ? 

—  Não  que  eu  percebo-te,  cachopa.  Chamado  António 
Claudino,  pois  já  se  deixa  vêr. 

—  Não  fallou  em  Lobo  ? 

—  Pensas  tu  que  eu  nasci  honte  ?  !  Logo  futurei  que  elle  te- 
ria mudado  de  nome  por  algum  motivo;  talvez  por  causa d'es- 
sas  questões  que  dizem  que  teve  com  as  gentes  de  Guimarães. 

—  Mas  no  fim  de  contas  onde  é  que  elle  mora? 

—  Na  rua  do  Pinheiro,  numero  11. 

—  Ah  I  «ti»  Anna  !  vossemecê  andou  com  muita  esperteza! 
Merece  bem  a  molhadura.  Amanhã  lh'a  darei,  e  não  ha  de 
tornar  ao  Porto  sem  m'o  dizer. 

—  Conta  comigo,  cachopa,  visto  que  não  andas  de  mau 
sentido. 

—  Já  lhe  disse  que  não.  Pôde  estar  socegada. 

Depois  que  a  recoveira  se  despediu,  Therezinha  ficou  a 
olhar,  pensativa,  para  a  escassa  corrente  do  Sanguinhêdo,  que 
derivava  por  entre  pedras  soltas,  lentamente. 

A  linda  cachopa  de  Villalva  não  podia  dizer  a  si  própria  se 
devia  estar  alegre,  se  triste.  Sabia  onde  António  Lobo  morava 
no  Porto,  mas  sabia  também  que  elle  ia  repetidas  vezes  ao  Re- 
colhimento do  Anjo. 

—  E'  namoro  que  lá  tem...  pensava  ella. 

E  ficava  a  scismar  n'esta  funesta  apprehensão.  Depois  pro- 
curava reanimar-se  dizendo  — Mas,  finalmente,  tornei  a  saber 
d'elle  !  D'ahi  a  pouco  voltava  ao  desalento  que  esta  idéa  amarga 
justificava:  «D'elle  que  não  quiz  saber  de  mim!...> 


148  o   LOBO    DA   MADRAGÔA 


Se  soubesse  escrever,  leria  dito  tudo  isto  n*uma  longa  carta, 
muito  longa,  a  António  Lobo. 

Não  sabia,  nem  queria  confiar  a  ninguém  todos  estes  Ínti- 
mos segredos,  que  eram  ao  mesmo  tempo  a  felicidade  e  a  tor- 
tura da  sua  vida. 

O  amor  das  mulheres  honestas  retrai-se  n*um  pudor  invio- 
lável, que  é  como  que  a  flor  da  castidade  occulta  no  mysterio 
do  coração. 

Therezinha  demorou  o  olhar  indeciso  nas  boninas  que  es- 
maltavam a  verdura  pelas  encostas  floridas  do  pequeno  valle 
de  Villalva. 

—  Bem!  disse  ella.  Já  sei  quem  ha  de  escrever  por  mim. 
D'ahi  a  dois  dias  a  recoveira  voltava  ao  Porto. 
Therezinha  entregou-lhe  um  pacotinho,  enleiado  com  uma 

fita  verde. 

—  Veja  lá,  «ti»  Anna,  que  se  não  estrague  o  papel  pelo  ca- 
minho. Vossemecê  vai  á  rua  do  Pinheiro  numero  11  e  deixa 
ficar  isto  para  ser  entregue  ao  sr.  António  Claudino.  Nao  diz 
quem  é  que  manda.  Tome  bem  sentido. 

—  Fica  certa,  cachopa. 

Dentro  do  pacotinho  ia  um  ramo  de  «Nao  me  esqueças,» 
atado  com  um  fio  de  cabello. 


XII 


Hova  sepapaçáo 


António  Lobo  nao  podia  aguentar-se  por  muito  tempo  n'uma 
sociedade  de  freiras  e  freiraticos,  que  detestava,  e  cujos  ridicu- 
los  lhe  estavam  a  cada  momento  estimulando  a  lyra. 

Elle,  que  em  Villa  Real  protestara  contra  as  costumeiras 
amorosas  de  Portugal,  contra  o  requebro  derretido,  contra  o 
«gargarejo»  nocturno  e  outras  apaixonadas  pieguices,  não  po- 
dia sujeitar-se,  sem  mais  ou  menos  próxima  revolta,  ao  namoro 
da  grade,  através  de  uma  barreira  de  ferro,  o  galan  aqui,  a 
freira  além,  trocando-se  olhares,  phrases  e  gestos  n'um  duetto 
de  cómicos  arroubos,  que  a  decência  não  auctorisava. 

Pôde  bem  imaginar-se  a  impressão  que  lhe  causaria  rece- 
ber as  flores  mandadas  pela  Therezinha  de  Villalva,  cuja  alma 
elle  divinisava  no  confronto  com  o  atoleiro  em  que  chafurdavam 
as  freiras  e  os  freiraticos  do  Porto. 

Foi  o  próprio  António  Lobo  quem  d'essa  vez  fallou  com  a 
recoveira  de  Santo  Thyrso. 

Quando  ella  lhe  entregou  os  myosótis,  commoveu-se  pro- 
fundamente. 

E  abriu  a  sua  alma  n'uma  torrente  de  perguntas  cheias  de 
affectuoso  interesse : 

—  Então  a  Therezinha  está  linda,  muito  linda? 

A  recoveira  respondia  com  todo  o  seu  desembaraço  mi- 
nhoto : 

—  Benza-a  Deus!  Não  ha  nos  nossos  sitios  cachopa  mais 
perfeita. 


150  o    LOBO   DA    MADRAGÔA 


—  E  a  respeito  de  conversados? 

—  Nenhum. 

—  Nem  o  pobre  Miguel  ? 

—  Credo!  Elle  anda  sempre  n'um  derreto,  mas  ella  n?lo  lhe 
dá  attençSo. 

—  E  a  tia  Rosa  ainda  vive? 

—  Sim,  senhor.  Sempre  emprégadinha. 

—  E  o  Manuel  barqueiro? 

—  Sao  como  um  pêro. 

Depois  António  Lobo  quiz  saber  como  a  recoveira  tinha  po- 
dido encontral-o  no  Porto,  descobrir  a  rua  onde  elle  morava. 

Riu-se  muito  quando  ella  lhe  contou  que  a  atrapalhara  o 
dizerem-lhe  que  elle  se  chamava  António  Claudino. 

Lobo  interrompeu-a  dizendo : 

—  Eu  nSo  fiz  crime  nenhum,  «ti»  Anna ;  quero  apenas  que 
os  meus  inimigos,  que  sao  gente  poderosa,  me  deixem  em  paz. 

A  recoveira  contou  tudo,  e  descreveu,  na  sua  linguagem 
rude  mas  pittoresca,  o  afan  com  que  Therezinha  a  incitava  a 
que  lhe  levasse  noticias  e  com  que  costumava  interrogal-a  sem- 
pre que  tornava  do  Porto. 

António  Lobo  deteve-se  algum  tempo  em  silencio,  como 
quem  está  luctando  comsigo  mesmo  na  resolução  de  um  lance 
embaraçoso. 

De  repente,  sentou-se  a  uma  banca  e  escreveu  com  extrema 
rapidez  em  meia  folha  de  papel : 

Se  te  esqueci  ?  Esquecer- to  1  Jamais. 
Amo-te  e  fujo  ;  fujo  e  amo-te  mais. 

Foram  estes  dois  versos  os  únicos  de  amoroso  lyrismo  que 
António  Lobo  de  Carvalho  escreveu  em  toda  a  sua  vida. 

Quero  dizer  ao  leitor  o  modo  como  Therezinha  conseguiu 
lêr  o  papel  que  elle  lhe  mandara. 

Fingiu  que  o  tinha  encontrado  na  rua  de  Santo  Thyrso,  ê 
mostrou-o  a  um  pequeno,  que  andava  aprendendo  latim  no 
mosteiro  benedictino. 

—  Achei  ainda  agora  este  papel.  Vê  lá  o  que  elle  diz. 

O  rapaz  leu,  e  Therezinha  sentiu  fugir-lhe  a  vista,  zumbi- 
rem-lhe  os  ouvidos,  tamanho  abalo  lhe  causou  a  audição 
d'aquellas  doces  palavras,  que  lhe  pareceram  musica  tão  linda 
como  o  canto  do  rouxinol. 

Ella,  procurando  recobrar-se  da  primeira  commoção : 

—  Torna  a  ler.  Como  é  bonito  isso!  De  quem  será? 
O  rapazote,  muito  sentencioso : 

—  Isto  quanto  a  mim  devem  ser  versos  traduzidos  de  Ho- 
rácio ou  de  Ovídio. 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  151 


—  Nao  São  pessoas  de  cá  ? 

—  São  poetas  de  Roma. 

—  Torna  a  lêr,  que  é  um  gosto  ouvir. 

E,  á  segunda  audição,  Therezinha  reteve  de  memoria  os 
versos :  , 

Se  te  esqueci  ?  Esquecer-te  !  Jamais. 
Amo-te  e  fujo ;  fujo  e  amo-te  mais. 

Durante  mais  de  um  anno  não  faltaram  a  António  Lobo  as 
remessas  de  flores  campestres,  especialmente  myosótis,  que  a 
recoveira  lhe  levava  todas  as  semanas. 

Eram  as  cartas  de  Therezinha :  boninas. 

António  Lobo  algumas  vezes  tentou  escrever-lhe,  mandar- 
Ihe  palavras  de  carinhosa  correspondência. 

—  Não  posso!  dizia  elle  largando  a  penna.  Aquelles  dois 
versos  foram  o  único  poema  casto  da  minha  alma.  Tão  espon- 
taneamente os  compuz,  que  despedacei,  no  afogo  de  compol-os, 
a  lyra  do  amor. 

Estranhou  António  Lobo  que  depois  de  certo  tempo  a  re- 
coveira de  Santo  Thyrso  não  voltasse  mais  com  as  flores  de 
Therezinha. 

Passaram-se  quatro  ou  cinco  mezes  n'um  silencio  para  elle 
inexplicável. 

Morreria?  perguntava  a  si  mesmo.  Mas  então  porque  não 
vem  dizer-m'o  a  recoveira? 

Um  dia,  ao  entrar  no  Recolhimento  do  Anjo,  a  porteira 
disse-lhe  que  estava  na  grade  uma  senhora  á  espera  d'elle. 

—  E  não  ha  de  ser  só  uma,  respondeu  António  Lobo  ma- 
liciosamente. 

—  E'  uma,  que  entrou  hontem. 

—  Hontem  ? 

António  Lobo  correu  á  grade,  onde  Therezinha  o  estava  es- 
perando, já  com  o  habito  pardo  e  a  touca  branca,  da  casa. 

—  Therezinha!  aqui?  exclamou  António  Lobo  fulminado  de 
dolorosa  surpreza.  Aqui !  n'este  Recolhimento,  santo  Deus ! 

Ella,  n'uma  grande  vibração  de  sensibilidade  delicada,  ex- 
plicou : 

—  Tinha  morrido  primeiro  a  tia  Rosa,  pouco  tempo  depois 
o  Manuel  barqueiro.  Estava  livre  e  só.  Lembrara-se  de  procu- 
rar uma  casa  religiosa  onde  pudesse  viver  honestamente.  E  a 
terra  que  ella  preferia...  era  o  Porto.  Mas  não  quizera  naan- 
dar-lhe  dizer  nada,  para  lhe  preparar  uma  surpreza.  Prohibira 
até  a  recoveira  de  o  procurar. 

—  E  que  passos  deu  para  entrar  aqui,  Therezinha? 

—  Foi  o  meu  padrinho  que  tratou  dos  papeis  necessários. 


152  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Segundo  elle  me  disse,  foi  preciso  mandar  vir  de  Lisboa  certo 
documento. 

—  Um  aviso  régio? 

—  Isso  mesmo. 

—  Ah  !  Thereziniia  !  se  me  tem  dito  o  que  tencionava  fazer, 
eu  oppor-me-ía  a  que  entrasse  n'este  Recolhimento. 

Therezinha,  com  a  voz  embargada  de  lagrimas,  disse  a 
custo : 

—  Fiz-lhe  mal,  sr.  Lobo? 

—  Nao,  nunca.  Mas  fez  mal  a  si  própria,  que  é  uma  vir- 
tuosa rapariga,  e  que  nao  deve  estar  aqui,  onde  a  virtude  se  nSo 
dá  bem  com  os  hábitos  da  casa. 

Therezinha  aventurou,  com  pudibunda  timidez,  uma  phrase 
que  aflorou  aos  lábios  emperlada  de  lagrimas : 

—  A  recoveira  disse-me  que  o  sr.  Lobo  vinha  aqui  muitas 
vezes. . . 

—  Tenho  vindo,  sim,  mas  eu  sou  um  homem  que  nao  tem 
que  perder.  As  mulheres  d'esta  casa  nao  sao  dignas  de  convi- 
ver com  a  Therezinha : 

—  Então  nao  ha  aqui  pessoas  virtuosas,  como  eu  pensava? 

—  Ha  mulheres  que  a  Therezinha  não  deve  conhecer  e  que 
eu...  nao  posso  amar. 

Um  clarão  de  alegria  illuminou  o  rosto  de  Therezinha,  que 
demorou  em  António  Lobo  um  olhar  de  espanto. 
Elle  comprehendeu-a  e  insistiu  : 

—  Que  eu  não  amo;  que  ninguém  ama. 

Houve  um  momento  de  silencio,  após  o  qual  António  Lobo, 
fitando-a  com  ternura,  lhe  disse : 

—  Avalio  o  sacrifício  que  fez  em  deixar  Villalva  ! 
Ella  sorriu-se  com  mavioso  acanhamento. 

—  Disse-me  uma  vez,  tornou  elle,  que  lhe  custaria  ser  cons- 
trangida a  deixar  a  sua  terra,  se  fosse  preciso. 

—  Pois  lembra  se?!  perguntou  Therezinha  com  involun- 
tária precipitação. 

—  Lembro,  sim.  E  eu  não  quero  que  faça  esse  sacrifício. 
A  virtude  da  Therezinha  não  precisa  defender-se  n'um  convento; 
a  si  mesma  se  defende  em  toda  a  parte.  E  o  Recolhimento  do 
Anjo  não  é  baluarte  de  virtudes.  Ouve,  Therezinha?  Desejo  que 
volte  para  Villalva. 

—  Que  volte?! 

—  Sim,  que  volte.  E  ha  de  fazer-me  esse  sacrifício,  já  que 
está  disposta  a  fazel-os. 

—  Não  me  quer  vêr! 

—  Quero  vêl-a,  e  vejo-a  sempre  na  minha  alma.  Juro-lhe 
que  nao  amei  nunca  tao  puramente  mulher  nenhuma. 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  153 


—  Mas.. . 

—  Diga,  falle. 

—  Mas  por  que  vem  então  aqui,  tantas  vezes? 

—  Venho  matar  o  tempo,  esquecer-me  da  felicidade  que 
não  posso  ter. . .  Vivo  aqui,  como  um  animal  immundo  n'uma 
pocilga.  Juro-lh'o,  juro-lh'o,  acredite. 

Therezinha  olhou- o  n'um  enternecimento,  que  era  extasi. 
Inclinou  levemente  a  cabeça,  para  esconder  um  novo  cau- 
dal de  lagrimas,  e  disse: 

—  Pois  bem,  sr.  Lobo,  farei  o  que  me  ordenar. 

—  Muito  lh'o  agradeço...  por  si  e  por  mim.  Quem  a  acom- 
panhou ao  Porto? 

—  O  Miguel. 

—  Miguel  ?  1 

—  Sim,  leal  e  dedicado  como  um  cão.  Imagine  quanto  lhe 
custaria  este  meu  passo.  Pois  eu  pedi-lhe,  e  elle  annuiu  a  acom- 
panhar-me. 

—  Já  voltaria  para  a  Palmeira? 

—  Ainda  não. 

—  Muito  bem.  E'  o  Miguel  quem  vae  tornar  a  acompa- 
nhal-a.  E'  preciso  partir  amanhã  de  manhã. 

-  Mas  o  que  hão  de  dizer  cá  dentro  do  Recolhimento ! 

—  Isso  é  comigo,  Therezinha.  Eu  tratarei  d'isso. 

N'este  momento  abriu-se  de  súbito  a  porta  interior  da  gra- 
de, que  Therezinha,  inexperiente  dos  hábitos  conventuaes,  não 
tinha  fechado  por  dentro. 

Appareceu  um  grupo  de  recolhidas,  vindo  á  frente  uma 
das  apaixonadas  de  António  Lobo,  a  qual  irrompeu  em  descom- 
posta gritaria : 

—  Ouvimos  tudo!  Com  que  então,  sr.  António  Lobo,  per- 
dão... sr.  António  Claudino,  esta  mimosa  ovelhinha,  que  faz 
de  Vossa  Mercê  um  lobo  manso,  não  pôde  ficar  entre  nós  ou- 
tras, que  somos  ovelhas  tinhosas !  Forte  desaforo  o  de  Vossa 
Mercê,  e  forte  sonsice  a  d'esta...  virtuosa  minhota,  casta  flor 
de  innocencia  !. . . 

Casquinaram  gargalhadas  de  ironia  e  de  troça  n'um  retin- 
tm  arruaceiro  de  praça  publica. 

António  Lobo,  de  pé,  o  olhar  desvairado,  o  gesto  iroso,  gritava: 

—  Venha  a  regente,  que  me  quero  entender  com  ella.  Se 
não  vier,  vou  eu  mesmo  arrancal-a  lá  dentro. 

—  Olha  o  lobo  assanhado! 

—  Mais  que  lobo  1  Parece  tigre  da  Hyrcania ! 

—  Não  se  enfureça  tanto,  que  a  regente  não  tarda.  Já  a 
Mirandinha  foi  avisal-a  de  toda  esta  fabula  em  acção :  um  lobo 
e  uma  cordeira. 


154  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


—  Ah  !  ah  !  ah !  riam  em  coro  as  recolhidas. 
Mirandinha   era  a  outra  amantetica  de  António  Lobo,  a 

qual,  perante  o  perigo  da  concorrência,  fizera  causa  commum 
com  a  sua  antiga  rival. 

A  regente  não  tardou  a  apparecer,  acompanhada  pela  Mi- 
randinha e  por  mais  duas  ou  trez  recolhidas. 

Vinha  irada  e  facunda. 

—  Esta  mesquinha  morta,  dizia  ella,  indicando  Therezinha, 
pediu-me  licença  para  vir  entregar  na  grade  uma  carta  do  seu 
padrinho,  o  padre  cruzio  D.  Joaquim  Mariz,  ao  sr.  António 
Claudino.  Perdão !  eu  já  sei  que  Vossa  Mercê  também  é  bicho. 
Pois  ignorava  que  tivesse  costella  de  «lobo!»  Boa  raça!  não  ha 
duvida ! 

António  Lobo,  n'uma  formidável  explosão  de  cólera,  rugiu 
temerosamente : 

—  Cuidado!  Não  me  provoque!  se  não  quer  que  eu  ponha 
á  luz  do  sol  todos  os  podres  e  todas  as  torpezas  d'esta  casa. 
Sabe  que  sou  capaz  de  o  fazer. 

—  Capaz  d'isso  é  Vossa  Mercê,  replicou  irónica  a  re- 
gente. Mas  esta  prenda  não  pôde  ter  entrado  hontem  e  sahir 
amanhã,  depois  de  haver  perturbado  a  nossa  paz  interna.  Um 
tão  estranho  successo  chamaria  descrédito  sobre  o  nosso  Re- 
colhimento. 

—  Descrédito!  sublinhou,  gargalhando,  António  Lobo.  Esta 
senhora  é  de  maior  idade,  e  livre  á  sombra  da  lei.  Quiz  entrar 
hontem,  e  entrou.  Agora  quer  sahir,  e  sahirá.  Se  a  maltrata- 
rem, ir-me-hei  queixar  ao  bispo,  ao  corregedor,  ao  regedor  das 
justiças,  a  el-rei  em  pessoa.  Esta  noite  porei  de  ronda  ao  Re- 
colhimento um  homem  de  confiança.  Ao  menor  grito  pedirá 
auxilio,  se  d'elle  carecer,  o  que  eu  duvido,  porque  é  homem 
para  varrer  uma  feira. 

António  Lobo  referia-se  a  Miguel. 

Therezinha  estava  mais  admirada  que  medrosa  de  quanto 
ouvia.  Mulher  do  Minho,  não  conhecia  perigos,  nem  receios. 
E,  mentalmente,  explicava  a  si  própria  o  procedimento  de  An- 
tónio Lobo  em  não  a  querer  ali. 

—  Bem.  Esta  rica  prenda  é  um  «noli  me  tangere»,  ironisou 
a  regente. 

Todas  as  recolhidas  glosaram  a  phrase  com  uma  risada. 
António  Lobo  disse  imperiosamente  a  Therezinha,  corus- 
cando em  redor  um  olhar  terrível : 

—  Recolha-se  á  sua  cella,  que  eu  amanhã  a  virei  buscar. 
Perante  a  firmeza  d'esta  ordem,  Therezinha  sahiu  da  gra- 
de. As  recolhidas  deixaram-n'a  passar  em  silencio. 

—  E  agora  ?  perguntou  zombeteiramente  a  regente. 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  155 


—  Agora,  respondeu  Lobo,  a  cabeça  de  Vossa  Mercê  res- 
ponderá pela  cabeça  d'ella. 

Voltou  as  costas  e  sahiu  altivo. 

Momentos  depois,  era  procurado  em  casa  pelo  Miguel,  que 
lhe  disse  : 

—  Sr.  Lobo,  venho  pedir-lhe  um  favor.  Therezinha  quiz 
vir  para  o  Recolhimento,  e  eu  acompanhei-a  como  se  fosse 
innao  d'ella.  Bem  sei  eu  o  que  a  chamou  ao  Porto,  e  o  sr. 
também  sabe.  Mas  agora  níio  ameaço,  peço-lhe  encarecida- 
mente que  Ucio  a  desencaminhe  do  Recolhimento. 

—  Miguel !  Therezinha  volta  comtigo  amanha  para  Villalva, 
que  assim  o  quero  eu. 

—  Voltai  exclamou  Miguel  doido  de  alegria. 

Depois,  António  Lobo  explicou-lhe  os  motivos  d'esta  reso- 
lução, contou-lhe  toda  a  scena  que  se  tinha  passado  na  grade 
e  recommendou-lhe  que  n'essa  noite  vigiasse  o  Recolhimento. 

—  Se  eu  ouvir  Therezinha  grilar  ou  chorar,  arrombo  a 
porta  do  Recolhimento  e  vae  tudo  raso  lá  dentro.  Sou  muito 
capaz  de  o  fazer. 

Passadas  algumas  horas,  o  boticário  Mêna  foi  procurar 
António  Lobo  para  lhe  pedir  «que  evitasse  o  escândalo  da  im- 
mediata  sabida  de  D.  Thereza»,  palavras  suas. 

Era  commissão  da  regente. 

Pediu,  instou,  supplicou. 

António  Lobo  mostrou-se  inexorável,  e  o  boticário  sahiu 
irritado,  mas  receioso,  dizendo  do  fundo  da  escada : 

—  Desde  hoje  em  deante  as  nossas  relações  estão  quebra- 
das. 

—  «Serviteur. ..»  respondeu-lhe  António  Lobo,  mesurando 
como  um  «frança». 

Este  rompimento  de  relações  explica  o  soneto  com  que  o 
poeta  o  verberou  dizendo : 

Pois  ali  onde  o  vês,  feito  herbanario, 

Jaz  o  Mêna,  que  além  da  fidalguia 

E'  um  «francez»  da  Beira  extraordinário. 

No  dia  seguinte,  Therezinha  sabia,  livremente,  do  Reco- 
lhimento do  Anjo. 

E  despedia-se  de  António  Lobo  n'uma  tocante  effus5o  de 
lagrimas. 

Elle  ieve  ainda  o  impulso  de  querer  beijal-a,  como  na  Pal- 
meira, mas  nSo  ousou  íazel-o  na  presença  de  Miguel. 

Trocaram-se  poucas  palavras  n'essa  despedida,  tão  escura 
quanto  ao  porvir  como  nuvem  negra  que  ensombrasse  aquel- 
les  dois  corações. 


156 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Só  Miguel  parecia  feliz,  sem  comprehender  o  sacrifício  de 
ambos. 

António  Lobo  conservou-se  apparentemente  forte,  mas 
n'essa  noite  chorou  deante  de  um  amigo  que  nos  últimos  dois 
mezes  tinha  encontrado  no  seu  caminho. 

Era  um  fidalgo  de  Riba-Douro,  o  morgado  da  Boa  Vista, 
janota  e  dissipador,  gentil  e  bem  fallante,  que  frequentava 
no  Porto  todos  os  logares  mundanos. 

Lobo  principiou  a  conhecel-o  e  a  aííeiçoar-se-lhe  nas  gra- 
des dos  conventos. 

O  morgado,  ouvindo  a  confidencia,  dissera-lhe: 
—  Eu  comprehendo  isso,  meu  caro  Lobo.  Todo  o  homem 

ama  uma  vea  na  vida;  a  sua 
hora  chegou.  Eu  também  a  tive. 
Quando  isso  acontece,  um  ho- 
mem procura  salvar-se,  colhen- 
do nas  outras  mulheres  o  que 
dignamente  respeitou  n'uma.  E' 
o  que  eu  faço,  e  Vossa  Mercê 
deve  fazer.  Minha  prima,  a  sr.* 
duqueza  D.  Anna  de  Lorena, 
camareira-mór,  costuma  dizer 
que  cada  mãe  toma  tanto  vulto 
na  vida  de  um  filho,  que  ainda 
depois  de  morta  lhe  reapparece 
na  figura  d'outra  mulher,  para 
continuar  a  amal-o.  Eu  já  perdi 
esse  segundo  coração  materno, 
que  a  terra  da  sepultura  devo- 
rou. Vossa  Mercê  é  mais  feliz 
do  que  eu,  porque  ainda  o  sente 
pulsar.  Contente-seeresigne-se. 
Vamos  d'ahi  a  Santa  Clara  con- 
versar com  as  freiras,  já  que  as 
portas  do  Anjo  estão  interdictas 
por  amor  de  outro  anjo  bem 
mais  puro. 

E,  dizendo  isto,  compôz  os 
anneis  da  cabelleira,  cantaro- 
lando um  minuete  da  época: 


Olha  o  casquilho 
Com  seu  requeijão: 
Vae  ao  Rocio 

O  «lorgado  da  Boa  Vista  Comel-O  COm  pãO. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  157 


Planeou-se  no  Recolhimento  do  Anjo  uma  campanha  de 
vingança  contra  António  Lobo,  á  qual  promptamente  adheri- 
ram  o  boticário  Mêna  e  todos  os  poetastros  que,  na  enxurrada 
de  Apollo,  vasavam  delambidos  madrigaes  dentro  das  grades 
d'aquelle  Recolhimento. 

Appareceram  pasquins  affixados  nas  ruas  do  Porto,  prin- 
cipalmente á  porta  dos  magistrados  e  mais  pessoas  gradas  da 
cidade. 

Além  de  pôr  suspeição  sobre  a  mudança  de  nome,  e  de 
engranzar  vários  trocadilhos  ensôssos  com  as  palavras  «lobo» 
e  «cordeira»,  cada  pasquim  apontava  António  Lobo  como  pa- 
rasita, vadio,  ingrato  e  relapso  immoralão. 

Frizava-se  o  caso  do  boticário  Mêna  o  ter  protegido,  e  de 
haver  sido  desacatado  por  elle,  isto  á  conta  de  provar  uma  in- 
gratidão abominável. 

Quanto  á  «immoralidade»,  nem  as  recolhidas  nem  os  seus 
Adónis  passaram  de  uma  vaga  accusação,  porque  lhes  não  con- 
vinha, por  interesse  próprio,  desfiar  este  caso. 

A'  maior  parte  dos  conventos  do  Porto  chegou  o  ecco  do 
escândalo  publico  em  que  António  Lobo  se  via  envolvido;  me- 
nos áquelles  em  que  a  disciplina  monástica  levantava  uma  bar- 
reira invencível  entre  a  clausura  e  o  mundo. 

No  convento  de  Santa  Clara,  a  abbadeça  recommendou  ás 
duas  freiras  visitadas  por  António  Lobo,  Clara  Ribeiro  e  Te- 
rencia,  que  dessem  de  mão  a  esse  desacreditado  visitante,  de 
quem  tão  ruidosamente  se  fallava  em  toda  a  cidade. 

Cada  uma  das  duas  freiras,  assim  avisadas,  teve  o  pensa- 
mento de  explorar  a  occasião  em  proveito  próprio.  E,  sem  dize- 
rem nada  uma  á  outra,  chamaram  immediatamente  António 
Lobo  para  uma  entrevista,  que,  segundo  informaram  a  abba- 
deça, tinha  por  fim  despedil-o  definitivamente. 

Lobo  estranhou  algum  tanto  a  pressa,  mas  foi. 

Clara  Ribeiro  disse-lhe,  chorando,  amal-o  tão  desvairada- 
mente, que  não  podia  conformar-se  com  a  ordem  da  abbadeça: 
estava  prompta  a  fugir  com  elle,  e  offerecia-lhe  o  dinheiro  de  que 
precisasse  para  effectuarem  a  fuga  o  mais  rapidamente  possível. 

Quando  isto  ouvia.  Lobo  ria-se  para  dentro,  sem  atinar 
ainda  com  o  plano  deClara  Ribeiro. 

Pediu  algumas  horas  para  responder,  simulando  complica- 
ções da  sua  vida  que  não  podiam  deixar  de  ser  ponderadas  e 
resolvidas  antes  de  sahir  do  Porto. 

E,  a  pensar,  sorrindo-se,  no  que  tudo  aquillo  quereria  di- 
zer, foi  d'ali  a  outra  grade  onde  a  madre  Terencia  estava  em 
«pose»  deante  do  pintor  Glama,  que  dias  antes  tinha  sido  cha- 
mado para  retratal-a. 


158  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Já  agora,  duas  palavras  apenas  sobre  este  artista,  que  tanto 
honrou  a  pintura  portugueza. 

JoSo  Glama  nasceu  em  Portugal  no  principio  do  século  xviíi, 
mas  provinha  de  familia  allema. 

Estudou  em  Roma,  e  depois  veiu  estabelecer-se  no  Porto, 
onde  pintou  muitos  quadros  para  as  egrejus  e  onde,  sobretudo, 
adquiriu  grande  clientella  e  fama  como  retratista. 

Sabe-se  que  esteve  em  Lisboa  ao  tempo  do  terremoto,  por 
uma  tela  que  deixou  sobre  esse  trágico  assumpto,  e  regressou 
ao  Porto  mais  laureado  ainda  pelo  bom  êxito  que  obteve  na  ca- 
pital. 

Terencia,  logo  que  viu  entrar  António  Lobo,  pediu  ao  pin- 
tor Glama  que  suspendesse  n'aquelle  dia  a  sessão,  porque  tinha 
que  transmittir  ao  recemchegado  uma  ordem  urgente  da  madre 
abbadeça. 

O  retratista  sahiu,  e  Terencia  disse  a  António  Lobo  o  mesmo 
que  lhe  tinha  dito  Clara  Ribeiro. 

Era,  também,  uma  proposta  de  fuga. 

—  Mas  o  que  será  isto?!  perguntava  António  Lobo  a  si 
próprio. 

Deu  resposta  idêntica  á  que  tinha  dado  pouco  antes,  e,  sa- 
hindo  do  convento  de  Santa  Clara,  correu  a  procurar  o  mor- 
gado da  Boa-Vista  para  lhe  contar  o  estranho  successo. 

O  morgado  ria-se  ouvindo,  e  commentou  dizendo  : 

—  Vossa  Mercê,  meu  caro  Lobo,  conhece  ainda  pouco  a 
astúcia  dos  conventos.  Ambas  essas  mulheres  querem  abando- 
nar a  clausura,  e,  como  Vossa  Mercê  está  em  descrédito,  pre- 
tendem iniputar-lhe  a  culpa  de  as  haver  descaminhado  do  trilho 
da  virtude  Uma  vez  cá  fora,  passavam-lhe  o  pê.  Vossa  Mercê 
ficava  sendo  a  victima  expiatória,  e  ellas  iam  viver  regalada- 
mente com  quem  quizessem  e  onde  quizessem.  Olhe  que  é  isto. 

—  Será?!  Tanto  não  attingia  eu,  por  falta  de  pratica  no 
género. 

—  Sabe  uma  coisa?  Se  eu  não  tivesse  de  ir  agora  a  Lisboa, 
visitar  os  primos  Lorenas,  quem  fugia  com  as  freiras  era  eu. 

—  Vossa  Senhoria?! 

—  Por  que  não?  Era  uma  aventura  em  duplicado,  que  me 
custaria  apenas  algum  dinheiro.  Meu  caro  Lobo !  quer  Vossa 
Mercê  vir  comigo  até  á  corte?  Oífereço-me  para  freira,  e  fuja 
comigo. 

—  A  Lisboa? 

—  Sim,  a  Lisboa,  que  sempre  ha  de  divertir  a  gente  um 
pouco  mais  do  que  o  Porto. 

—  Mas  ir. ..  como? 

—  Contando  com  a  minha  bolsa.  Clara  Ribeiro  e  Terencia 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  159 


nao  lhe  offereciam  dinheiro  para  a  fuga?  Também  eu  lh'o  offe- 
reco.  Deixa-se  seduzir? 

—  Já  estou  seduzido,  porque  estou  farto  do  Porto,  onde  toda 
a  matilha  dos  freiraticos  me  ladra  e  morde. 

—  Pois  então  está  resolvido.  Vamos  a  Lisboa. 

António  Lobo  sentou-se  á  banca  e  começou  a  escrever  so- 
netos fesceninos  ás  duas  freiras  de  Santa  Clara. 

Era  a  sua  resposta  ás  propostas  de  ambas. 

N'um  dos  sonetos  alludia  ao  retrato  de  Terencia  pintado 
por  Glama : 

Mandou  Terencia  chamar  Glama  um  dia 
Para  que  o  seu  retrato  lhe  fizesse, 
Porém  que  de  tal  sorte  a  descrevesse, 
Que  Vénus  desbancasse  em  bizarria. 

Antes  de  partir  do  Porto,  Lobo  enviou  uma  palavra  de  sau- 
dade a  Therezinha. 

Era  a  única  pessoa  cuja  doce  lembrança  lhe  podia  acalmar 
lodos  os  ódios  que  trazia  no  coração. 

Foram  duas  linhas  apenas  : 

«Therezinha,  vou  a  Lisboa  com  um  amigo,  mas  levo  a  sua 
imagem  presente  na  minha  alma.» 

Quando  este  bilhetinho  chegou  a  Villalva,  e  Therezinha  o 
ouviu  lêr,  disse  comsigo  mesma,  n'um  grande  e  angustioso 
desalento : 

—  Tão  longe!  Lisboa!  Quem  sabe  se  poderei  tornar  a 
vêl-o? 

Algum  tempo  depois,  o  Miguel  barqueiro  enfermava  grave- 
mente de  uma  febre  infecciosa. 

Therezinha  foi-lhe  desvelada  enfermeira,  com  uma  piedosa 
dedicação  que  só  podia  ser  excedida  por  a  de  alguma  exemplar 
irmã  de  caridade. 

Nas  crises  de  lucidez,  Miguel  perguntava-lhe  affectuoso : 

—  S,e  eu  não  morrer,  Therezinha,  casarás  comigo? 
Ella  respondia-lhe  serenamente : 

—  O  que  é  preciso  é  que  tu  melhores.  O  futuro  a  Deus  per- 
tence. 

E  muitas  vezes,  no  meio  de  fervorosas  orações  ao  Altíssi- 
mo, de  dia  ou  de  noite,  insistentemente,  lhe  passavam  no  pen- 
samento, a  confundirem-se  com  o  texto  das  orações,  aquelles 
dois  versos  de  António  Lobo,  que  para  sempre  tinham  ficado 
gravados  na  sua  alma  : 

Se  te  esqueci?  Esquecer-te  !  Jamais. 
Amo-te  e  fujo  ;  fujo  e  amo-te  mais. 

FIM    DA    PRIMEIRA    PARTE 


PARTE  II 

Delieíoâ  da  'selliiee 


11 


XIII 


|ia  vida  aipada  de  Iiisboa 


Facilmente  ganhou  António  Lobo  popularidade  na  capital. 

O  morgado  da  Boa-Vista,  primo  da  camareira-mór,  tinha 
boas  relações  na  corte,  com  a  melhor  nobreza  do  reino,  ligado 
a  ella  por  laços  de  mais  ou  menos  remoto  parentesco. 

A  senhora  D.  Anna  de  Lorena,  além  da  subida  considera- 
ção de  que  gosava  no  Paço  pelo  seu  alto  cargo  de  camareira- 
mór,  agraciada  com  o  titulo  de  duqueza  em  1753,  *  era  supe- 
riormente instruída,  pois  cultivava  a  musica,  o  desenho  e  as 
lettras  *  e  estava  aparentada  com  muitas  das  principaes  famí- 
lias, por  seu  pae,  marquez  de  Fontes  e  Abrantes,  por  seu  ma- 
rido e  tio,  D.  Rodrigo  de  Mello,  da  casa  de  Cadaval,  e  por  seus 
irmãos,  todos  elles  pessoas  da  maior  representação  e  respeita- 
bilidade. 

Na  pintura.  Vieira  Lusitano  igualou-a  a  Serrani  e  Rosalba, 
famosas  pintoras  italianas. 

Fique  já  dito  que  a  senhora  D.  Anna  de  Lorena  falleceu  no 
Lumiar  em  3  de  setembro  de  1761,  ^  deixando  uma  única  filha, 
mas  que,  depois  do  seu  fallecimento,  o  morgado  da  Boa-Vista 
continuou  a  manter  cordeaes  relações  de  parentesco  e  amizade 
com  Fontes,   Abrantes,    Cadavaes,    Penaguiões  e  Lencastres, 


^  «Gabinete  histórico,»  tom.  XII,  pag.  252. 

2  «Hist.  Gen.,»  tom.  X,  pag.  388  e  «Theat.  Heroino»,  tom.  II,  pag  494. 

3  «Gab.  Hist.,»  tom.  XV,  pag.  201. 


164  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


que  genericamente  costumava  designar  pela  expressão  familiar 
de — primos  Lorênas. 

E  genealogicamente  nSo  havia  incorrecção  n'este  dizer. 

O  morgado  levou  António  Lobo  aos  palácios  dos  seus  il- 
lustres  parentes,  no  que  seguiu  o  exemplo  de  outros  muitos  fi- 
dalgos que,  por  moda  e  distincção,  protegiam  versejadores. 

Pôde  assim  dar-se  ares  de  um  Mecenas  que,  vindo  á  corte, 
visitar  pessoas  altamente  collocadas,  se  fazia  acompanhar  do 
seu  poeta  mercenário. 

O  próprio  morgado  reconheceu  o  bom  effeito  d*esta  feliz  ca- 
sualidade, e  António  Lobo,  por  sua  parte,  reconheceu  que  Lis- 
boa era  a  única  terra  do  paiz  onde  valia  ainda  a  pena  ser  poeta 
para  viver  sem  trabalhar. 

Sob  este  ponto  de  vista,  a  província,  confrontada  com  a  ca- 
pital, era  uma  triste  miséria,  uma  reles  pelintraria. 

Em  casa  do  marquez  de  Niza  encontrou  António  Lobo  um 
collega,  que  logo  lhe  deu  a  medida  da  elasticidade  lucrativa  a 
que  podia  chegar  a  prenda  de  fazer  versos. 

Esse  poeta  era  João  Xavier  de  Mattos,  em  volta  do  qual  já 
se  havia  formado  uma  lenda  de  celebridade,  e  que,  sendo  filho 
de  um  criado  do  duque  de  Cadaval,  conseguira  obter  o  logar  de 
ouvidor  na  Vidigueira,  onde  apenas  ia  de  longe  a  longe,  por- 
que preferia  viver  alegremente  em  Lisboa,  e  aos  protegidos  dos 
grandes  fidalgos  tudo  se  consentia  e  tolerava. 

Na  primeira  noite  em  que  o  morgado  da  Boa-Vista  concor- 
reu com  o  seu  poeta  a  um  serão  de  musica  em  casa  do  mar- 
quez de  Niza,  a  certa  hora,  depois  de  gentis  damas  haverem 
entoado  graciosas  árias  e  minuetes,  ouviu-se,  ao  fundo  da  sala, 
bater  as  palmas:  e  logo  irrompeu  uma  saraivada  de  oitavas  e 
decimas  em  honra  dos  donos  da  casa,  dos  seus  convidados,  das 
suas  respectivas  famílias  e  brazões. 

António  Lobo  quiz  saber  quem  era  o  poeta  improvisador. 

—  Pois  ainda  não  ouviu  fallar!  E'  o  Mattos. 

—  Mattos? 

—  Sim,  João  Xavier  de  Mattos,  o  auctor  da  «Écloga  de  Al- 
bano e  Damiana,»  que  anda  no  pregão  dos  cegos,  e  toda  a  gente 
tem  lido. 

E,  depois  de  haver  soado  esta  como  estrondosa  salva  de 
versos,  uma  dama  disse  em  voz  alta  um  mote,  que  logo  o  Mat- 
tos glosou,  e  succederam-se  com  enthusiasmo  outros  motes  e 
outras  glosas,  vendo  António  Lobo  que  as  senhoras  se  presa- 
vam  de  ir  premiar  o  poeta  com  sequilhos,  fatias  de  pão  de  ló  e 
cálices  de  vinho. 

Não  obstante  a  atlitude  subalterna  do  Mattos,  que  se  con- 
servava ao  fundo  da  sala,  como  um  actor  chamado  a  divertir 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  165 


a  sociedade  sem  fazer  parte  d'ella,  este  ruidoso  triumpho  agra- 
dou a  António  Lobo,  recemchegado  de  terras  menos  cultas,  onde 
os  poetas  se  viam  perseguidos  em  vez  de  favoneados. 

Postas  em  scena  as  Musas,  era  natural  que  alguém  se 
lembrasse  ali  do  poeta  do  morgado  da  Boa  Vista. 

Foi  chamado  a  terreiro  António  Lobo,  que  estava  muito 
acanhado  deante  de  tâo  selecta  e  brilhante  sociedade,  nova 
para  elle,  e  deante  do  receio  de  lhe  falhar  a  improvisação  'em 
competência  com  o  Mattos. 

O  marquez  de  Niza,  para  fazer  honra  ao  morgado,  quiz 
dar  o  primeiro  mote  a  António  Lobo. 

Deteve-se  um  momento  a  procural-o,  mas  ouvindo  n'uma 
conversação  o  conde  da  Calheta  fallar  casualmente  de  um  certo 
casquilho  portuguez,  aproveitou  a  phrase  dizendo : 

—  Não  estou  hoje  em  veia  para  achar  motes.  Mas  dal-o-ha 
por  mim  o  conde  da  Calheta,  a  quem  agora  mesmo  ouvi  dizer 
—  «de  um  casquilho  portuguez.»  Todos  ouviram  ? 

A  assistência  sorriu  applaudindo  a  coincidência  e  sobre- 
tudo a  habilidade  com  que  o  marquez  de  Niza  tinha  apanhado 
no  ar  um  mote,  que  se  lhe  negava. 

António  Lobo  fez- se  muito  branco.  Um  leve  tremor  ner- 
voso crispava-lhe  os  dedos.  Passou  a  mao  direita  pela  testa, 
concentrou-se  um  momento  e  bateu  as  palmas. 

Toda  a  sala  ficou  silenciosa  e  attenta. 

António  Lobo  declamou  : 

Um  chapeo  bem  recortado, 
E  tope  maior  que  a  cara  ; 
No  seu  pescoço  uma  vara 
De  panno  bem  amassado; 
Espadim  atravessado ; 
O  vestido  todo  inglez  ; 
Quasi  descalços  os  pés  ; 
Com  mau  feitio  e  postura  : 
E'  esta  a  triste  figura 
D'um  casquilho  portuguez. 

Os  assistentes  acolheram  com  applausos  calorosos  este 
improviso  do  poeta  provinciano,  que  respirou  desopprimido  como 
se  acabasse  de  passar  o  Rubicon. 

O  morgado  da  Boa  Vista  ficou  contente  e  ufano. 

E  João  Xavier  de  Mattos,  certamente  nSo  sem  algum  custo, 
applaudiu  também. 

—  Abracem-se  os  poetas,  que  são  dignos  um  do  outro 
como  improvisadores,  disse  o  marquez  de  Niza. 

Lobo  avançou  para  Kavier  de  Mattos,  a  abraçal-o,  e,  como 
se  n'aquella  hora  tomasse  definitivamente  o  logar  que  lhe  es- 


166  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


tava  destinado  na   sociedade   portugueza,   passou   o  resto  da 
noite  ao  fundo  da  sala  e  ao  lado  do  Mattos. 

Está  bem  de  ver  que  ficava  de  pé,  também  desde  aquella 
hora,  a  natural  emulação  entre  ofificiaes  do  mesmo  ofificio,  se 
bem  que  os  dois  poetas  viessem  a  ser  sócios  e  companheiros 
na  vida  airada,  não  sem  algumas  intermittencias  de  turvação, 
aliás  ephemera. 

Graças  ao  morgado  da  Boa-Vista,  a  celebridade  de  Antó- 
nio Lobo  irradiou  das  salas  para  as  ruas,  onde  elle  se  popula- 
risou  na  companhia  de  Xavier  de  Mattos,  glosando  ambos  á 
porfia  nos  abbadeçados  dos  numerosos  conventos  de  Lisboa  e 
até  nos  arraiaes  nocturnos  com  que  se  festejavam  os  santos  de 
muitos  nichos  e  oratórios  em  algumas  ruas  e  prédios. 

Lisboa  ia  resurginrio  dns  ruinas  do  terremoto,  e  com  a 
reedificaçao  renascia  a  alegria  e  a  mundanidade  que  tanto  ca- 
racterisam  frivolamente  a  Índole  dos  lisboetas. 

O  rasto  de  terror,  que  essa  grande  calamidade  deixara, 
apagava-se  deante  da  rapidez  com  que  a  cidade  estava  sendo 
reconstruída  mais  bella  e  symetrica,  graças  á  prodigiosa  acti- 
vidade com  que  Sebastião  José  de  Carvalho  presidia  a  todos  os 
serviços  da  reconstrucçSo. 

O  embaixador  de  França  já  confessava  ter-se  enganado 
quando  dissera  para  a  sua  corte  que  nao  poderia  o  primeiro 
ministro  completar  a  obra  que  emprehendera. 

No  fim  do  anno  de  1756  estavam  reedificados  mais  de  mil 
prédios,  e  com  a  tranquilidade  e  confiança  do  espirito  publico 
reanimava-se  a  vida  popular  nas  ruas  e  a  vida  elegante  nas 
barracas  de  madeira  ou  lona,  para  onde  muitas  famílias  illus- 
tres,  incluindo  a  real,  tinham  ido  residir  provisoriamente. 

O  palácio  do  marquez  de  Niza  fora  um  dos  que  ruiram  no 
bairro  de  S.  Roque,  mas  continuaram  no  palácio  que  este  fi- 
dalgo tinha  em  Xabregas  os  alegres  serões  de  jogo  e  musica, 
como  aquelle  em  que  António  Lobo  conheceu  João  Xavier  de 
Mattos. 

Outras  famílias  transferiram  pelo  mesmo  motivo  a  sua  re- 
sidência para  os  palácios  de  recreio  que  possuíam  nos  arredores 
de  Lisboa. 

Muitos  conventos,  de  frades  e  de  freiras,  desabaram,  mas 
os  «outeiros»  realizavam-se  nos  improvisados  abarracamentos 
onde  as  communidades  se  abrigavam,  esperando  a  reedificaçao 
de  suas  antigas  clausuras. 

António  Lobo,  voltando  agora  a  Lisboa,  vinha  encontrar 
uma  cidade  nova,  desembaraçada,  segundo  o  plano  pombalino, 
das  antigas  e  sombrias  ruellas  em  que  faltava  o  ar  e  a  luz. 

E  ao  passo  que  a  cidade  lhe  apparecia  transmudada  mate- 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


167 


rialmente,  tombem  lhe  abria  novos  aspectos  sociaes  a  vida  da 
alta  roda  lisbonense,  que  o  primo  da  camareira-mór  lhe  pa- 
tenteara, e  que  elle  não  tinha  conhecido,  nem  sequer  suspei- 
tado, quando  esteve  na  capital,  a  primeira  vez,  acompanhado 
pela  tancareira  Min. 

Então   apenas  tomara   pé  na  estalagem  do  Reboto,  aonde 


Reedifioaoão  de  Lisboa 


unicamente  aflBuiam  as  classes  inferiores  e  alguns  jarrêtas  bur- 
guezes.  -^^ 

Agora  era  a  Lisboa  aristocrática,  a  Lisboa  dos  fidalgos  e 
dos  Mecenas,  a  Lisboa  da  bohemia  litteraria,  dos  poetas  para- 
sitas, das  casas  de  pasto  celebres  e  das  lojas  de  bebidas  mais 
celebradas,  era  toda  esta  cidade  imprevista  que  se  lhe  revelava 
como  deslumbrante  e  estonteadora  surpresa. 

As  horas  fugiam-lhe  rapidamente,  durante  o  dia,  que  elle 
gastava  ao  ííaino  pelos  bairros  da  cidade,  vendo  surgir  rapida- 
mente arruamentos  magestosos  e  reconstituir  palácios  notáveis. 

O  Terreiro  do  Paço  e  o  Chiado,  esses  dois  importantes  fo- 
cos da  antiga  vida  lisbonense,  transformavam-se  resaindo 
d'entre  escombros  pavorosos,  e  António  Lobo  pasmava  de  os 
vêr  ir  tomando  de  semana  para  semana  uma  physionomia  mo- 
derna, muito  differente  d'aquella  com  que  primeiro  os  co- 
nhecera. 

O  Terreiro,  onde  os  Paços  da  Ribeira  ficaram  arruinados 
pelo  terremoto  e  as  suas  'ruinas  enegrecidas  pelo  incêndio, 
devido  á  intenção  criminosa  de  um  forçado  das  galés,  o  Ter- 
reiro, cujo  arco  abatera  e  onde  o  theatro  e  a  patriarchal  de  D. 


168  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


João  V  desabaram,  enchendo  de  pedras  e  caliças  todo  o  vasto 
perímetro  que  vae  hoje  desde  a  rua  dos  Fanqueiros  até  ao 
largo  do  Pelourinho,  o  Terreiro,  que  António  Lobo  tinha  visto 
povoado  de  carruagens  brazonadas  e  de  cavalieiros  gentis,  es- 
quadriava-se  agora  n'um  prospecto  mais  regular,  se  não  mais 
amplo,  combinando  a  harmonia  das  suas  linhas  geraes  com  a 
uniformidade  dos  novos  arruamentos  da  «Baixa». 

O  Chiado,  essa  artéria  elegante,  muito  procurada  pelo  tran- 
sito que  se  agitava  entre  o  Bairro  do  Rocio  e  o  de  S.  Roque, 
ficara  tão  destroçado  pelo  terremoto,  tão  «campo  solitário», 
como  diz  o  padre  Theodoro  de  Almeida  na  aLisboa  destruída», 
que  nuvens  de  pardaes,  tomando  conta  do  sitio,  pareciam  que- 
rer resistir  ao  ruido  que  faziam  os  operários  reconstruindo  os 
prédios. 

O  leitor  sabe,  provavelmente,  que  o  terremoto  de  1755  deu 
origem  a  dois  poemas,  aquelle,  do  famoso  padre  Theodoro  de 
Almeida,  muito  interessante  em  pormenores  históricos,  e  a 
«Lisboa  reedificada»,  de  Miguel  Maurício  Ramalho,  semsabo- 
ria  assaz  mythologica  e  soporifera. 

Pois  figure-se,  passando  hoje  da  leitura  de  um  para  outro 
poema,  qual  seria  a  serie  de  impressões  que  António  Lobo  re- 
cebeu do  confronto  da  Lisboa  nova  com  a  Lisboa  antiga,  cal- 
culando o  leitor  essas  impressões  pelo  aspecto  das  ruínas  que 
o  padre  Theodoro  diz  parecer  terem  sido  feitas 

Por  canhões,  por  bombardas,  e  pelouros 

e  pelo  aspecto  da  cidade  renascente,  sob  os  auspícios  de  Júpi- 
ter e  Vénus,  segundo  Miguel  Ramalho  : 

Da  cidade,  que  tanto  Vénus  ama, 
Já  por  Jove  excellente  plano  feito, 
Sem  demora  de  Atlante  ao  netn  chama, 
Para  haver  cora  vigor  de  ter  efifeilo. 

Quanto  á  tendência  de  Jove  para  os  alfacinhas,  não  sei 
nada;  mas  creio  firmemente  que,  por  motivos  de  gratidão,  Vé- 
nus dispensasse  especiaes  favores  á  capital. 

Ainda  hoje  é  o  mesmo,  segundo  me  parece.  • .  mytholo- 
gicamente. 

A  vida  de  Lisboa,  jorrando  d'entre  ruínas,  sobre  as  quaes 
uma  cidade  nova  despontava  com  todo  o  seu  turbilhão  de  ne- 
gócios, de  enredos,  de  prazeres  e  ócios  mundanos,  empolgou 
capitosamente  António  Lobo. 

A  política,  eterna  Penélope,  tecia  e  destecia  os  principaes 
enredos;  ou  antes,  a  nobreza  urdia  e  Sebastião  de  Carvalho 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  169 


destramava,  com  férreo  pulso,  os  meandros  da  meada  em  que 
a  nobreza  queria  enleiar  a  acção  poderosa  do  primeiro  ministro. 

Depois  de  D.  João  II,  nao  se  tinha  ainda  visto  em  Portu- 
gal mais  agitada  e  tormentosa  época  pelo  que  respeitava  á  po- 
litica interna  do  paiz. 

Os  jesuitas  estavam  ameaçados  e  a  nobreza  esmagada,  por 
que  Sebastião  de  Carvalho,  aproveitando  o  ensejo  de  uma  cons- 
piração nocturna  contra  a  vida  d'el-rei,  fizera  justiçar  no  cães 
de  Belém  alguns  representantes  das  principaes  famílias  do  reino, 
o  duque  de  Aveiro,  o  marquez  e  a  marqueza  de  Távora,  e  o 
conde  da  Athouguia. 

Os  jesuitas,  apesar  da  má  vontade  que  lhes  tinha  Sebastião 
de  Carvalho,  puderam  escapar  das  estreitas  malhas  do  processo 
da  conspiração,  mas  na  sentença  do  tribunal  da  inconfidência 
ficaram  consignadas  algumas  plirases  que  serviriam  de  apoio 
ao  primeiro  ministro  para  expulsar  de  Portugal  a  Companhia 
de  Jesus. 

Era  uma  questão  de  adiamento,  apenas. 

Mas  foram  desde  logo  encarcerados  alguns  jesuitas,  que 
nunca  mais  sahiram  do  forte  da  Junqueira.  Outros,  os  que  sa- 
hiram,  foram  relaxados  á  Inquisição,  que  os  condemnou  a  gar- 
rote e  fogueira. 

Na  politica  interna,  Sebastião  de  Carvalho,  agora  premiado 
por  el-rei  D.  José  com  o  titulo  de  conde  de  Oeiras  e  auxiliado 
no  poder  pela  coadjuvação  de  seus  irmãos,  como  secretários  de 
Estado,  defrontava- se  gigantescamente  com  a  influencia  das 
classes  preponderantes,  conseguindo  contei -as  sob  a  mão  her- 
cúlea de  ministro  valido. 

António  Lobo  nada  linha  com  os  negócios  públicos,  mas 
elle,  como  todos  os  seus  collegas  em  Apollo,  apaniguados  das 
familias  nobres,  a  cuja  sombra  viviam,  tomava  o  partido  da  no- 
breza. 

Isto  explica  a  alluvião  de  satyras  em  verso  com  que  fora 
alvejado  Sebastião  de  Carvalho  durante  todo  o  periodoMa  sua 
preponderância  e  ainda  depois. 

Ao  passo  que  os  fidalgos  faziam  espalhar  anecdotas  e  gra- 
ciosidades deshonrosas  para  o  conde  de  Oeiras,  os  poetas  que 
viviam  do  favor  d'elles  secundavam-n'os  compondo  diatribes 
metrificadas,  que  mais  ou  menos  secretamente  passavam  de 
mão  em  mão,  contra  o  primeiro  ministro. 

Bastará  citar  uma  d'aquellas  phrases  envenenadas  pela  hos- 
tilidade rancorosa  dos  fidalgos. 

A  casa  de  Sebastião  de  Carvalho  fora  poupada  pelo  terre- 
moto, El-rei  D.  José  quiz  vêr  n'esse  facto  um  desígnio  da  Pro- 
videncia. 


170  o    LOBO   DA    MA  DRAGO  A 


O  conde  de  Óbidos  tivera  a  affouteza  de  observar  a  el-rei : 

—  Certo  é,  senhor,  naas  semelhante  protecção  acharam  tam- 
bém em  Deus  as  moradoras  da  rua  Suja. 

Eram,  pois,  os  fidalgos  que  davam  o  alamiré  aos  seus  poe- 
tas, açulando-os  contra  o  conde  de  Oeiras. 

Teremos  occasião  de  vêr  quanto  António  Lobo  odiava,  por 
conta  alheia,  Sebastião  de  Carvalho. 

O  que  é  certo  é  que,  graças  ao  morgado  da  Boa-Vista,  que 
nial  se  podia  despegar  de  Lisboa,  António  Lobo  estava  rela- 
cionado com  as  melhores  famílias  da  nobreza,  d'onde  sempre 
ia  colhendo  proveito;  e  que  tinha  adquirido  celebridade  como 
poeta  commentador  dos  acontecimentos  occorrentes. 

Quando  em  1761  o  conde  de  Oeiras  supprimiu  o  Tribunal 
das  Contas,  substituindo-o  pelo  Erário  Régio,  nomeou  alguns 
mancebos  para  desempenharem  as  funcções  dos  antigos  empre- 
gados, que  aposentou  com  o  ordenado  por  inteiro. 

Dizia  Seí)astião  de  Carvalho  que,  se  conservasse  em  exer- 
cício um  só  d'estes  empregados,  nSo  seria  preciso  mais  para 
que  todos  os  vicios  e  desleixes  do  Tribunal  supprimido  se  com- 
municassem  á  nova  repartição  do  Erário. 

Assim,  pois,  aos  jarretas-pé  de  boi  que  foram  despedidos, 
succedeu  uma  chusma  de  rapazes,  sangue  novo,  que  estadea- 
yam  sua  boa  sorte  em  requintes  de  aperalvilhado  trajo  por  egre- 
jas,  theatros  e  funcçanatas. 

Logo  a  opinião  publica  os  alcunhou  de  «eraristas,»  como 
querendo  designar  uma  nova  classe  de  casquilhos  e  franchi- 
notes. 

António  Lobo,  fazendo  a  politica  dos  fidalgos,  acudiu  de 
prompto  com  um  soneto  ridicularisar  a  nova  providencia  do 
conde  de  Oeiras : 

Vocês  não  me  dirão  (valha  a  verdade) 
Que  gente  é  esta,  ha  pouco  apparecida, 
Toda  authentica,  toda  presumida, 
Que  aão  os  pais  e  avós  da  gravidade  ? 

A  casaca  maior  que  a  eternidade, 
Com  forro  de  setim,  feição  comprida, 
Onde  o  seu  canhão  mór  leva  embebida 
Larga  veste,  calção  bera  à  vontade  ? 

O  chapéu,  que  fez  paz  co'a  cabelleira, 
E  em  tudo  segue  o  metliodo  contrario 
D'esta  nossa  armação  da  frigideira? 

Mas  tá,  tá,  que  pergunto?  Eu  estou  vario  ; 

Já  entendo,  isto  é  cousa  que  me  cheira 

A  mestre  era  dança,  ou  aprendiz  do  Erário  ! 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  171 


Os  factos  da  politica  internacional,  pondo  em  jogo  a  acção 
do  conde  do  Oeiras,  também  nao  passavam  despercebidos  aos 
poetas  queridos  dos  fidalgos. 

Entre  esses  factos,  os  que  até  então  podiam  ter  maior  im- 
portância, eram  a  expulsão  do  núncio  apostólico  e  as  hostilida- 
des entre  Portugal,  Hespanha  e  França,  por  causa  da  famosa 
questão  do  «Pacto  de  familia,»  em  que  Portugal  seguira  o  par- 
tido da  Inglaterra,  cujo  predomínio  marítimo  aquellas  duas  ul- 
timas nações  pretendiam  abater. 

O  nosso  paiz  foi  invadido  por  tropas  hespanholas  e  france- 
zas,  e  o  nosso  exercito,  prodigiosamente  organisado  pelo  conde 
de  Lippe,  marchou  para  as  províncias  do  norte. 

António  Lobo  nSo  deixou  emmudecer  perante  este  aconte- 
cimento a  sua  veia  cómica;  sublinhou-o  com  um  soneto  em  que 
ao  mesmo  tempo  envolve  o  Porto  e  Lisboa: 

Ide,  novos  heroes,  ide,  e  Mavorte 
Vos  reja  o  coração,  vos  guie  o  passo, 
Porque  seja  outra  vez  pequeno  espaço 
O  mundo  inteiro  ao  vosso  alento  forte. 

Ide  com  fausto  auspicio,  e  queira  a  sorte 
Dos  inimigos  no  destino  escasso 
Converter  era  Irophéos  cada  ameaço, 
Reduzir  a  triumphos  cada  corte. 

Ide  em  fim  ;  mas  se  acaso  o  medo  abala 
Algum  pobre  cadete,  que  se  encova 
Ao  zunir  d'uma  bomba  ou  d'uma  bala, 

Desatai-lhe  os  calções,  dai-lhe  uma  sova, 
E  que  vá  para  o  Porto  fazer  sala 
Ao  grande  Cabo  mór  de  Villa  Nova. 

Desde  a  sua  chegada  á  corte  até  ao  fim  do  anno  de  1769, 
António  Lobo  firmou  créditos  de  poeta  popular,  que  tocava  os 
extremos  da  mordacidade,  assoprado  pelo  applauso  de  amigos 
e  admiradores,  nem  sempre  sincero;  ás  vezes  suggerido  pelo  re- 
ceio de  represálias  e  intencionado,  quanto  aos  fidalgos,  pelo  in- 
teresse politico  e  pelo  gosto  da  louvaminha  que  os  desvanecia. 

O  collaborador  da  «Revista  universal  lisbonense»  pinta-nos 
com  exactidão  António  Lobo  quando  descreve  n'estes  termos  a 
sua  vida  em  Lisboa  : 

«Frequentando  como  parasita  as  casas  dos  grandes,  que  o 
recebiam  e  festejavam  uns  em  attenção  ao  seu  talento,  outros 
por  medo  da  sua  mordacidade;  quando  tinha  dinheiro  gastan- 
do-o  prodigamente  nas  lojas  dos  pasteleiros  com  os  seus  ami- 
gos, e  perdendo-o  nas  casas  de  jogo;  não  respeitando  ninguém 
nos  seus  sonetos  satyricos,  era  António  Lobo  uma  espécie  de 


172  o    LOBO   DA    MADRAGÔA 


Paschino  ambulante;  festejado  por  todos  os  faceiras  do  tempo, 
corria  com  elles  os  cafés,  as  grades  de  freiras,  as  jornadas  e 
funcções  de  cirios,  e  de  fora  da  terra,  divertindo  a  todos  com 
os  seus  ditos  chocarreiros,  bem  que  fosse  de  seu  natural  um 
homem  melancólico  e  casmurro.» 

O  biographo  não  attingiu  todo  o  alcance  d'esta  sua  ultima 
phrase,  nem  procurou  justifical-a,  pois  que  apenas  estava  es- 
crevendo um  ligeiro  artigo. 

António  Lobo  não  era,  de  seu  natural,  habitualmente  me- 
lancólico e,  menos  ainda,  casmurro. 

Bem  sabemos  que  tinha  génio  folgasão  e  facilmente  com- 
municativo. 

Mas  havia  na  sua  irrequieta  vida  de  Lisboa  algumas  horas 
de  cerrada  melancolia  e  intratável  azedume  :  eram  aquellas 
em  que  a  lembrança  do  «paraizo  perdido»  da  Palmeira  lhe  acu- 
dia ao  espirito,  e  a  imagem  honesta  de  Therezinha  o  tantalisava 
n'um  eterno  martyrio  de  amor  e  saudade. 

—  Eu  sou,  dizia  elle  a  si  mesmo,  uma  creatura  condem- 
nada  á  desgraça,  porque  nasci  fora  da  acçSo  normal  da  exis- 
tência, que  leva  o  homem  a  querer  constituir  familia  para  crear 
raizes  n'um  lar  e  n'uma  terra.  Nâo  trabalho,  nSo  sou  social- 
mente um  disciplinado,  nem  um  utii.  Por  isso  não  posso  ter  a 
minha  casa,  a  minha  familia,  como  toda  a  gente.  E'-me  defeso 
o  casamento,  e  comtudo  encontrei  no  mundo,  para  castigo  de 
mim  próprio,  uma  encantadora  mulher,  que  poderia  fazer  de 
mim  o  mais  ditoso  aldeão,  se  eu  lograsse  caber  n'uma  aldêa,  e 
que  seria  a  mais  infeliz  das  creaturas  se  viesse  perverter-se 
n'uma  cidade. 

A  idéa  d'este  supplicio  fatal,  imposto  pelo  destino,  revolta- 
va-o,  sempre  que  lhe  assaltava  o  espirito. 

E  então,  para  aturdir-se,  procurava  a  embriaguez  de  uma 
vida  frivola  e  licenciosa,  em  que  dissipava  os  dias  e  as  noites, 
sorrindo  elle  próprio,  provocando  a  hilaridade  dos  outros,  e 
tendo  algumas  vezes  vontade  de  chorar. 

Dizia-se  geralmente,  quando  o  viam  exceder-se  em  morda- 
cidade, que  a  «gloria  lhe  subia  á  cabeça»  ;  não  era  isso.  N'es- 
sas  occasiões,  tão  vulgares  na  sua  vida,  sentia  Therezinha  den- 
tro do  coração  opprimido. 

E,  louco  de  dôr,  revoltado  de  desespero,  feria  os  outros, 
embora  fossem  amigos  seus,  para  ter  companheiros  na  des- 
graça. 

O  leitor  conhece  certamente  um  latim  que  diz:  «solatium 
est  miseris  sócios  habere  penates.»  Ter  companheiros  na  des- 
graça consola  os  desgraçados. 

t7  a  caracteristica  vulgar  do  egoismo  humano. 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  173 


A  expressão  «Paschino  ambulante,»  empregada  pelo  colla- 
borador  da  «Revista  Universal,»  pertence  originariamente  a  um 
advogado  de  Lisboa,  o  dr.  Francisco  Martins  de  Sampaio,  que 
ripostou  ás  arremetidas  de  Lobo  com.  armas  iguaes :  o  soneto. 

Ahi  vai  uma  das  vivacissimas  réplicas  do  advogado : 

Lobo  infernal,  gallego  petulante, 
Da  vil  canalha  poeta  laureado, 
O  segundo  Valverde  encabeçado, 
Ou  alma  d'este  cemitério  errante  ; 

Papa-janlares,  caloteiro  andante, 
«Pasquim  vivente»,  cynico  malvado, 
Que  o  áureo  Pindo  tens  emporcalhado, 
E  ao  Parnaso  roubado  o  seu  brilhante  ; 

Gato  pingado  d'esse  enterramento, 

Adello  de  sonetos  era  Lisboa, 

Vil  calouro  com  patas  de  jumento ; 

Pega  na  tumba,  satyras  entoa 
Aos  juizes  de  vil  merecimento 
Supultados  nos  autos  do  Alagôa. 

Por  que  arremetteria  António  Lobo  contra  o  advogado  Sam- 
paio? 

Bem  poderia  ser  sem  motivo  algum,  como  ás  vezes  acon- 
tecia, nSo  escolhendo  o  poeta  as  pessoas,  nem  ponderando  as 
conveniências. 

Mas  d'esta  vez  não  foi  assim. 

O  morgado  do  Sobral  (Anselmo  José  da  Cruz  Sobral),  de 
cuja  algibeira  António  Lobo  comia  sempre  que  precisava,  plei- 
teava uma  demanda  importante  com  o  morgado  da  Alagôa. 

Sampaio,  advogado  d'este  ultimo,  tinha  dito  que,  se  não 
vencesse  a  causa  em  favor  do  seu  constituinte,  havia  de  quei- 
mar a  livraria. 

Venceu  Sobral,  e  António  Lobo  quiz  fazer  engulir  com  um 
soneto  a  phrase  ao  advogado,  lisonjeando  assim  o  vencedor,  a 
quem  n'outro  soneto  chama  seu  «grande  Anselmo.» 

A  expressão  «gallego  petulante»,  empregada  pelo  dr.  Sam- 
paio, explica-se  pelo  facto  de  António  Lobo  ser  natural  de  Gui- 
marães. 

Os  alfacinhas  chamam  gallegos  aos  minhotos,  n'um  sentido 
pejorativo. 

Quando  António  Lobo  se  enfurecia  contra  alguém,  nem  o 
seu  próprio  interesse  o  continha. 

Elie,  que  tanto  precisava  como  ocioso  do  favor  dos  nobres, 
não  se  arreceiou  de  investir  contra  um  dos  mais  poderosos,  e 


174  o   LOBO    DA   MADRAGÔA. 


parente  do  morgado  da  Boa- Vista,  só  porque  lhe  fizera  um  offe- 
recimento  que  reputou  affrontoso. 

Passou-se  o  caso  com  o  duque  de  Cadaval,  D.  Miguel,  que 
tendo  ouvido  recitar  versos  de  Lobo,  e  achando-lhes  graça, 
quiz  alistar  na  sua  comitiva  mais  uma  pessoa,  que  nas  horas 
de  aborrecimento  o  distraisse. 

Mandou  por  um  escudeiro  offerecer  um  quarto  no  seu  pa- 
lácio ao  jovial  poeta. 

Lobo  previu  que  o  duque  pretendia  alliciar  um  truão.  Re- 
voltou-se.  Demorou  o  criado,  sentou-se  á  banca,  e  escreveu 
este  audacioso  soneto : 

Se  eu  fora,  excelso  Duque,  homem  perito, 

Capinha,  ferrador,  cabelleireiro, 

De  cães  decurião,  ou  cosinheiro, 

Em  sopas  mestre,  em  massas  erudito; 

Se  em  lettra  antiga  lesse  o  que  anda  escripto 
De  vosso  grande  avô  João  Primeiro, 
Que  á  gothica  mostrasse  ao  meu  caseiro 
Que  o  tombo  velho  nunca  está  prescripto; 

N'e8te  caso,  senhor,  a  vossa  graça 

Mais  quizera  alcançar,  que  ter  mil  burras 

Do  metal  louro,  que  se  ri  da  traça  : 

Mas  como  a  sorte  me  tem  dedo  surras, 
Não  vou  servir-vos,  só  por  não  ter  praça 
No  livro  mestre  dos  santões  caturras. 

Depois  dobrou  o  papel,  e  disse  ao  escudeiro  que  o  entre- 
gasse ao  duque  seu  amo. 

Era  a  resposta  ao  convite. 

E,  comtudo,  António  Lobo  habitava  quartos,  cuja  renda 
não  podia  pagar,  vendo-se  na  necessidade  de  pregar  calote  ou 
de  pedinchar  indulgência  aos  senhorios,  alguns  dos  quaes  eram 
também  pessoas  nobres. 

O  duque  de  Cadaval  julgou-se  offendido,  por  sua  vez.  E 
António  Lobo  pagou  bem  cara  a  ousadia,  porque  soffreu  prisão 
correccional,  durante  vinte  e  oito  dias,  na  cadêa  do  Limoeiro. 

Desde  que  Lobo  encontrara  Xavier  de  Mattos  no  palácio 
do  marquez  de  Niza,  fizera-se  seu  amigo,  sem  embargo  da  emu- 
lação litteraria,  do  ciúme  de  celebridade,  sempre  latente  entre 
os  dois  poetas. 

Muitas  vezes  moravam  juntos,  e  até,  á  mingua  de  melhor, 
dormiam  no  mesmo  leito;  juntos  frequentavam  as  casas  de 
pasto  do  Isidro,  do  Almeida  e  do  Talaveira,  bem  como  o  arma- 
zém de  vinhos  dos  Bragas,  ao  Rocio. 


o   LOBO  DA   MADRAGÔA  175 


Pois,  não  obstante  estas  constantes  ligações  de  amizade, 
Lobo  não  poupava  Xavier  de  Mattos,  satyrisando-o  pelo  seu 
excessivo  lyrismo  e  sensibilissima  compleição  amorosa. 

Vá  já  uma  eloquente  amostra  : 

Assim  que  vês  deixada  da  costura 
De  traz  da  adufa  a  timida  donzella, 
Como  um  raio,  João,  com  os  olhos  n'ella 
Lhe  encampas  reverente  uma  mesura. 

Safa-se  a  moça  ;  e  o  pai,  que  por  ventura 
Vem  chamar  o  aguadeiro  da  janella, 
Repara  então  que  a  filha  se  acautella 
D'essa  tua  scismatica  ternura. 

Por  amante  basbaque  a  bom  capricho 

Te  aponta  logo  o  ginja  furibundo, 

Se  ó  que  prompta  não  tem  a  pá  do  licho. 

O  final  do  soneto  é  cortante  de  ironia,  pois  que  aconselha 
João  Xavier  de  Mattos  a  casar-se,  dizendo-lhe  que  mais  valia 
soífrer  as  infidelidades  conjugaes,  embora  permanentes, 

Do  que  andar  quebra-esquinas  vagabundo. 

Aqui  temos,  pois,  claramente  justificada  a  expressão  «Pas- 
quim vivente»  com  que  o  advogado  Sampaio  classificou  Antó- 
nio Lobo,  e  também  a  de  «Diógenes  poético,»  com  que  o  coor- 
denador dos  seus  sonetos  o  cognominou. 

Lobo  precedeu  Tolentino,  ainda  aliás  seu  contemporâneo, 
na  exhibição  do  typo  de  poeta  pedinchão  e  parasita ;  e  precedeu 
chronologicamente  Bocage  no  typo  de  poeta  bohemio,  errante, 
e  mordaz. 

Foi  no  valor  litterario  inferior  a  ambos  elles,  mas,  fundindo 
n'um  só  aquelles  dois  modelos,  encarnou  em  si  a  physionomia 
do  poeta  mercenário  e  desvairado  do  século  xviii,  em  Portugal. 

Não  teve  os  arroubos  lyricos  de  Bocage,  mas  conheceu 
como  elle  o  amor  puro,  raio  de  sol  nas  trevas  de  tresloucados 
e  frequentes  desmandos. 

Não  cantou  mulher  nenhuma,  porque  amou  uma  só,  e  o 
amor  que  a  Therezinha  de  Villalva  lhe  inspirou  foi  tão  casto, 
que  elle  não  o  pôde  divulgar  pela  mesma  lyra  onde  aconsoan- 
tava  sonetos  malévolos  ou  libertinamente  desgrenhados. 

Cortejou  fidalgos,  para  comer  d'elles :  era  o  interesse  ser- 
vil que  o  inspirava,  como  aos  outros  poetas  do  seu  tempo. 

Lobo  não  fez  parte  da  Arcádia,  mas  até  os  árcades  que  re- 
presentavam maior  cotação  litteraria  ou  social,  não  deixaram 


176  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


de  ter  seu  Mecenas  a  quem  interesseiramente  louvaminha- 
vam. 

O  padre  Domingos  Caldas  Barbosa,  brazileiro  mulato,  que 
chegou  a  Lisboa  ahi  por  1762  e  que  tão  perseguido  foi,  depois, 
por  Bocage  e  José  Agostinho  de  Macedo,  mal  poz  o  pé  em  terra 
tratou  de  obter  o  favor  de  um  fidalgo :  o  seu  Mecenas  foi  o 
conde  de  Pombeiro. 

Está  «lançado»  na  bohemia  do  seu  tempo  o  poeta  António 
Lobo,  e  desenhada  a  feição  com  que  n'ella  conseguiu  salien- 
ta r-se  a  breve  trecho. 

Vamos  assistir,  no  capitulo  seguinte,  ao  desenrolar  de  um 
acontecimento  mundano,  que  lhe  deu  ainda  maior  evidencia  e 
renome. 

Razão  teve  o  estalajadeiro  Reboto  para  exclamar,  ufano, 
quando  uma  noite  viu  entrar  pela  porta  dentro  António  Lobo 
de  Carvalho,  acompanhado  de  João  Xavier  de  Mattos: 

—  Ah  !  voltou !  Fez  muito  bem.  Eu  não  lhe  dizia  que  Lis- 
boa é  o  abeijinho  de  Portugal»  e  que  Vossa  Mercê  podia  fazer 
carreira  aqui?  Diga-me :  a  respeito  de  estrangeiras...  nunca 
mais? 

António  Lobo  estremeceu. 

—  Nunca,  disse  elle  contrapondo  a  essa  pergunta  a  lem- 
brança de  Therezinha.  Detesto-as. 

—  Ainda  bem!  Eu  cá  ainda  estou  na  minha.  A  prata  da 
casa  sabe  a  gente  quanto  vale;  a  outra. . . 

Entrou  um  freguez  que  reconheceu  António  Lobo,  e  disse 
ao  estalajadeiro,  em  voz  baixa : 

—  Bravo!  seu  Reboto.  Você  tem  cá  hoje  o  celebre  poeta 
Lobo ! 

Com  surpreza.  Reboto  contestou  de  rijo : 

—  Este  sr.  já  foi  meu  hospede,  sabia-o  poeta,  e  tenho,  com 
eífeito,  ouvido  fallar  muito  de  um  repentista  chamado  Lobo, 
mas  nunca  pensei  que  se  tratasse  da  mesma  pessoa. 

—  Então  quem?  perguntou  o  freguez. 

—  Suppunha  que  era  o  pintor,  que  tem  o  mesmo  appel- 
lido. 

António  Lobo  de  Carvalho  exclamou  raivoso : 

—  O  que?!  Não  me  confunda  com  esse  reles  pintamonos, 
que  é  mau  pintor  e  ainda  peior  versisía. 

João  Xavier  de  Mattos  sorria,  porque  já  tinha  ouvido  a 
mais  alguém  o  mesmo  equivoco. 

Houve,  eíTectivamente,  um  pintor,  contemporâneo  do  poeta, 
com  igual  appellido.  Foi  artista  medíocre  e  versejador  insigni- 
ficante. António  Lobo  tinha  razão  para  protestar;  sem  embar- 
go, a  confusão,  occasionada  pela  coincidência  dos  appellidos, 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  177 


fez  que  Wolkmar  Machado,  na  Collecção  de  memorias,  attri- 
buisse  ao  pintor  versos  que  sSo  do  nosso  poeta  e  teem  bem  as- 
signalado  o  seu  cunho  litterario.  * 

—  Com  que  então,  tornou  Reboto,  é  o  meu  antigo  hospede 
o  Lobo  de  quem  tanto  se  faila  ! 

—  E  também  nSo  conhece  o  que  vem  com  elle?  perguntou 
o  freguez. 

—  João  Xavier  de  Mattos?  Esse  já  eu  sabia  quem  era. 

E  o  estalajadeiro  correndo,  ainda  muito  vigoroso,  para  An- 
tónio Lopo,  apostrophou : 

—  Dizem  que  ninguém  é  propheta  na  sua  terra,  mas  eu  fui. 
Com  que  então  já  poeta  afamado  I  e  de  mais  a  mais  sem  querer 
saber  de  aventureiras  de  contrabando!  Está  completo I  está 
completo ! 


*  Machado  era  mais  novo  18  annos  que  António  Lobo,  cora  quem  por 
esta  razão  não  conviveu  decerto,  e  faltava-lhe  senso  critico  para  destrinças 
litterarias. 

12 


XIV 


chegada  da  Zampepini 


Em  1770  deu-se  em  Lisboa  um  acontecimento  que,  posto 
fosse  na  apparencia  vulgar  e  insignificante,  maiormente  em 
época  de  tao  graves  occorrencias  politicas,  teve  comtudo  per- 
turbadora influencia  nos  costumes,  na  bolsa  dos  argentarios, 
na  paz  das  famílias,  no  socego  das  mulheres,  e  na  camaradagem 
dos  poetas. 

Foi  a  chegada  de  uma  companhia  de  cómicos  italianos,  á 
testa  da  qual  estava  a  oprima-donna»  Anna  Zamperini,  natural 
de  Veneza. 

Parece  incrível,  mas  é  verdade. 

Quem  contratou  esta  companhia  foi  o  notário  apostólico  da 
nunciatura,  banqueiro  em  negócios  da  cúria  romana,  de  appel- 
lido  GaUi. 

Este  pormenor  ainda  mais  deve  admirar  o  leitor,  mas  tam- 
bém é  verdadeiro. 

Parece  que  tendo  sido  violentamente  interrompidas  as  nos- 
sas relações  com  a  corte  de  Roma  em  junho  de  1760,  o  sr.  Galli 
aproveitou  em  outros  negócios  o  largo  periodo  de  dez  annos 
que  decorre  entre  aquella  data  e  agosto  de  1770,  que  foi  quando 
novamente  se  abriu  communicação  diplomática  com  a  Santa  Sé. 

Entre  os  «outros  negócios»  que  entretiveram  o  imaginação 
e  a  cobiça  do  notário  Galli,  sorriu-lhe  a  idéa  de  uma  empresa 
theatral,  que  se  prefigurava  tanto  mais  lucrativa,  quanto  era 
certo  que  já  se  não  ouviam  cantarinas  italianas  em  Lisboa  desde 
alguns  tempos. 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


179 


A  companhia  Zamperini  veiu  trabalhar  no  theatro  da  rua 
dos  Condes. 

Este  theatro  ou  pateo,  como  ainda  no  principio  do  século  xviii 
se  dizia,  era  antigo  e  n'elle  tinham  sido  dadas  funcções  de  co- 
media italiana,  de  operetta  e  «ballets»,  e  até  de  «marionnettes»  ou 
bonifrates. 

O  terremoto  de  1755  pregou  com  elle  em  terra,  mas  o  edi- 
fício foi  reconstruído,  segundo  o  plano  do  architecto  Petronio 
Mazoni,  no  sitio  em  que  estivera  a  cadêa  do  Tronco. 

O  novo  theatro  era  de  apertadas  dimensões.  Lord  Beckford, 


O  segundo  theatro  da  Bna  dos  Condes 


nas  suas  «Cartas,»  falia  d'elle  com  desdém,  dizendo-o  baixo  e 
estreito.  Tinha  razão.  Eu  também  ainda  o  vi,  o  que  decerto 
aconteceu  a  muitos  dos  leitores,  pois  que  o  theatro  da  rua  dos 
Condes,  tal  como  foi  reconstruído,  subsistiu  até  1882. 

Foi  então  demolido,  e  substituído  pelo  actual  theatro  do 
mesmo  nome. 

Mas  vamos  a  dizer  o  que  era  o  theatro  que  Mazoni  planeou 
e  onde  a  companhia  da  Zamperini  se  fez  ouvir  do  publico. 

Tinha  o  aspecto  de  um  barracão  com  uma  só  porta  na  fa- 
chada principal,  e  duas  janellinhas  esguias  no  alto,  junto  aos 
cunhaes  do  prédio.  Entre  as  duas  janellas  corria  o  dístico  : 
«Theatro  da  Rua  dos  Condes.»  Torneando  para  a  rua  d'este 
nome,  seguia  outro  corpo  do  edifício,  com  portas  e  janellas  aca- 
nhadas, de  mau  aspecto. 

Interiormente,  além  das  varandas,  havia  trez  ordens  de  ca- 
marotes, incluindo  as  frisas,  que  então  se  chamavam  «forçu- 
ras.»  Eram  nove  camarotes  de  cada  lado,  e  cinco  ao  fundo.  Não 


180  o    LOBO    DA   MADRAGÔA 


se  dizia  ordens,  mas  «andares;»  as  frisas  constituiam  o  pri- 
meiro andar. 

Preços  dos  camarotes  :  os  mais  caros,  3$200  réis ;  os  mais 
baratos,  1$600  réis. 

Cada  logar  na  platéa  superior  pagava-se  por  480,  e,  na  in- 
ferior, por  400  réis. 

Cada  logar  nas  varandas  custava  200  réis. 

Os  camarotes  eram  resguardados  com  rótulas  de  madeira, 
de  traz  das  quaes  muitas  pessoas  podiam  observar  o  espectá- 
culo sem  serem  vistas.  Foi  assim  que  D.  João  V  concorrera 
ás  recitas  da  cantora  romana  Petronilha  Trabó. 

Também  era  assim  que  os  frades  gosavam  as  funcções 
theatraes;  havia  um  camarote  especial  para  elles,  sotoposto  aos 
que  as  senhoras  da  alta  roda,  «dames  de  la  première  qualité,» 
diz  o  cavalheiro  de  Oliveira,  costumavam  honrar  com  a  sua 
presença.  Chama va-se  «o  camarote  dos  frades.»  Eu  suspeito 
que  seria  uma  «forçura»  ou  frisa. 

O  leitor  está  decerto  sorrindo  ao  lembrar-se  do  que  pode- 
riam ser  as  facécias  dos  frades,  a  coberto  das  rótulas,  e  den- 
tro d'aquella  alegre  jaula  onde  os  profanos  os  não  podiam 
ouvir. 

O  theatro  da  Rua  dos  Condes,  menos  espaçoso  que  o  do 
Bairro  Alto,  tinha,  comtudo,  maior  ornamentação. 

Os  trabalhos  de  scenographia  estavam  confiados  aos  pinto- 
res Gaspar  Raposo,  que  por  ser  aleijado  das  pernas  andava 
n'um  carrinho,  e  Manuel  da  Costa. 

Foi  decerto  um  d'estes  pintores  que  desenhou  sobre  a  bocca 
do  proscénio  a  inscripção  t Nobre  ócio,»  que  António  Lobo  ri- 
dicularisou  n'um  soneto. 

De  modo  que,  segundo  esta  legenda,  os  frades  que  a  co- 
berto das  rótulas  iam  applaudir  a  Zamperini,  gastavam  tão 
«nobremente»  o  seu  tempo,  como  Cicero  quando  durante  a  di- 
ctadura  de  César  preenchia  seus  ócios  escrevendo  as  «Tuscu- 
lanas,»  trabalho  que  elle  próprio  qualificava  «otium  cum  digni- 
tate.» 

Os  frades  também  se  divertiam  «nobremente»  tusculando 
com  os  olhos  e  os  ouvidos,  como  Cicero  o  fazia  com  a  penna. 

Não  ha  differença  nenhuma. 

Mas,  como  de  mais  longe  eu  vinha  dizendo,  a  chegada  da 
companhia  Zamperini  causou  grande  alvoroço  em  Lisboa. 

Os  fidalgos  e  os  capitalistas  trataram  logo  de  aposentar 
commoda  e  elegantemente  as  cantarinas,  especialmente  a  «es- 
trella»  Anna  Zamperini,  que  trazia  familia. 

Sabe-se  que  lhe  foi  posta  casa  com  mobilia  estofada  de 
seda  azul,  azul  e  branca,  e  amarella,  mesas  e  papeleiras  de  pau 


o   LOBO    DA    MADRAGÔA  181 


santo,  espelhos,  placas,  e  dois  cravos,  além  dos  utensílios  de 
toucador,  guarda-roupa  e  cosinha.  * 

A  mulher  de  theatro  foi  o  grande  aperitivo  amoroso  do  sé- 
culo XVIII  para  os  fidalgos  e  banqueiros  portuguezes. 

O  cavalheiro  de  Oliveira  chama-lhe  «morceau  friand,»  como 
quem  diz:  fina  petisqueira. 

Pouco  importava  que  a  mulher  de  theatro  fosse  mais  ou 
menos  bonita,  mais  ou  menos  talentosa.  Era  de  theatro,  e  bas- 
tava. Os  fidalgos  que  nSo  tivessem  uma  aventura  de  camarim 
julgavam-se  incompletos,  sobretudo  agora,  que  D.  JoSo  V  dei- 
xara o  exemplo  da  Petronilha. 

Os  poetas,  para  agradar  aos  fidalgos  que  os  sustentavam, 
cantavam  e  decantavam  as  actrizes  e  cantoras,  alçapremando-as 
ao  sette-estrello.  Quando  perpetravam  a  tolice  de  o  fazer  de 
conta  própria,  o  mais  que  podiam  obter  era  um  êxito  de  gar- 
galhada, porque  as  «divas»  riam-se  d'elles,  e  os  outros  poetas 
também. 

Vamos  ter  occasião  de  o  verificar. 

A  familia  Zamperini  compunha-se  do  pai,  e  de  trez  filhas, 
incluindo  a  «prima-donna  » 

O  pai  era  um  tragamouros  de  avantajada  estatura,  com 
uma  cabelleira  tao  farta  e  redonda,  que  dava  idéa  de  ter  perten- 
cido a  Sansão  e  de  haver  sido  vendida  por  Dalila  a  algum  fer- 
ro-velho  philisteu,  depois  da  memoranda  tosquia. 

Muita  gente  suspeitava  que  o  sr.  Zamperini  não  era  pai, 
nem  parente  authentico,  mas  um  valentão  contratado  para  com 
todo  o  seu  ardiloso  arreganho  diííicultar  o  accesso  dos  «dilet- 
tanti»  ás  boas  graças  da  cantarina. 

Vê-se  que  a  industria  theatral  dos  «pais  da  actriz»  vem  de 
longa  data. 

As  trez  «irmãs  Zamperini»  já  não  tinham  mãe;  mas  tra- 
ziam um  zangaralhão  que,  no  tocante  a  metter  medo,  valia  por 
mãe  e  pai. 

Eram  mulheres  interessantes,  e  a  «prima-donna»  não  seria 
a  melhor,  mas  tinha  grandes  attractivos  em  relação  ás  outras: 
ser  do  theatro,  possuir  uma  voz  bem  timbrada,  e  «reclamar»  a 
própria  celebridade  com  acirrantes  excentricidades  de  «toilette,» 
uma  das  quaes  era  a  maneira  de  pôr  o  chapéu. 

O  que  é  certo  é  que  Anna  Zamperini,  Zamparina  como  lhe 
chamava  o  povo  aportuguezando  a  palavra,  causou  tanto  abalo 


1  Consta  de  um  inventario  assignado  por  Ambrósio  Pollet,  em  4  de  ou- 
tubro de  1775. 


182  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


em  Lisboa  como  o  terremoto  de  1755.  Elle  atluira  os  prédios ; 
ella  alluira  os  corações. 

António  Diniz  da  Cruz  e  Silva,  que  foi  testemunha  presen- 
cial, porque  ainda  então  não  tinha  partido  a  primeira  ^'ez  para 
o  Rio  de  Janeiro,  consagrou  a  Zamperini  alguns  versos  do  seu 
«Hyssope»,  nos  quaes  nSo  só  commemora  os  attractivos  da  es- 
tonteadora  «diva,»  mas  também  a  perturbação  que  ella  exer- 
cera nos  costumes  da  época  : 

Se  tu,  ó  extremada  Zamperini, 
Que  era  Lisboa  os  casquilhos  embaraças, 
Seus  suaves  accentos  escutaras, 
PassBges,  e  volatas ;  bem  que  as  Graças, 
Lisonjeiras  te  cerquem,  e  derramem 
Em  teu  peito,  e  garganta,  mil  encantos, 
Com  que  as  trez  filhas  de  Achelôo  vences; 
Quantos  novos  encantos  aprenderas  ! 

O  erudito  Verdier,  commentando  esta  referencia  de  Antó- 
nio Diniz,  conta,  entre  outros  pormenores  relativos  á  Zampe- 
rini, que  nos  dias  santos,  quando  ella  ia  á  ultima  missa  do  Lo- 
reto,  attrahia  com  a  sua  presença  um  «numeroso  e  luzidissimo» 
concurso  de  admiradores. 

Era  o  theatro  a  invadir  a  egreja. 

Os  templos  também  teem  seus  fados.  Esta  egreja  italiana 
do  Loreto  conservou  sempre,  associado  ao  culto  religioso,  um 
certo  caracter  de  mundanidade  elegante.  Ainda  hoje  a  missa  da 
uma  hora,  que  é  a  «ultima»  do  nosso  tempo,  tem  o  que  quer 
que  seja  de  sala  de  visitas,  onde  as  damas,  apeiando-se  dos 
seus  trens,  entram  pela  estreita  portinha  da  sachristia. 

No  corredor,  e  na  rua,  fazem  alas  os  casquilhos  da  actua- 
lidade. 

Da  «toilette»  da  Zamperini  a  excentricidade  que  mais  deu 
nas  vistas,  e  logo  se  propagou  por  espirito  de  imitação  admi- 
rativa, foi  o  geito  que  ella  dava  ao  chapéu,  trazendo-o  derru- 
bado sobre  a  testa  e  inclinado  para  a  orelha  direita. 

A  moda  do  chapéu  á  Zamperini  communicou-se  não  só  ás 
damas,  mas  até  aos  pintalegretes  das  ultimas  décadas  do  sé- 
culo XVIII. 

A  phrase  ficou  no  calão  indumentario  e  ainda  hoje  em  Lis- 
boa se  diz  —  chapéu  «á  Zamparina»  por  chapéu  á  banda.  * 


*  Na  provincia  de  Traz-os-Montes,  aonde  não  chegou  a  influencia  da 
Zamperini,  diz-se  chapéu  ó  fancaia. 


o   LOBO    DA    MADRAGÔA  183 


E  não  foi  esta  a  única  innovação  que  a  famosa  cantatriz 
trouxe  ao  léxicon  da  nossa  lingua. 

Também  n'elle  ficaram  os  verbos  «Zamparinar»  e  «Enzam- 
parinar,»  como  synonymos  da  fascinação  amorosa  exercida  pela 
cantora  nos  seus  admiradores. 

Zamparinar  era  applaudil-a  ou  cortejal-a ;  dos  que  enlou- 
queciam de  amor  por  ella  dizia-se  que  estavam  «enzampari- 
nados.» 

O  morgado  da  Boa-Vista  foi  um  dos  muitos  fidalgos  por- 
tuguezes  que  se  bandearam  na  extensa  legião  dos  adoradores 
de  Anna  Zamperini. 

António  Lobo  enfurecia-se  quando  o  via  fazer  largos  dis- 
pêndios de  dinheiro  em  galantes  presentes  á  «prima-donna.» 

—  E'  uma  aventureira  que  anda  pelo  mundo  a  dar  saque 
ás  algibeiras  dos  incautos,  dizia  Lobo  ao  morgado. 

—  Deixe  ser,  respondia-lhe  o  fidalgo  da  Boa-Vista.  Isto  di- 
verte-me.  Eu,  que  sou  apenas  um  cidadão,  nâo  tenho  obriga- 
ção de  mostrar  mais  juizo  que  toda  a  cidade.  E  Vossa  Mercê 
bem  sabe  que  a  minha  divisa  é  esquecer  com  varias  mulheres 
a  lembrança  d'aquella  em  que  nossa  mãe  desdobrou  a  sua  exis- 
tência affectuosa. 

António  Lobo,  ao  ouvir  estas  palavras,  via  através  da  sau- 
dade a  imagem  pura  de  Therezinha,  e  irritava-se  ainda  mais 
contra  a  loucura  ruinosa  ou  ridícula  dos  sujeitos  enzampari- 
nados. 

—  Esta  maldita  cómica  ha  de  arruinar  toda  a  gente!  bara- 
fustava elle.  Não  deixa  viver  mais  ninguém. 

—  Nem  toda  a  gente,  replicava  o  morgado.  Olhe,  o  homem 
do  canário  douto  não  tem  razão  de  queixa ;  antes  pelo  con- 
trario. 

O  canário  douto  exhibia-se  na  Boa-Vista,  defronte  do  Paço 
da  Madeira,  que  era  pouco  mais  ou  menos  o  sitio  onde  hoje 
está  o  Instituto  Industrial; 

O  seu  empresário  expôl-o  ao  publico  no  segundo  andar  de 
um  prédio  cujo  numero  não  posso  designar,  porque  o  não  ti- 
nha. A  numeração  das  casas  em  Lisboa  apenas  começou  a 
usar-se  entre  os  annos  de  1805  e  1806. 

O  canário,  se  lhe  perguntavam  as  horas,  ia  procurar  com 
o  bico,  em  dois  semi-circulos  desenhados  sobre  pequenos  car- 
tões, a  hora  que  devia  ser  indicada. 

E  acertava. 

Para  dizer  como  as  pessoas  se  chamavam,  tomava  dos  car- 
tões as  lettrds  com  que  se  escreviam  os  seus  nomes. 

Por  idêntico  processo  indicava  o  anno  que  se  tinha  no  pen- 
samento. 


184  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


Até  chegar  a  Zamperini  a  concorrência  sahia  admirada, 
mas  era  pouco  numerosa. 

Depois  que  ella  cliegou,  foi  moda  ir  pedir  ao  canário  douto 
que  escrevesse  o  nome  da  cantora. 

E  elle  assim  fazia. 

Com  outros  nomes  equivocava-se  ás  vezes,  mas  o  empre- 
sário repetia -lh'os,  e  o  canário  emendava  a  mão...  quer  dizer, 
o  bico. 

Com  o  nome  da  Zamperini,  á  força  de  ouvil-o  repetir,  já  se 
não  equivocava  nunca. 

Parecia  até  contente  da  tarefa  que  lhe  incumbiam. 

E  diziam  então  os  alfacinhas  lamechas : 

—  Até  o  canário  gosta  da  Zamperini ! 

Tornou-se  moda  ir  convidar  o  canário  a  ajuntar  as  lettras 
de  que  se  compunha  aquelle  appellido.  * 

Todos  achavam  muito  galante  esta  brincadeira,  e  pagavam 
de  boa  vontade  doze  vinténs  por  cabeça. 

O  empresário  abençoava  no  seu  intimo  a  aprima-donna,» 
porque  á  sombra  d'ella  ia  ganhando  um  dinheirão. 

—  Pois  bem,  tornava  António  Lobo  ao  morgado,  toda  a 
gente  endoideceu  em  Lisboa.  Só  um  homem  tem  juizo;  um 
charlatão  estrangeiro  E'  o  homem  do  canário.  Como  elle  se  ha 
de  rir  dos  portuguezes !  Que  vergonha  I 

Quando  o  poeta  assistia  aos  espectáculos  na  Rua  dos  Con- 
des, embravecia  de  ódio  contra  todo  aquelle  mundo  de  zotes 
apaixonadiços,  que  enxameavam  entre  a  platéa  e  o  camarim  da 
tdiva.» 

—  Isto,  por  fim  de  contas,  pensava  elle,  é  a  reproducção 
em  grande  do  que  eu  passei  com  a  china:  uma  loucura  abomi- 
nável. A  Zamperini  alvoroçou  Lisboa,  como  a  «tancareira»  aJ- 
voroçou  Guimarães.  A  china  fez  só  uma  victima ;  fui  eu.  A  ita- 
liana faz  centenas  de  victimas,  porque  toda  Lisboa  enlouqueceu 
por  amor  d'ella.  Até  se  envergonha  a  gente  de  ser  portuguez. 
Isto  é  ridículo !  isto  é  odioso !  A  primeira  cidade  do  paiz  esta 
convertida  n'um  hospital  de  doudos ! 

E  audaciosamente,  como  se  fosse  um  Hercules  que  pu- 
desse fazer  rosto  a  uma  cidade  inteira,  esbravejava  com  arre- 
ganho e  insolência  deante  da  turba-multa  dos  chechisbéos  da 
Zamperini. 

Ora  um  dos  chechisbéos.  mais  em  cómica  evidencia  era  o 
padre  Manuel  de  Macedo,  e  foi  sobre  elle,  principalmente,  que 
António  Lobo  despejou  o  vomito  verde  da  sua  bilis  iracunda. 


*  Tkeatro  de  Manuel  de  Figueiredo,  tomo  xiv,  pags.  607  e  608,  nota. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  185 


De  mais  a  mais  o  padre  Macedo  era  um  homem  feio,  stra- 
bico,  amulatado,  e  mal  vestido. 

Para  António  Lobo  tinha  ainda  outro  defeito  :  era  um  rou- 
peta. 

Manuel  de  Macedo  Pereira  de  Vasconcellos  nascera  no 
Brazil,  na  colónia  do  Sacramento.  Veiu  para  Portugal,  onde  se 
ordenou  presbytero  e  tomou  a  roupeta  de  S.  Filippe  Nery  na 
Congregação  do  Oratório.  Ahi  regeu  com  distincçao  a  cadeira 
de  humanidades.  Quando  Sebastião  de  Carvalho  começou  a  per- 
seguir alguns  padres  da  Congregação,  Macedo  abandonou-a  e 
passou  ao  estado  de  presbytero  secular.  Ganhava  a  vida  como 
pregador,  tendo  fama  de  notável. 

El-rei  D.  José  dizia  d'elle : 

—  O  padre  Macedo  é  muito  feio,  mas  no  púlpito  até  parece 
bonito ! 

Versejava,  e  chegou  a  fazer  parte  da  Arcádia,  com  o  nome 
anagrammatico  de  Lemano. 

Quando  a  Zamperini  chegou  a  Lisboa,  Macedo  era  um  ho- 
mem de  quarenta  e  quatro  annos. 

Estava  na  pujança  da  vida,  com  todos  os  excessos  senti- 
mentaes  da  sua  raça  e  do  clima  ardente  em  que  nascera. 

Macedo,  apenas  recommendavel  pelo  seu  talento  litterario, 
enlouqueceu  a  ponto  de  julgar  que  poderia  aspirar  ás  boas  gra- 
ças da  Zamperini  em  concorrência  com  pessoas  de  tanta  cate- 
goria e  dinheiro  como  Ignacio  Pedro  Quintella,  Anselmo  José 
da  Cruz  Sobral  e  o  próprio  conde  de  Oeiras,  filho  primogénito 
do  primeiro  ministro,  além  de  muitos  fidalgos  proviuííianos, 
opulentos  e  generosos,  entre  os  quaes  se  abalisava  o  morgado 
da  Boa- Vista. 

O  segundo  conde  de  Oeiras,  Henrique  José  de  Carvalho  e 
Mello,  era  entào  presidente  do  senado  da  camará  de  Lisboa, 
cargo  para  que  tinha  sido  nomeado  em  janeiro  d'esse  anno  e 
que,  diga-se  de  passagem,  desempenhou  em  dois  triennios  con- 
secutivos, até  1776. 

Tinha,  quando  a  Zamperini  appareceu,  apenas  vinte  e  dois 
annos  de  idade;  mas  já  havia  seis  que  estava  casado  com  D.  Ma- 
ria Antónia  de  Menezes,  filha  de  D.  José  de  Menezes,  da  casa 
dos  condes  de  Caparica,  e  da  condessa  de  Rapasck. 

Era  uma  creança,  a  quem  tinham  consorciado  quasi  na 
infância. 

Vêr  a  cantora  e  enzamparinar-se  foi  obra  de  um  momento. 

Ella,  quando  lhe  apresentaram  aquelle  rapaz,  que  reunia 
as  altas  qualidades  de  ser  filho  do  primeiro  ministro,  conde  e 
presidente  do  senado  da  camará,  fréchou-lhe,  por  sob  a  aba  do 
chapéu,  um  olhar  coruscante  de  tentações  aphrodisiacas. 


186  o    LOBO   DA   MADRAGÔA 


Era  o  melhor  olhar  que  ella  tinha  no  seu  repertório:  o  olhar 
destinado  a  ensandecer  de  voluptuosidade  as  grandes  persona- 
gens. 

E  o  repertório  nâo  falhou  ;  nem  o  desempenho. 

O  joven  conde  de  Oeiras  tao  rendido  ficou  com  aquelle 
olhar  que  promettia  paraísos  e  saques,  tão  encantado  pela  for- 
mosa serêa,  que  também  sabia  cantar  com  os  olhos  quando 
era  preciso,  que  o  notário  Galli  e  os  outros  Íntimos  da  nuncia- 
tura,  incluindo  os  padres  italianos,  frequentadores  assíduos  da 
casa  de  Anna  Zamperini,  resolveram,  certamente  de  accordo 
com  a  sua  famosa  «diva,»  explorar  a  posição  social  e  a  paixo- 
nêta  do  conde. 

O  theatro  era  pequeno,  e  rendia  pouco.  De  mais  a  mais  ti- 
nha chegado  a  excesso  o  costume  de  pedir  «borlas,»  além  de 
haver  muitos  logares  captivos,  reservados  a  funccionarios  pú- 
blicos, incluindo  os  da  intendência  geral  da  policia,  creada  por 
Sebastião  de  Carvalho  de/,  annos  antes. 

De  modo  que,  aproveitando  habilmente  a  occasiao,  o  notá- 
rio Galli,  como  agente  e  de  accordo  com  os  demais  interessa- 
dos na  empresa,  lembrou-se  de  recorrer  ao  conde  de  Oeiras 
para  obter  maiores  recursos  pecuniários. 

Ideou  a  constituição  de  uma  sociedade,  com  o  capital  de 
cem  mil  cruzados,  repartido  em  cem  acções  de  quatrocentos  mil 
réis  cada  uma. 

O  conde,  já  enfeitiçado  pela  «prima-donna,»  approvou  este 
plano,  e  prometteu  auxilial-o. 

Um  bello  dia  convocou  para  uma  reunião  nos  paços  do  con- 
celho os  maiores  negociantes  nacionaes  e  estrangeiros,  sem  lhes 
declarar,  porém,  o  motivo  da  reunião. 

Todos  elles  se  deram  pressa  em  comparecer,  por  homena- 
gem ao  filho  do  primeiro  ministro,  e  por  medo  também. 

Ouviram  então  da  bocca  do  conde  de  Oeiras  qual  o  motivo 
por  que  os  reunira,  e  ficaram  admirados. 

Perceberam  que  se  tratava  apenas  de  arrancar-lhes  di- 
nheiro, mas  nenhum  d'elles  ousou  resistir  á  sangria. 

O  conde  mandou-lhes  lêr  um  documento  que  já  estava  pre- 
parado e  que,  dirigido  a  el-rei,  começava  por  dizer: 

«Senhor!  Os  homens  de  negócios  d'esta  praça  de  Lisboa, 
abaixo  assignados,  considerando  o  grande  esplendor  e  utilidade 
que  resulta  a  todas  as  nações  do  estabelecimento  dos  theatros 
públicos,  por  serem  estes,  quando  são  bem  regulados,  a  Escola 
publica  onde  os  povos  aprendem  as  máximas  mais  sãs  da  po- 
litica, da  moral,  do  amor  da  pátria,  do  valor,  zelo,  e  fidelidade, 
com  que  devem  servir  os  seus  soberanos,  civilisando-see  des- 
terrando insensivelmente  alguns  restos  de  barbaridade,  que 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  187 


n'elles  deixaram  os  infelizes  séculos  da  ignorância :  e  reflectindo 
quanto  V.  Magestade  se  empenha  na  instrucção  dos  seus  vas- 
salos, e  em  promover  todos  os  meios  de  os  fazer  felizes  ;  con- 
duzidos e  animados  pelo  conde  de  Oeiras,  Presidente  do  Senado 
da  Gamara  d'esta  Corte  e  Cidade  de  Lisboa,  teem  determinado 
entre  si  formar  uma  Sociedade,  que  se  empregue  em  sustentar 
os  mesmos  theatros  com  aquella  pureza  e  decoro,  que  os  fazem 
permittidos,  e  necessários.» 

Seguiam-se  os  estatutos  da  nova  «Sociedade  estabelecida 
para  a  subsistência  dos  Theatros  Públicos  da  Corte.» 

Os  negociantes  não  se  atreveram  a  dizer  palavra,  mas  olha- 
vam uns  para  os  outros,  de  soslaio,  embuchados  como  se  ti- 
vessem comido  marmello  cru. 

Custava-lhes  a  engulir  que  na  Rua  dos  Condes  pudessem 
aprender  com  a  Zamperini  «as  máximas  mais  sãs  da  politica 
e. . .  da  moral.» 

Mas  não  tiveram  remédio  senão  assignar,  entalados,  o  re- 
querimento a  el-rei,  e  logo  depois  a  folha  dos  subscriptores. 

Imagine- se  a  cara  de  parvo  com  que  cada  um  d'elles  entrou 
em  casa,  a  contar  á  familia,  muito  em  segredo,  para  que  as  pa- 
redes e  os  criados  não  pudessem  ouvir,  o  laço  que  lhe  tinha 
armado  o  conde  de  Oeiras. 

Ora  os  estatutos  da  Sociedade  constituíam  um  verdadeiro 
monopólio,  systema  económico  muito  do  agrado  de  Sebastião 
de  Carvalho. 

Ficariam  apenas  abertos  dois  theatros,  o  do  Bairro  Alto 
para  declamação  portugueza,  e  o  da  Rua  dos  Condes  para  ope- 
ras e  comedias  italianas. 

Todos  os  mais  fechariam,  sendo  até  prohibidas  as  repre- 
sentações em  casas  particulares,  tanto  em  Lisboa  como  nos  su- 
búrbios. 

Isto  é  que  talvez  fosse  um  serviço  á  arte. 

Os  estatutos  restringiam  o  costume  das  «borlas,»  e  decla- 
ravam que  a  responsabilidade  dos  sócios  não  ia  além  das  quan- 
tias subscriptas,  ainda  que  a  sociedade  por  qualquer  motivo  se 
extinguisse. 

Claramente  se  conhecia  ser  um  expediente  de  occasião, 
para  garantir  a  demora  da  companhia  Zamperini  em  Lisboa. 

Mas  certamente  o  mais  curioso  trecho  d 'esse  interessante 
diploma  era  aquelle  em  que  se  procurava  tapar  a  bocca  ao 
mundo,  que  censurava  vêr  tanta  gente  boa,  incluindo  o  conde 
de  Oeiras,  em  adoração  permanente  deante  de  «uma  cómica.» 

Procurava-se,  pois,  lavar  a  mancha  que  a  legislação  ro> 
mana  tinha  deixado  sobre  a  classe  dos  actores. 

«E'  Vossa  Magestade  servido  declarar,  dizia  o  diploma, 


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o   LOBO    DA    MADRAGÔA 


que  a  dita  Arte  (scenica)  per  si  é  indifferenle  e  que  nenhuma 
infâmia  irroga  áquellas  pessoas  que  a  praticam  nos  theatros 
públicos  emquanto  aliás  por  outros  principios  a  não  tenham 
contrahido.» 

Sebastião  de  Carvalho  gostou  certamente  d'esta  catanada 
contra  o  direito  romano,  que  elle  aborrecia. 

De  modo  que  a  Zamperini  arranjou  em  Portugal  dinheiro, 
gloria,  e  certidão  de  folha  corrida  quanto  aos  costumes  da  sua 
classe  e  pessoa. 

Na  reunião  promovida  pelo  conde  de  Oeiras  foram  logo  no- 
meados quatro  administradores-inspectores  do  theatro  da  Rua 
dos  Condes,  iogares  gratuitos,  sendo  apenas  inherente  ao  cargo 
o  privilegio  de  um  camarote  commum  a  todos  os  quatro. 

Por  indicação  do  conde  a  nomeação  recahiu  em  Ignacio 

Pedro  Quintella,  que  era  prove- 
dor da  Companhia  do  Gran-Pará 
e  Maranhão,  Alberto  Mayer, 
Joaquim  José  Estolano  de  Faria 
e  Theotonio  Gomes  de  Carva- 
lho. 

Os  estatutos  da  nova  «So- 
ciedade» foram  approvados  por 
el-rei  a  17  de  julho  de  1771. 

A  Zamperini,  não  obstante 
vêr  assim  garantida  a  sua  per- 
manência em  Lisboa,  parecia 
insaciável  de  recolher  dinheiro, 
além  de  louvores  e  palmas. 

Conheceu  bem  o  paiz  em 
que  estava. 

Quanto  a  dinheiro,  tinha 
a  esperteza  de  ir  sugando  a 
algibeira  dos  grandes  capita- 
listas. 

E  quanto  a  versos,  que  aliás 
prezava  pouco,  mas  que  eram 
precisos  para  estimular  o  en- 
thusiasmo  dos  banqueiros,  che- 
gavam a  ser  uma  praga,  um 
diluvio. 

O  padre  Macedo  ia  sempre 
na  vanguarda  dos  poetas,  a 
ponto  de  produzir  escândalo  uma 
ode  sua,  em  que  chamava  divina 

Aim» Zamperini  á  ZampenUl, 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  189 


Divina,  para  um  padre,  era  forte. 
O  clero  austero  irritou-se. 

O  leitor  vae  lêr  essa  ode  que  tanto  deu  que  fallar,  e  que  se 
transformou  n'um  pomo  de  discórdia  entre  os  poetas  da  época. 


Ode 


Formosa  Zamperini, 
Formosa  não  ;  formosa  não  te  basta  ; 

O  nome  de  divina 
E'  só  que  le  compete  :  pisa,  arrasta 

As  altivas  Bellezas 
Do  teu  triumpho  ao  veloz  carro  presas. 


Um  gesto,  um  movimento 
De  teus  olhos  gentis  quem  não  inílamma  ! 

Transporta  o  pensamento  ! 
Que  suave  prazer  n'alma  derrama  ! 

Com  doce  actividade 
Rouba  o  socego,  rouba  a  liberdade  ! 


Do  arco  Amor  nSo  sacode 
Setta  mais  penetrante !  a  tua  vista 

E'  um  raio,  que  pôde 
De  rebeldes  vontades  na  conquista, 

Vencer,  deixar  prostrados 
Os  corações,  ainda  que  obstinados. 


Appareces !  no  rosto 
De  cada  um  se  observa  diffundido 

Não  sei  que  estranho  gosto  ! 
Tu  só  tens  os  applausos  conseguido 

De  sempre  desejada  ; 
Retiras-te  da  Scena,  a  Scena  ó  nada! 


Oh  encanto  !  oh  ternura  f 
Oh  soberana  voz  !  nâo  ha  Serea 

Que  verta  igual  doçura  I 
O  insaciável  animo  recrea. 

Excita  novo  espanto. 
Não,  da  terra  não  é  aquelle  Canto  ! 


Quem  não  fica  pendente 
Como  absorto  de  tanta  melodia  ! 

Suspira  impaciente, 
Não  sabe  quando  ha  de  raiar  o  dia 

Que  ouvir- te  outra  vez  possa  ; 
Da  saudade  a  aspereza  nada  adoça. 


190  o    LOBO   DA   MADRAGÔA 


Ora  humilde,  ora  altiva, 
Vas  no  semblante  affectos  alternando  I 

Que  acção  tão  expressiva  1 
Um  teu  olhar  severo,  um  olhar  brando 

Consterna,  vivifica, 
Na  nivea  fronte  os  louros  te  duplica  I 


França,  não  te  gloreis 
Das  Actrizes,  que  cantas,  celebradas  ; 

Para  que  o  orgulho  enfreies, 
Do  Adriático  mar  nas  prateadas 

Margens  uma  apparece, 
E'  Zamperini  a  bella  ! . . .  ouve-a  ! . . .  emmudece  1 


Do  caudaloso  Sena 
Já  fez  parar  as  ondas  cristalinas. 

O  ecco  da  voz  amena 
Batendo  as  azas  nas  azues  campinas 

Tão  vastas  como  bellas. 
Tem  gravado  teu  nome  entre  as  Estrellas  1 


E  ha  quem  disputar  queira 
Do  teu  merecimento  a  proeminência  ! 

Tu  és  sempre  a  primeira  I 
A  frenética  inveja,  a  competência. 

São  terrestres  vapores 
Que  não  mancham  do  Sol  os  resplendores ! 


António  Lobo  era  um  dos  «terrestres  vapores»  a  que  o 
padre  Macedo  alludia  no  final  da  òde. 

Podemos  desde  já  calcular  que  a  allusSo  não  cahiria  em 
cesto  roto. 

O  suppôsto  pai  da  Zamperini  morreu  em  Lisboa. 

Os  ares  de  Portugal,  excellentes  para  a  filha,  foram-lhe 
nocivos  a  elle. 

Mas  os  ((dileltanti»  folgaram,  porque  ficava  sem  dragão  o 
jardim  das  Hespérides,  que  sempre  foram  trez,  tanto  na  my- 
tbologia,  como  em  casa  do  nunca  assaz  chorado  papá  Zam- 
perini. 

A  administração  do  theatro  fez  um  sumptuoso  funeral  ao 
«egrégio  cavalheiro  italiano»  e  promoveu,  trinta  dias  depois, 
solemnes  exéquias  no  Lorêto,  onde  elle  fora  sepultado. 

António  Lobo,  que  trazia  entre  dentes  o  padre  Macedo, 
lembrou-se  de  espalhar  que  o  nuctor  da  famosa  óde  seria  tam- 
bém o  pregador  da  oração  fúnebre  nas  exéquias. 

A  «galga»  correu  com  rapidez,  como  todas  as. . .  galgas. 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  191 


Chegou  ao  conhecimento  do  patriarcha  D.  Francisco  de 
Saldanha,  que  logo  mandou  chamar  á  sua  presença  o  padre 
Macedo. 

O  prelado  recebeu-o  de  sobrecenho  descido,  e  severamente 
lhe  fulminou  as  seguintes  prohibições:  de  pregar  nas  exéquias, 
de  frequentar  o  theatro,  de  fazer  versos  á  Zamperini,  orde- 
nando-lhe  também  que  substituisse  por  uma  cabelleira  o  pen- 
teado que  o  padre  Macedo  usava  á  italiana,  com  polvilhos, 
depois  que  a  «diva»  chegara. 

O  padre,  até  ahi  besuntao,  trescalava  agora  pivetes  irri- 
tantes. 

Ouvindo  as  fulminações  do  patriarcha,  Macedo  nSo  perdeu 
a  coragem  nem  a  eloquência. 

Asseverou  que  nunca  fizera  tenção  de  ir  pregar  nas  exé- 
quias. 

Quanto  ao  facto  de  frequentar  o  theatro,  defendeu-se  com 
o  exemplo  dos  padres  da  Nunciatura. 

E,  quanto  á  cabelleira,  também  recorreu  ao  mesmo'  exem- 
plo, allegando,  ainda  em  reforço,  que  a  cabelleira  oífendia  os 
cânones,  pois  que  até  os  ecclesiasticos,  se  d'ella  precisavam 
usar  por  virtude  de  alguma  enfermidade,  eram  obrigados  a 
impetrar  de  Roma  um  breve,  que  a  Nunciatura  taxava  num 
quartinho  por  cada  anno. 

O  patriarcha  não  quiz  attender  aos  precedentes  nem  aos 
cânones. 

Foi  inexorável  quanto  á  cabelleira. 

Mas  perante  as  caramunhas  do  padre  Macedo,  que  chorou, 
supplicando,  consentiu-lhe  que  fosse  ao  theatro,  comtanto  que  se 
escondesse  ao  fundo  de  um  camarote  ou  forçura,  que  poderia 
ser  a  do  auditor  e  do  secretario  da  Nunciatura,  bem  como  de 
outros  padres  italianos,  amigos  de  Galli. 

António  Lobo  ganhou  a  partida  quanto  á  «galga»  da 
oração  fúnebre,  mas  nao  se  contentou  com  essa  victoria,  e 
continuou  a  perseguir  implacavelmente  o  padre  Macedo  á  conta 
da  Zamperini. 

As  exéquias  realizaram-se,  sem  pregador,  mas  com  grande 
assistência  das  pessoas  mais  gradas  de  Lisboa,  fidalgos,  ban- 
queiros, negociantes,  vereadores,  além  dos  padres  da  Nun- 
ciatura, do  padre  Macedo  e  de  outros  ecclesiasticos  igualmente 
mundanos. 

António  Lobo  postou-se  no  largo  do  Lorêto,  entre  a  mul- 
tidão, a  vôr  entrar  toda  essa  immensa  legião  de  apaixona- 
dos, que  á  luz  do  sol  e  no  coração  da  cidade  não  duvidavam 
acorrentar-se  como  escravos  ao  carro  triumphal  da  «prima- 
donna». 


192  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Viu  chegar  as  trez  irmSs  Zamperini,  em  duas  seges;  a 
cantora  acompanhada  pelo  agente  Galli ;  as  duas  irmãs  acom- 
panhando-se  uma  á  outra. 

Vinham  em  trage  de  rigoroso  luto,  como  trez  graças  en- 
carvoadas. 

Os  zampirinistas  diziam  que  a  grande  Anna  ainda  parecia 
mais  bella  assim,  e  que  as  plumas  do  chapéu  faziam  lembrar 
nuvens  negras  que  pairassem  sobre  dois  raios  de  sol :  os  olhos 
lindos  e  travessos. 

Outros  sujeitos,  como  a  raposa  da  fabula,  não  podendo 
colher  os  altos  sorrisos  da  Zamperini,  contentavain-se  com  os 
dois  bagos  de  uva  que  estavam  mais  ao  alcance  da  mão :  as 
sympathicas  manas  da  «divina»  serêa. 

António  Lobo  improvisou  ali  mesmo  um  soneto,  que  poucas 
horas  depois  era  espalhado  por  copia  nos  soalheiros  mais  con- 
corridos da  cidade. 

Que  funcção  será  esta  no  Lorêto, 
Para  a  qual  correr  vejo  tanta  gente  ? 
Dobrando  estão  os  sinos  rijamente, 
O  morto  é  rico,  ou  grande  «anunalecto». 

E'  da  gran  Zamperina  o  pai  dilecto, 
Não  disse  bem,  da  «divina»,  excellente, 
Como  ouvi  já  chamar-lhe  indoutamente, 
Em  uma  óde,  em  péssimo  dialecto. 

Para  isso  se  ajuntou  toda  Lisboa  ?. . . 
Você  ó  tolo  ?  não  sabe  que  hoje  em  dia 
Da  Zamperina  o  nome  campa,  e  sôa  ? 

Ajuntou-se  da  filha  a  confraria  : 
Fidalgos,  deputados,  gente  boa. . . 
E,  de  provedor,  Galli  lhe  assistia. 

Este  soneto,  dito  por  António  Lobo  no  grupo  de  amigos 
que  o  rodeiava,  foi  ouvido  por  uma  airosa  taíula  que  estava  ali 
perto  dando  muito  nas  vistas  pelo  alto  penteado  que  se  cha- 
mava  «telonio»,  e  que  lhe  entufava  a  cabeça  petulantemente. 

Acompanhava-a  outra  sécia,  tombem  sem  manto,  nem 
.chapéu,  com  seu  ttelonio»  grimpante. 

O  padre  Francisco  Manuel,  se  ali  estivesse,  teria  dito  de 
ambas :  que  açoutavam  os  ares  com  o  topete.  * 


1  «Chamavam  «telonios»  aos  toucados  altos,  que  se  inventaram  em 
Lisboa,  depois  do  terremoto,  quando  as  moças  iam  descaradamente  sem 
manto  nem  touca,  açoutar  os  ares  com  o  topete«.  «Obras»  de  Filinto  Eiisio, 
«Sonho  dedicado  ao  ill.»*»  sr.  P.  M.  de  M.» 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  193 

A  tafula  mostrou  achar  muita  graça  ao  soneto,  rindo  com 
a  sua  companheira,  com  quem  manifestamente  fallava  a  res- 
peito de  António  Lobo. 

Elle  reparou  n'isto,  observou-a  e,  quando  ella  abalou,  des- 
pediu-se  dos  amigos  para  seguil-a. 

—  Olha,  disse-Ihe  um,  tu  zombas  do  Mattos,  e  nao  és 
menos  lamecha  que  elle. 

—  Santo  Deus!  exclamou  António  Lobo,  eu  nSo  gargarejo 
para  as  janellas,  nem  faço  versos  ás  «Delias»  e  aDirceas». 
Procuro  apenas,  onde  as  encontro, 

Delicias  feminis,  por  quem  me  babo. 
E  seguiu  Chiado  abaixo  na  piugada  da  tafula. 


13 


XV 


fl  guerra  dos  poetas 


A  evidencia  do  padre  Macedo,  por  amor  da  Zamperini, 
veio  atiçar  no  Pindo  a  sanhuda  pugna  que  já  andava  accêsa 
entre  os  poetas  portuguezes. 

O  padre  era  um  bom  rastilho  para  nova  explosão,  e  contra 
elle  desembestaram  logo  duas  hostes  aguerridas,  que  mar- 
chavam ao  seu  encontro  por  motivos  e  caminhos  diversos. 

De  uma  das  hostes  era  cabecilha  António  Lobo,  que  dire- 
ctamente aggredia  a  pessoa  de  Macedo,  atacando-o,  a  impulsos 
de  antipathia  individual,  pelos  seus  ridículos  e  fragilidades  de 
bajojo  junto  de  Anna  Zamperini. 

A  segunda  hoste,  de  que  foi  porta-bandeira  o  doutor  Domin- 
gos Monteiro  de  Albuquerque  e  Amaral,  que  era  entSo  um  rapaz 
de  26  annos,  transmontano  por  nascimento,  cultor  das  musas 
e  espirito  tao  mordaz  quanto  desvanecido,  atacava  os  poetas 
da  Arcádia  na  pessoa  do  padre  Macedo,  e  feria  pungentemente 
a  Zamperini  para  que  o  padre  sahisse  á  estacada  e  desse  o 
flanco. 

A  hoste  de  António  Lobo  era  uma  espécie  de  guerrilha 
popular,  que  fazia  arruido  na  rua  disparando  sonetos,  nem 
sempre  correctos,  mas  espontâneos  e  candentes,  que  logo  en- 
travam na  memoria  e  no  gosto  da  multidão. 

A  outra  hoste  era  mais  litteraria,  metrificava  o  decasyllabo 
com  maior  cuidado,  e  escrevia  odes  e  satyras  para  serem  lidas 
por  pessoas  illustradas  nos  gabinetes,  nas  salas  e  nas  aca- 
demias. 

Era  uma  espécie  de  contingente  emanado  do  famoso 
«Grupo  da  Ribeira  das  Naus,»  que  o  padre  Francisco  Manuel 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  195 


do  Nascimento  commandava  sob  o  nome  pastoril  de  «Niceno.» 

Este  contingente  combatia  por  ódio  litterario,  pois  que  o 
padre  Macedo  fora  admittido  como  árcade,  e  o  Grupo  da  Ribeira 
das  Naus  se  compunha  de  dissidentes  da  Arcádia. 

Vamos  seguir  por  algum  tempo  a  guerrilha  de  António 
Lobo,  aquella  que  se  propunha  esfolar  em  vida  o  padre  Macedo 
pelo  único  delicto  de  se  rojar  como  sabujo  deante  da  Zamperini. 

Lobo  não  era  homem  que  se  prestasse  a  vingar  alheios 
ódios  litterarios.  Não  se  importava  para  nada  com  a  Arcádia, 
nem  com  os  árcades.  Não  pertencia  ás  academias ;  era  um 
poeta  das  ruas.  Fallava  de  conta  própria,  desabafando  apenas 
sentimentos  pessoaes. 

Para  recolher  alguns  sonetos  do  bravo  cabecilha,  comece- 
mos por  aquelle  em  que,  referindo-se  á  ode  do  padre,  agrupa 
allusões  á  questão  da  «cabelleira»  e  á  prohibição  de  frequentar 
o  theatro. 

Sôa  no  sacro  monte  um  buzina, 
Ajuntam-se  os  antigos  escriptores, 
Moslra-lhe  ApoUo  cheio  de  furores 
A  ode  do  Macedo  á  Zamperina. 

Virgílio  pasma,  Homero  não  atina, 
SufToca-se  de  maguas  e  rancores; 
Já  Sannazaro  diz  :  «Votem,  senhores, 
Acudamos  depressa  a  esta  ruina  ! 

Vários  votos  se  dão  ao  delinquente; 
Que  seja  pelas  ruas  apupado. . . 
Porém  não  quer  ApoUo,  nem  consente. 

Mandam,  emfim,  que  seja  tosquiado, 
Que  uze  de  cabelleira  ou  de  crescente, 
E  da  ópera  a  desterro  condetnnado. 

O  caso  da  peruca  ainda  foi  ridicularisado  por  António  Lobo 
n'outro  soneto  dialogado  entre  o  padre  Macedo  e  o  cabelleireiro 
francez,  de  appellido  Sutá,  então  muito  em  voga : 

Macedo —  Monsieur  Sutá,  eu  quero  uma  peruca, 

Cousa  da  sua  mão,  ultima  moda  ; 
Que  me  cinja  a  cabeça  toda  em  roda, 
E  que  os  crespos  me  caiam  sobre  a  nuca. 

José  Pedro  ^  de  falso  ás  vezes  truca, 
Faz-rae  esperar  em  casa  a  manhã  toda  ; 
Depois  á  pressa  os  meus  cabellos  poda, 
E  com  pós  e  pomada  a  testa  estuca. 


*  Cabelleireiro  portuguez. 


196  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Cabelleireiro  —  Monsieur  TAbbéj  vós  tendes  muita  pressa  ? 
Macedo  —  Se  acaso  pôde  ser,  faça-ra'a  hoje, 

Fort  bien,  antes  que  o  sol  do  carro  desça. 

Preste,  monsieur  Sutá,  que  o  tempo  foge  ! 
Cabelleireiro  —  Eu  vol-a  faço  mesmo  na  cabeça, 

Que  ó  irmã  das  de  pau  que  eslão  na  loge. 

Por  duas  vezes  retratou  António  Lobo  o  padre  Macedo  em 
verso,  flagellando-o  como  homem  e  como  padre  e  fazendo-o 
expiar  o  adjectivo  «divina»  com  que  elle  tinha  classificado,  na 
ode,  a  pessoa  da  «prima -donna». 

Reproduzo  um  dos  retratos,  desenhado  por  Lobo  ao  correr 
da  sua  prompta  improvisação : 

Quem  é  este  peralta  reverendo, 
Que  em  verso  torpemente  nos  atroa. 
Querendo  inficionar  toda  Lisboa, 
Errada  e  nesciamente  discorrendo  ? 

Quem  é,  torno  a  dizer,  que  pervertendo 
Vai  da  santa  moral  a  lição  boa. 
Sem  que  haja  um  vil  tambor,  que  pise  e  môa 
Os  ossos  de  um  tal  monstro  assas  horrendo  ? 

Quem  é  que  o  puro  nome  de  «divina» 
A'  Zamperina  dá  sem  custo  ou  medo 
De  quem  os  idiotas  mais  crimina  ? 

Se  quereis  o  auctor  saber  de  tanto  enredo, 
E'  um,  de  honesta  côr,  talvez  da  China, 
E'  o  negro  doutor,  padre  Macedo. 

O  morgado  da  Boa-Vista  quiz  interceder  em  favor  do  pa- 
dre Macedo,  mas  António  Lobo  replicou  iracundo : 

—  Eu  tenho  sido  o  mais  agradável  possivel  a  Vossa  Se- 
nhoria, pois  que  ainda  não  disse  da  Zamperini  cousa  que  se 
parecesse  com  o  que  tem  escripto. . . 

O  morgado  atalhou  formidável  de  cólera : 

—  O  dr.  Monteiro  Amaral? 

—  Esse,  e  outros. 

—  O  dr.  Amaral  já  hontem  pagou  bem  cara  a  sua  insolente 
resposta  á  ode  de  Macedo.  Fil-o  comer  terra  no  Rocio  deante 
de  toda  a  gente  que  passava. 

—  Então  Vossa  Senhoria  deu  agora  em  vingador  de  canta- 
rinas  offendidas  !  Por  que  o  não  fizeram  outros,  e  Vossa  Senho- 
ria se  apressou  a  fazel-o? 

—  Porque  estávamos  em  casa  da  Zamperini  uns  poucos  de 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  197 


amigos,  Anselmo  Cruz,  o  Braamcamp,  António  Soares  de 
Mendonça,  o  Estolano  e  eu,  e  ali  tirámos  á  sorte  qual  de  nós 
havia  de  castigar  o  dr.  Monteiro  Amaral.  Por  signal  quen'essa 
occasião  bateu  á  porta  o  padre  Macedo. 

—  E  elle,  perguntou  irónico  António  Lobo,  também  entrou 
no  sorteio? 

—  Não.  Dissemos  á  Zamperini  que  lhe  não  abrisse  a  porta, 
visto  que  pela  sua  qualidade  de  ecclesiastico  não  podia  tomar 
parte  na  conjura,  que  pretendíamos  realizar  em  segredo. 

—  Ahl  ah!  riu  António  Lobo.  Essa  agora  é  melhor!  O 
poeta  que  a  «divinisou9  ter  ficado  fora  da  porta  como  um  cão 
enxotado!  E'  boa!  é  boa!  Essa  merece  perpetua  memoria. 

E  logo  começou  a  improvisar  em  voz  alta  um  soneto  n'uma 
torrente  de  inspiração : 

Truz,  truz.  Quem  bate  ahi?  Abra,  senhora, 
Sem  medo,  sem  receio,  e  sem  cautela  : 
E'  Macedo,  que  estava  só  por  vêl-a 
Debaixo  da  janella  ha  mais  d'um'hora. 

—  Mau !  exclamou  iroso  o  morgado  da  Boa-Vista,  cortan- 
do-lhe  a  inspiração.  Vossa  Mercê  está  insupportavel  com  esse 
seu  constante  teiró  contra  a  Zamperini  e  Macedo  !  Não  lhe  torno 
a  contar  mais  nada. 

—  O'  morgado!  Estragou-me  o  soneto!  que  já  não  sei  se 
o  poderei  acabar...  Mas  conclua  lá  o  caso  do  dr.  Monteiro 
Amaral. 

—  Com  uma  condição. . . 

—  Qual? 

—  Que  não  fará  soneto. 

—  Não  faço. 

—  Coube-me  a  sorte  a  mim,  no  sorteio. 

—  Não  haveria  batota  por  parte  dos  outros? 

—  Talvez.  Nem  reparei. 

—  E  depois? 

—  Depois,  esperei-o  no  Rocio,  á  hora  a  que  elle  costuma 
passar,  deitei-lhe  a  mão  ao  gasnete,  e  baldeei-o  no  chão. 

—  Juntou-se  gente? 

—  Pouca,  porque  a  manobra  foi  rápida,  e  elle  não  oppoz 
resistência. 

—  Ah !  morgado  !  Vossa  Senhoria  pôde  ainda  ser  incom- 
modado  pela  intendência  geral  da  policia,  que  não  perde  occa- 
sião de  alardear  serviços. 

—  Ora  adeus!  Defendi  uma  causa  em  que  o  conde  de  Oei- 
ras está  tão  interessado  como  eu. 


198  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


—  Mas  Sebastião  de  Carvalho  gosta  de  Monteiro  Amaral ; 
pté  lhe  chama  «doutor  em  prosa  e  verso.» 

—  Sim!  Sempre  ha  de  gostar  mais  do  próprio  filho,  e  o 
conde  de  Oeiras  bebe  os  ares  pela  Zamperini. 

N'este  momento  chegava  João  Xavier  de  Mattos,  todo  es- 
baforido. 

—  O'  homem!  gritou-lhe  António  Lobo.  Tu  vens  perse- 
guido por  algum  pai  tyranno,  que  te  apanhou  a  fazer  mesura  á 
donzella  Olaia,  sua  filha. 

Xavier  de  Mattos  sentou-se,  tomou  fôlego,  e  disse : 

—  Não  gracejes,  que  o  caso  não  é  para  isso. 

—  Então  cousa  grave? !  Querem  vêr  que  te  mataram  ! 

—  Sabe-se  que  foi  preso  hontem  ao  anoutecer  o  Garção. 

—  O  Garção!  conclamaram,  surprehendidos,  António  Lobo 
e  o  morgado  da  Boa- Vista. 

—  Sim,  o  Garção. 

—  Porquê? 

—  Não  se  sabe  ao  certo.  Mas  á  bocca  pequena  diz-se  que 
por  causa  de  amores. 

—  Querem  vêr,  alvitrou  Lobo,  que  será  historia  com  a  filha 
do  brigadeiro  Elsden  ? 

—  Por  que  é  que  diz  isso?  perguntou  o  morgado  da  Boa- 
vista. 

—  Por  que  era  visinha,  e  o  Garção  estava  muito  á  janella, 
umas  vezes  só,  outras  com  o  Ávila,  um  peralta  que  lhe  fre- 
quenta a  casa. 

—  O  que  foi  não  se  sabe  ao  certo. 

—  Sim,  disse  reflexivo  António  Lobo.  Pôde  ser...  deve  ser 
talvez  o  amor.  Garção  já  não  é  creança,  mas  é  poeta,  e  elle 
mesmo  antecipou  desculpas  a  qualquer  desatino  serôdio  quando 
compoz  aquelle  lindo  soneto  que  termina : 

. . .  Amor,  nascendo  moço,  se  faz  velho, 
E  um  velho  ter  amor  não  é  tontice. 

Houve  um  momento  de  silencio,  após  o  qual  António  Lobo 
reatou  o  dialogo  dizendo : 

—  Foi  preso  o  Garção!  Pois  morreu  a  Arcádia. 

—  E'  natural,  apoiou  Mattos. 

—  Vossas  Mercês,  disse  do  lado  o  morgado  da  Boa-Vista, 
já  ha  muito  andavam  a  dizer  que  ella  estava  podre. 

—  Gangrenada,  sim,  acrescentou  Lobo.  Mas  agora,  com 
a  captura  do  Garção,  sobreveiu-lhe  a  morte. 

E  logo,  mudando  de  tom : 

—  Ora  adeus!  A  intendência  geral  pôde  atulhar  com  área- 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  199 


des  O  Limoeiro,  poupando  comtudo  o  padre  Macedo,  para  nos 
não  tirar  o  divertimento.  E  sendo  assim,  cá  estou  eu,  cá  está 
o  «Grupo  da  Ribeira  das  Naus»  para  ir  zurzindo  o  padre.  Isto 
é  um  joguinho  em  que  cada  um  assenta  vasa  por  sua  conta  e 
risco.  Eu,  por  mim,  jogo  só...  com  a  canallia.  E  nao  tenho 
perdido. 

Effectivamente,  como  já  sabemos,  António  Lobo  n3o  per- 
tencia ao  «Grupo  da  Ribeira  das  Naus,»  composto  de  dissiden- 
tes da  Arcádia.  Da  sua  nau  independente  era  elle  o  piloto. 
Acompanhavam-n'o  na  manobra,  é  certo,  alguns  poetas  popu- 
lares, alguns  obscuros  moços  de  talento,  que  o  tomavam  por 
modelo.  Mas  a  veia  fecunda  de  Lobo  chegaria  á  farta  para  não 
dar  um  momento  de  tréguas  ao  padre  Macedo. 

O  leitor  vai  ouvir  outro  soneto,  com  que  Lobo  açoitou  o 
padre  ainda  á  conta  do  adjectivo  «divina:» 

Macedo,  é  tempo  de  mudar  de  officio. 
Tu,  que  eras  pregador  rijo,  excellente, 
A  testa  inclina,  escuta  paciente, 
Que  eu  também  de  pregar  tomo  o  exercício. 

No  púlpito  explicaste  contra  o  vicio 
Doutrina  santa  em  phrase  irreverente; 
No  theatro  és  a  fabula  da  gente, 
Opprobrio  á  religião,  e  a  nós  supplicio. 

Com  fé  quem  te  ha  de  ouvir  pregar  jè  agora 
(Oh  Deus  d'Abrahão,  oh  Nuraen  sempiterno) 
Se  «divina»  acclamaste  a  vil  cantora  ? 

Só  podes  ir  pregar  ao  escuro  Averno, 
Que  essa  profana  voz  ímpia  e  traidora, 
Não  é  clarim  do  céu,  é  voz  do  inferno. 

Este  soneto  apenas  António  Lobo  o  divulgou  quando  os 
Lorènas,  informados  pela  intendência  geral  do  conflicto  que  o 
seu  parente  tivera  no  Rocio  com  o  dr.  Amaral,  aconselharam 
ao  morgado  que  se  retirasse  de  Lisboa  immediatamente. 

Elle  teve  que  obedecer,  mas  disse  a  António  Lobo  que 
voltaria  logo  que  por  meio  de  cartas  persuasivas  pudesse 
abrandar  a  indignação  dos  primos  Lorênas. 

Com  o  moi'gado  em  Lisboa  não  teria  tido  Lobo  a  coragem 
de  chamar  «vil»  á  Zamperini. 

O  padre  Macedo  não  respondeu  nunca  a  António  Lobo, 
como  quem  não  queria  descer  do  estrado  da  Arcádia  até  ao 
nivel  de  um  poeta  das  ruas,  que  levava  atraz  de  si  a  canalha 
rota  e  enlameada. 


200 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Mas  respondeu  a  outros  adversários  mais  cotados ;  ao  dr. 
Monteiro  Anriaral,  por  exemplo. 

E'  agora  occasião  de  passarmos  revista  á  segunda  hoste 
que  perseguiu  o  padre. 

O   «Grupo  da  Ribeira  das  Naus»  constituira-se  por  emu- 
lação com  a  Arcádia,  e  celebrava  as  suas  reuniões  dentro  do 

edifício  do  Arsenal  da  Ma- 
rinha (d'onde  lhe  vinha  o 
nome)  por  que  era  ahi  que 
então  morava  Francisco  Ma- 
nuel do  Nascimento,  seu 
presidente. 

Faziam  parte  d'esse 
«Grupo»  Luiz  Pinto  de  Sou- 
sa Coutinho,  que  foi  primei- 
ro visconde  de  Balsemão, 
Domingos  Pires  Monteiro 
Bandeira,  o  capitão  de  in- 
fantaria Manuel  de  Sousa, 
o  dr.  Domingos  Monteiro 
de  Albuquerque  e  Amarai, 
o  comediographo  António 
Xavier  Ferreira  de  Azevedo 
e  o  dr.  Jeronymo  Estoquette. 
Abrir  brecha  na  Arcá- 
dia, apeando  no  conceito  pu- 
blico os  seus  sócios,  era  o 
fim  que  o  «Grupo»  tinha  em 
vista. 

Uma  das  suas  victimas 
foi  Garção,  que  n'um  soneto  se  refere  a  vários  d'aque}les  seus 
rivaes  e  adversários  em  lettras. 
Diz  o  soneto  de  Garção : 


Filinto  Elysio 
Chefe  do  grupo  da  Ribeika  das  Naus 


CONTRA  UM  RANCHO  SATYRICO 

Pinto  fidalgo  (^),  embaixador  da  Mancha, 
Tu  Monteiro  (2)  roaz,  que  na  baralha 
Vales  por  espadilha  da  canalha 
Que  a  fama  alheia  com  ferretes  mancha  ; 


(^)  Luiz  Pinto  de  Sousa  Coutinho,  primeiro  visconde  de  Balsemão,  em- 
baixador em  Londres. 

(2)  Domingos  Pires  Monteiro  Bandeira. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  201 


Padre  Niceno,  (^)  tu,  patrão  da  lancha, 
Carregada  de  drogas  da  antigualha, 
Que  o  Bandeirinha  {^)  alvar  á  tôa  espalha, 
Potro  que  n'outro  potro  se  escarrancha  ; 

Capitão  Archimedes,  (')  tu  zarolho, 
Manuel  de  Sousa  que  pareces  Mendes, 
Que  da  recua  aproveitas  o  restolho ; 

Ulpiano  venal. . .  {*)  tu  bem  me  entendes. . . 
Se  para  estas  cousas  tenho  dedo  e  olho, 
Em  peralvilhos  jubilado  tendes. 

Não  ha  aqui  referencia  ao  dr.  Domingos  Monteiro  de  Albu- 
querque e  Amaral,  que  talvez  ainda  então  frequentasse  a  Uni- 
versidade de  Coimbra. 

Mas  é  certo  que  este  poeta  se  filiou  no  «Grupo  da  Ribeira 
das  Naus,))  (^)  e  que  foi  elle  que,  por  parte  do  «Grupo,»  res- 
pondeu á  ode  do  padre  Macedo,  custando-lhe  essa  empresa  o 
ter  que  comer  terra  no  Rocio  pela  mão  do  morgado  da  Boa 
Vista.  (6) 

Vamos  lêr  a  resposta  que  tanto  offendeu  a  Zamperini  e  os 
seus  admiradores : 

Assas  tem  Pluto  á  Espanha  fulminado 

Maus  versos  ;  e  más  prosas 
Com  afumadas  mãos  tem  jaculado. 

Vão  cantoras  famosas, 
Itálicas,  Espanicas,  Francezas 
De  Zamperini  ao  torpe  carro  presas. 

Com  que  saudade  os  pés  assignalados 

Deixaste,  recta  Astrea, 
Lá  de  Atlante  nos  hombros  estrellados  ! 

Com  dourada  cadêa 
A  balança  a  teus  pés  levaste  presa  : 
Outra  ficou  em  que  a  Paixão  só  pesa  ! 


(1)  Francisco  Manuel  do  Nascimento. 

(2)  Este  Bandeirinha  nada  tem  de  commum,  certamente,  com  Domingos 
Bandeira.  E'  outro  individuo,  que  o  diminutivo  tem  por  fim  differençar. 

(^)  O  capitão  de  infantaria  Manuel  de  Sousa. 

(*)  O  dr.  Estoquette. 

(^)  Dil-o  Innocencio,  «Dicc  Bib.»  tomo  II,  pag.  193 ;  e  Pinheiro^Chagas, 
«Dicc.  Pop»  1.°  vol.  pag.  175. 

(^)  Camillo  Castello  Branco  «(Curso  de  litt.  port.,  pag.  205)»  attribue 
a  resposta  a  Domingos  Monteiro.  Mas  o  redactor  do  «Bamalhete,  6."  vol., 
pag.  324  e  seguintes,  que  ainda  teve  relações  pessoaes  com  o  dr.  Amaral,  diz 
que  elle  foi  o  antesignano  da  batalha  litteraria  contra  o  padre  Macedo,  e  o 
auctor  da  resposta  à  ode.  Isto  está  de  accordo  com  o  caracter  expansivo  e  o 
génio  folgazão  de  Amaral,  que  envelheceu  alegremente  compondo  em  21 
oitavas  uma  arte  de  alliviar  certas  oppressões  da  natureza. 


202  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Tem  Vénus  impudica  o  pomo  de  ouro 

A  Minerva  negado. 
Não  serve  á  Deusa  bella  de  desdouro 

Ter  sempre  Marte  ao  lado  ; 
Do  estranho  voto  ora  a  rasão  concebo : 
Foi  Juiz  o  adultero  Mancebo. 

Tu,  que  d'Abril  nas  frescas  madrugadas, 

Rouxinol  sonoroso, 
Dás  a  Tilan  as  primas  alvoradas. 

Se  em  cárcere  formoso 
Deliciosos  ouvidos  adormentas, 
De  corações  exhaustos  te  sustentas. 

Não  arrancou  Quixote  desvelado 

Entre  aerios  carinhos 
A  Durindana  mais  vãmente  ousado 

Contra  duros  Moinhos, 
Que  tu  com  o  verso  em  que  a  alma  derreteste 
Sem  ouro  è  Zamperini  acommetteste. 

O  volúvel  penedo  abaixo  e  acima 

Vai  Sisypho  rolando. 
Se  os  que  nos  ferem  com  má  prosa,  e  rima, 

Jove  assim  castigando 
A  perpetua  fadiga  os  condemnára, 
Muita  lição  penosa  nos  forrara. 

Não  viramos  gravar  entre  as  Estrellas 

Um  tão  inçaste  nome, 
Sem  attentar  que  o  claro  lume  d'ellas 

A  luz  baça  consome  ; 
Nem  viramos  em  Paphos  profanados 
Os  vasos  de  ouro  ao  Templo  consagrados. 

Mas  a  nossa  vaidade  empavezada 

Não  consente  que  os  Numes 
Salvem  d'esta  eslulticia  descarada 

D'alma  os  nativos  lumes; 
Ouzamos  reprehender  nossos  maiores. 
Vimos  por  presumpção  a  ser  peiores. 

A  fallar  verdade,  se  a  gente  compara  esta  réplica  com  as 
furibundas  verrinas  do  nosso  tempo,  chega  a  parecer  que  ella 
é  tao  desenxabida  e  molle  como  um  copo  d'agua  salobra. 

Mas  nao  o  foi  para  a  Zamperini,  nem  para  os  seus  enthu- 
siastas,  que  logo  tiraram  á  sorte  quem  havia  de  desaí!rontar  a 
«prima-donna,»  certamente  por  causa  do  «torpe  carro»  e  do 
aincasto  nome.» 

O  padre  Manuel  de  Macedo  não  se  contentou  com  a  des- 
aífronta  da  cantora  pelo  morgado  da  Boa- Vista;  quiz  desag- 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  203 


gravar-se  a  si  mesmo  nSo  se  resignando  ao  papel  de  D.  Qui- 
xote, que  o  dr.  Monteiro  Amaral  lhe  distribuirá. 

A  vaidade  dos  poetas  é  uma  cousa  mais  susceptível  do 
que  a  sensitiva. 

O  padre  Macedo  recalcitrou,  mas  a  sua  tréplica  faz  lembrar 
uma  descompostura  dada  por  um  gato-pingado  em  «toilette» 
fúnebre. 

Começa  por  lastimar  plangentemente  a  mordacidade  e 
inveja  do  aGrupo  da  Ribeira  das  Naus:» 

D'onde  nasce  que  todos  indulgentes 

Com  os  seus  vicios  são,  mas  contra  os  outros 

A  mordaz  lingua  aguçam,  nem  perdoam 

Os  mais  leves  defeitos?. . .  hão  de  a  aresta 

Ver  nos  olhos  alheios  ;  mas  da  tranca 

Que  nos  seus  olhos  tem,  caso  não  fazem. 

Quem  8upportal-os  pode  ?. . .  casta  infame  I . . . 

Da  Satyra  o  açoute  levantado 

Sobre  vós  hoje  está  !  vós  o  argumento 

Dos  meus  versos  sereis,  comvosco  é  a  briga  ! 

Depois,  como  é  costume  dos  poetas,  e  dos  outros,  faz  o 
seu  elogio  para  dar  vulto  ao  contraste  com  os  adversários, 
deprimindo-os: 

E  tu  I  oh  bom  Lemano,  que  não  temes 
Da  frenética  inveja  o  voraz  dente. . . 

Lemano  é  elle  próprio;  é  o  seu  anagramma  na  Arcádia. 
E  continuando  a  fallar  de  si,  e  comsigo,  prepara  o  salto 
aos  do  «Grupo  da  Ribeira  das  Naus:» 

Tu  que  dos  cães,  que  ladram  como  á  lua, 
Mofando  sempre  estás,  o  sacrifício, 
Que  te  dirijo,  acceita ;  é  a  Justiça 
Quem  o  animo  me  accende,  mal  faria 
Se  a  teu  merecimento  não  rendesse 
Algum  publico  obsequio.  As  almas  nobres 
Conhecem-te,  e  desculpam  teus  defeitos, 
Se  porventura  os  tens:  qual  é  o  que  nasce 
Sem  que  tenha  defeitos?  de  corrupto 
Tronco  brotamos  todos,  pelos  ramos 
O  veneno  se  infunde   Se  a  canalha 
Vil  infamar-te  quer,  ó  sua  a  injuria. 
Que  mais  desejas  tu  para  vingar-te 
Que  o  serem  conhecidos?  já  na  Praça 
Seus  podres  assoalho  ;  suas  manhas 
A  fazer  manifestas  já  começo. 

Mette-se  agora,  após  a  locução  «vil  canalha,»  que  não  é 


204  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


mau  cumprimento  para  começar,  na  questão  litteraria  do  tempo, 
a  lucta  das  escolas,  latina  e  franceza. 

Accusa  os  da  Ribeira  das  Naus  de  serem  velhos  e  ba- 
fientos,  caturras  agarrados  aos  antigos  moldes  clássicos  dos 
poetas  romanos  e  dos  portuguezes  quinhentistas. 

Carregando  n'esta  nota,  prosegue  : 

Quem  por  extravagante  não  teria 
Aquelle  que  do  hombro  a  solta  capa 
Pendente,  as  fofas  calças  enfeitando 
De  frescos  topes,  com  o  retorcido 
Bigode  feito  eo  ferro,  e  a  larga  espada 
A'  cinta  posta  sobre  o  gibão  justo, 
Passeiasse  entre  nós,  desenterrando 
Dos  Affonsinhos  as  passadas  modas? 
Pois  é  este  o  nosso  caso.  Das  palavras, 
E  dos  trages  a  condição  é  a  mesma. 
E'  ridículo  quem  se  affasta  do  uso. 
Rem  hajas  tu,  meu  Mattos,  tu,  Basilio, 
Bem  hajas  :  que  com  uma  nobre,  e  séria 
Locução,  do  Parnarso  ao  bi-partido 
Cimo  voado  tendes,  corromper-vos 
Não  vos  deixastes  das  Mouriscas  vozes 
Da  rançosa  antigualha  !  vossos  versos 
Com  applauso  serão  de  todos  lidos  ; 
Do  Tejo  sobre  as  ondas  prateadas 
Andarão  vossos  versos  arrancados 
Da  fria  mão  da  morte  1  vós  de  eternos 
A  fama  alcançareis  nos  campos  Lusos, 
A'  fresca  sombra  dos  viçosos  louros. 
Que  a  honrada  fronte  adornam  dos  Mirandas, 
Dos  Camões,  dos  Bernardes,  dos  Ferreiras. 

Para  ferir  os  adversários  nSo  duvida  o  padre  Macedo 
elogiar  João  Xavier  de  Mattos,  que  não  passou  de  ser  um 
poeta  de  segunda  ordem,  e  José  Basilio  da  Gama,  o  auctor  do 
«Uruguay,»  que  depois  lhe  revirou  o  dente. 

Mas  o  padre  queria  conquistar  prosélytos. 

Finalmente,  despede-se  do  cGrupo  da  Ribeira  das  Naus,> 
mandando  cartões  de  visita  ao  «valente  chefe»  Francisco 
Manuel  do  Nascimento,  e  a  alguns  outros,  que  nomea: 

Ora  1  eu  já  não  posso 
Demorar-me  com  tanta  baboseira  ! 
Charlatães  importunos,  já  vos  deixo, 
Monteitos,  Estoquettes,  Bandeirinhas, 
Valente  Chefe  do  famoso  troço 
Da  Ribeira  dae  Naus,  a  ti  primeiro, 
Se  ao  dissabor  das  Satyras,  quizerdes 
Forrar-vos,  acceitae  o  meu  conselho, 
E'  santo  !  «conhecei- vos,  e  calae-vos  !» 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  205 


Como  era  de  prever,  o  dr.  Monteiro  Amaral  nao  deixou  de 
replicar. 

Entrando  na  questão  litteraria,  cahiu  no  laço  que  o  padre 
Macedo  lhe  armou  habilmente  com  o  fim  de  afastar  para  o  se- 
gundo plano  o  escândalo  Zamperini. 

Dou  apenas  uma  rápida  amostra,  para  que  o  leitor  nSo  se 
aborreça  muito : 

Mas  voltemos  agora  a  essa  altiveza, 
Com  que  dás  leis  na  língua  Portugueza. 
Qual  uso  é  esse,  de  que  Horácio  falia, 
Que  ha  de  manter  a  lingua,  e  governal-a? 
Será  o  que  tu  fazes  de  «transportes», 
De  «interesses,»  «conducta,»  e  de  «ressortes,» 
«Fanfarrão,»  «calcular,»  «terso,»  e  diversos 
Com  que  salpicas  tua  prosa,  e  versos? 
E'  o  uso  da  Franceza  rapazia, 
Sem  Diccionario,  sem  Academia  1 
Esse  de  orações  curtas,  desligadas. 
Que  mede  os  teus  Sermões  por  poílegadas  ? 
Ou  é  o  de  finados  Escriptores, 
Que  escreveram  nos  Séculos  melhores, 
Lidos  com  discreção,  e  só  seguidos 
Nos  vocábulos,  que  andam  mal  suppridos, 
Nos  que  são  filhos  de  eruditos  tempos. 
Que  as  guerras,  a  ignorância,  os  contratempos 
Por  um  pouco  affastaram  dos  ouvidos 
Dos  que  nem  são  Lettrados,  nem  são  lidos  ? 

Monteiro  Amaral  deixou-se  desviar  da  questão  Zamperini, 
e  estragou  a  satyra,  que  degenerou  n'uma  semsaboria  acadé- 
mica. 

O  padre  Macedo  devia  esfregar  as  mãos  de  contente. 

E  a  pugna  teria  terminado  aqui,  se  não  viesse  intromet- 
ter-se  um  terceiro  combatente. 

Foi  José  Basilio  da  Gama,  poeta  brazileiro  que  havia  che- 
gado a  Lisboa  sete  annos  antes ;  espirito  inquieto,  que  do  con- 
vívio dos  jesuítas  passou  para  o  do  marquez  de  Pombal,  a  quem 
mereceu  protecção. 

José  Basilio  era  n'esse  tempo  um  homem  de  trinta  annos. 

A  sua  satyra,  além  da  levesa  graciosa  da  phrase,  tem  para 
nós  o  interesse  de  compendiar  a  famosa  guerra  dos  poetas  a 
propósito  da  Zamperini,  que  elle  não  perde  de  vista,  como  va- 
mos verificar : 

Zamperini  apparece  ;  adeus,  Talaia  ! 
Zamperini  em  francez,  em  prosa,  em  verso; 
Nas  salas,  nos  Theatros,  nas  Tabernas 
Tudo  se  enzamparina  :  os  Homens  digo. 
Que  as  Mulheres  maldita  graça  lhe  acham. 


206  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Já  de  mil  pretendentes  rodeada 
Se  constitua  Penélope  ás  avessas, 
Porque  a  outra  esperava  o  seu  Esposo, 
E  esta  correndo  vai  climas  diversos 
Somente  para  achar  alguns  Ulysses. 
Crê  achal-os  aqui,  que  a  Fama  vôa 
De  ser  Ulysses  quem  fundou  Lisboa. 

Até  que  algum  depare,  nslula,  e  destra 
Em  olhos  Basilisco,  em  voz  Serea, 
Vai  fiando  delgado  os  seus  favores; 
Por  ella  soam  no  estucado  tecto 
As  dobradiças  da  ferrada  burra 
D'onde  o  negociante  tira,  e  conta 
As  retinintes  peças,  que  encartuxa  ; 
Em  tanto  o  Guarda-livros  diligente 
No  «ha  de  haver»  da  casa  escreve,  e  lança 
Em  «despezas  geraes»  aquelle  dia  : 
Ferve  a  peta,  a  anecdota,  a  praça,  a  Intriga 
Chove  como  na  rua  aos  ÍDirectores  : 
Nem  te  livras,  asthraatico  Theotonio, 
Das  venenosas  lingoas  :  té  Pintores 
Por  ter  de  Zamperini  exactas  copias 
Animam  os  pincéis,  dão  vida  ás  cores. 
O  Demónio  de  um  louco  enthusiasmo 
Se  apodera  da  plebe  dos  Orates, 
Disse  Orates,  querendo  dizer  Vates, 
Que  imaginando  cora  saber  profundo 
Que  ainda  ha  Saphos,  e  Lesbias  pelo  Mundo 
Estrugem  os  ouvidos  com  romances, 
Décimas  frias,  ráncidos  Sonetos, 
Que  mal  entende  a  Actriz  Veneziana, 
E  em  os  mal  entender  perde  bem  pouco. 

Agora  o  leitor  está  decerto  mais  interessado,  porque  vê  a 
Zamperini  a  dançar  na  corda  bamba. 

Mas  deixe-me  dizer-lhe  duas  palavras  de  rápido  commen- 
tario. 

AdeuSj  Talaia,  é  referencia  aos  cómicos  desastres  tauro- 
machicos  do  aficionado  dr.  João  Dias  Talaia,  que  com  elies  ti- 
nha dado  que  fallar  e  rir  a  toda  Lisboa  antes  da  Zamperini 
chegar. 

Quer  o  poeta  dizer  que  a  um  assumpto  risivel  succede  ou- 
tro: ao  Talaia,  a  Zamperini. 

Lembrarei  por  agora  ao  leitor  que  este  Talaia  é  aquelle 
mesmo  condiscípulo  de  António  Lobo  no  Collegio  das  Artes  em 
Coimbra. 

O  asthmatico  Theotonio  é  Theotonio  Gomes  de  Carvalho, 
um  dos  administradores-inspectores  do  theatro  da  Rua  dos 
Condes. 

O  poeta  refere-se  em  seguida  á  famosa  ode  do  padre  Ma- 
cedo, que  foi  no  Pindo  o  pomo  da  discórdia. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  207 


Eis  que  de  Auctor  sagrado  Ode  á  divina 
Pelo  vulgo  se  espalha  —  «Assas  tem  Pluto»  ;  — 
Saem  a  empatar-lhe  as  vasas  ao  caminho; 
Esquenta-se-lhe  a  bilis^  freme  de  ira, 
Que  os  Poetas  teem.  ódios  do  Diabo. 
D'aqui  Macedo  Satyras  fulmina, 
De  seus  Sermões  pelo  teor  moldadas, 
Em  verso  solto  como  o  próprio  Auctor 
De  exórdio,  narração,  invocação 
Não  se  pôde  escusar  nas  suas  obras, 
Inda  que  só  fizesse  um  máu  quarteto. 

D'ali  Monteiro,  qual  outro  Lucilo, 
Estando  sobre  um  pé,  faz  n'uma  noite 
Perdendo  seu  trabalho,  e  seu  azeite. 
Trezentos  pares  de  enfadosas  rimas 
Em  estylo  dialetico-forense. 
Ambos  Poetas  são  «in  victo  Domino»  : 
Este  quando  o  quer  ser  se  nos  presente 
Carregado  da  Vara  de  Megera  : 
Aquelle  traz  o  açoute  de  Thesíphone, 
Com  que  o  seu  corpo  castigar  devia, 
Resfriando  a  licença,  penitente. 

Monteiro  é  o  dr.  Domingos  Monteiro  de  Albuquerque  e 
Amaral. 

A  aliusão  do  poeta  ao  estylo  dialetico-forense  deve  tirar  to- 
das as  duvidas  aos  que  suppunham  que  o  antagonista  do  padre 
Macedo,  «na  guerra  dos  poetas,»  fora  Domingos  Pires  Mon- 
teiro Bandeira,  o  qual  não  era  bacharel  em  direito,  mas  escri- 
vão da  Mesa  da  Consciência  e  Ordens. 

Dividem-se  os  juizos;  defensores 
Occupam  do  Parnaso  ambos  os  cumes ; 
Basilio  faz  lunático  o  Macedo, 
Mattos  fal-o  pastel  de  carne,  e  massa. 
Nem  te  faltam,  Monteiro,  mil  sequazes 
Que  offerecem  verter  era  teu  serviço 
Té  a  ultima  gotta  do  seu  estro. 

Toca-se  ás  armas,  temol  a  travada  ! 
Tempo  já  houve,  em  que  a  Discórdia  fera, 
Que  nos  pequenos  corações  domina, 
Derramou  o  seu  livido  veneno 
Nos  peitos  dos  Bregeiros,  e  Rapazes  : 
Viram-se  então  da  Alfama,  e  da  Pampulha 
Tremular  as  bandeiras,  e  os  Exércitos 
Marcharem  cora  furor  á  civil  guerra, 
Que  os  Carapos  infestou  da  Cotovia 
Vós  igualmente  divertis  Lisboa 
Cuidando  acredilar-vos  com  discórdias. 
Sois  do  Entrudo  as  Figuras  ;  sois  do  Inverno 
Os  Talaias,  e  a  Fabula  do  Povo. 
Por  mais  que  a  gente  ria  ás  gargalhadas, 
Moteje  á  vossa  custa  de  maus  versos, 


208  o    LOBO    DA    M/VDRAGÔA 


VÓS  vos  credes  Homeros,  e  Virgilios, 
Por  vèr  que  quatro  estúpidos  vos  louvam. 
E  se  alguém  vos  não  grita  «viva  !  bravo  ! 
«Este  verso  é  em  phrase  Horaciana  !» 
Sem  ter  vergonha  o  applaudis  vós  mesmos, 
As  casas  atroando  com  palmadas, 
Testas  felices,  bem-aventuradas  ! 

Por  ultimo  José  Basilio  descarrega  o  golpe  de  misericórdia 
nos  dois  poetas  contendores,  dando-lhes  de  conselho  que  tra- 
tem de  outro  officio : 

Deixa,  amigo  Monteiro,  de  seccar-nos 
Co'a  antiga  elocução  áspera,  e  dura. 

Voltando-se  depois  para  o  padre : 

E  tu,  Macedo,  fallo-te  sincero, 
Dou-te  licença  de  queimar  teus  versos  ; 
Não  nasceste  Poeta,  tem  paciência. 

Finalmente,  dirigindo-se  aos  dois  : 

Deixai  ambos  de  ser  alvo  das  gentes, 
Quichotes,  cada  qual  por  seu  feitio. 

O  dr.  Monteiro  Amaral  ainda  resfolegou,  replicando  : 

Macedo  as  suas  obras  defendia  ; 
Monteiro,  que  ás  censuras  replicava, 
Qualquer  discórdia  evitar  devia. 

Quem  a  satyrisar  te  provocava  ? 
Tua  soltura  voluntária  accusa 
O  que  a  defeza  em  outros  desculpava. 

E  prosegue  sempre  com  a  preoccupação  litteraria  de  apa- 
nhar as  sincas  do  adversário : 

Tu  suppões  de  Penélope  formosa 
Seguir  tudo  em  contrario  a  Zamperina, 
Mas  vê  que  trapalhada  vergonhosa. 

Namorada,  e  viandante  a  Cantarina 
Porque  da  Grega  o  avesso  bem  seguisses 
Finge  a  tua  idéa,  e  logo  desatina. 

Se  a  outra  procurava  a  seu  Ulysses, 
Esta  os  Ulysses  procurar  não  deve  ; 
Segue  a  idéa,  e  não  finjas  parvoices. 

Penélope  modesta  se  conteve 
Entre  os  amantes  ;  tu  fingir  devias 
Que  a  Zamperina  no  regaço  os  teve. 

Seguir  a  antonomásia  assim  podias 
Ora  confessa  aqui  sinceramente 
O  que  era  esta  figura  não  sabias. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  209 


Basta  de  versos.  Para  nSo  enfadar  mais  o  leitor  dir-lhe-hei 
apenas  que  José  Basílio  ainda  contestou  parodiando  o  final  do 
canto  IV  dos  «Lusíadas,»  e  que  o  dr.  Monteiro  Amaral  lhe  re- 
torquiu n'uma  satyra  dialogada. 

Os  espectáculos  no  theatro  da  Rua  dos  Condes  decorriam 
turbulentos;  por  isso  muita  gente  séria  os  evitava. 

A  concorrência,  alimentada  apenas  pelos  parciaes  da  can- 
tora, diminuía. 

Era  principalmente  a  influencia  do  conde  de  Oeiras  que 
obstava  a  que  a  intendência  geral  da  policia  mandasse  fechar  o 
theatro. 

A  hostilidade  que  dividia  os  poetas  facilitava  frequentes 
conflictos;  e  uma  violência  imposta  pelos  administradores  da 
sociedade  ao  tenor  Schiattini  viera  exaltar  o  animo  dos  mais 
pacatos  adversários  da  veneziana. 

Com  a  falta  de  concorrência  decresceram  as  receitas  do 
theatro.  A  «prima-donna»  era,  á  sua  parte,  uma  insaciável  es- 
ponja de  dinheiro.  O  fundo  social  estava  quasi  exhausto,  e  a 
morte  de  Ignacio  Pedro  Quintella  viera  fechar  um  cofre  subsi- 
diário, que  era  o  d'elle. 

Andavam  já  atrazados  os  pagamentos,  até  aos  artistas,  in- 
cluindo o  tenor  Schiattini,  que  era  uma  figura  indispensável 
na  companhia  da  Rua  dos  Condes,  e  que  declarou  que  nao  tor- 
nava a  cantar  se  lhe  nao  pagassem  em  dia. 

Perante  esta  difficuldade,  muiio  embaraçosa,  os  adminis- 
tradores do  theatro  recorreram  a  uma  violência  abominável. 

Metteram  o  tenor  no  hospital  de  S.  José,  dando-o  por 
doido,  e  em  cada  noite  de  espectáculo  mandavam-n'o  buscar 
por  dois  quadrilheiros  para  que  viesse  cantar  de  graça. 

O  tenor  era  escoltado  até  ao  camarim,  e  do  camarim  até 
ao  palco. 

Em  scena,  onde  os  quadrilheiros  lhe  não  podiam  chegar, 
vingava-se  dos  administradores  do  theatro  acommodando  á 
musica  descomposturas  e  diatribes  contra  elles. 

O  publico  dividia-se  em  partidos:  uns  riam,  outros  voci- 
feravam. 

Uma  noite,  António  Lobo  indignou-se  a  tal  ponto,  que 
trepou  a  um  banco  e  começou  a  gritar  contra  aquelia  mons- 
truosa prepotência. 

Cresceu  para  elle  a  onda  dos  zamperinistas,  mas  Lobo 
mantinha-se  n'uma  attitude  indomável,  protegido  por  muitas 
pessoas  sensibilisadas  pela  desgraça  do  tenor. 

Houve  scenas  de  pugilato,  e  os  quadrilheiros  invadiram  a 
platéa. 

António  Lobo  gritava  de  cima  do  banco : 

14 


210  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


—  Torpíssimo  escândalo  este,  de  matar  um  homem  á  fome 
e  de  obrigal-o  a  cantar!  Se  não  teem  dinheiro,  fechem  o  theatro. 

O  panno  desceu,  o  espectáculo  foi  suspenso,  e  António 
Lobo  e  outros  espectadores  que  tomaram  partido  por  elle, 
sahiram  do  theatro,  sob  custodia,  para  a  intendência  geral  da 
policia. 

O  conde  de  Oeiras  e  alguns  zamperinistas  influentes,  que- 
rendo evitar  que  o  escândalo  tomasse  maiores  proporções,  con- 
seguiram que  as  prisões  nâo  fossem  mantidas. 

Comtudo,  el-rei  D.  José  teve  conhecimento  do  caso  e  achou 
que  o  melhor  meio  de  contemporisar  com  todos  era  admittir  o 
tenor  Schiattini  na  sua  capella  real,  retendo-o  assim  em  Lisboa 
sem  as  agonias  da  fome  e  pondo  termo  á  violência  sem  mandar 
fechar  o  theatro. 

O  escândalo  Schiattini,  e  outros  que  o  precederam,  deram 
origem,  além  das  satyras  em  verso,  a  caricaturas,  que  circu- 
lavam de  mão  em  mão. 

Figuravam  ordinariamente  os  argentarios  da  época,  in- 
cluindo os  administradores  do  theatro,  a  esvaziar  as  algibeiras 
no  regaço  da  «prima-donna.» 

N'uma  d'essas  caricaturas  também  apparece  o  padre  Ma- 
cedo em  altitude  de  declamar  a  famosa  ode,  acompanhado  do 
seguinte  commentario : 

Macedo,  nâo  te  cances, 
Pois  os  gostos  sâo  diversos  ; 
Zamperini  estima  o  ouro 
E  nada  entende  de  versos. ' 

Ora  n'aquella  noite  em  que  António  Lobo  fez  interromper 
o  espectáculo  na  Rua  dos  Condes,  e  quando  elle  e  os  outros 
sabiam  livres  da  intendência  geral  da  policia,  foram  rondar  a 
casa  da  Zamperini  para  vér  se  teria  havido  concilio  magno 
depois  do  escândalo  do  theatro. 

E'  que  elles  lembravam-se  do  que  costumava  acontecer 
em  occasiões  solemnes  no  Olympo  dos  zamperinistas.  Mas  era 
tarde. 

A  cantora  devia  estar  já  recolhida.  Nas  janellas  não  havia 
luz;  a  porta  estava  fechada. 

Encontraram  porém,  a  pequena  distancia  do  prédio,  um 
embuçado,  que  aliás  reconheceram  pelo  vulto. 


*  «Noites  de  insomnia,»  n.°  5,  pag.  24. 


o    LOBO    DA   MADRAGÔA  211 


Depois  de  terem  passado  por  elle,  disse  António  Lobo  para 
os  outros : 

—  Pobre  Chevalier  de  Montigny!  que  na  sua  qualidade  de 
poeta  apaixonado  se  contenta  em  contemplar  o  templo  da 
deusa ! 

Os  outros  riram. 

—  Eu  sou  mais  pratico,  continuou  Lobo,  tenho  á  minha 
espera  a  Maria  da  Gloria.  E  é  já  tarde.  Amigos,  boa  noite. 


XVI 


fl  filha  do  picheleiro 


Quem  é  Maria  da  Gloria?  pergunta  o  leitor. 

Justa  curiosidade. 

E'  a  tafula  do  penteado  em  telonio,  que  vimos  no  largo  do 
Lorêto  n'aquelle  dia  em  que  se  realizaram  as  exéquias  pelo 
pai  da  Zamperini. 

António  Lobo,  aproveitando  os  olhares  e  sorrisos  com  que 
ella  o  distinguira,  seguiu-a,  mais  á  outra  sécia  que  a  acom- 
panhava. 

Viu-as  entrar  na  loja  do  confeiteiro  Canavêta,  e  entrou 
também. 

Não  posso  jurar  que  levasse  dinheiro  na  algibeira  para 
fazer  qualquer  despeza. 

Mas  o  que  sei  é  que  entrou  na  loja  e  logo  armou  parola 
com  as  duas  mulheres  e  com  o  confeiteiro. 

Este  Canavêta  era  um  cliente  certo  das  mundanas  de 
Lisboa,  a  quem  pagava  favores  com  bolos,  caricias  com  rebu- 
çados, beijos  com  empadas. 

Parece,   á  primeira  vista,  que  devia  fallir  e  acabar  pobre. 

Pois  não  aconteceu  assim.  Morreu  por  causa  das  mulheres, 
é  certo,  mas  ainda  abastado  em  capitães. 

Elias  foram  muito  ingratas  com  elle. 

Maria  da  Gloria  e  a  sua  amiga  eram  gulosas  de  confeituras 
como  todas  as  lisboetas.  E  por  isso,  depois  de  terem  estado 
plantadas  duas  boas  horas  no  largo  do  Lorêto,  correram,  n'um 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  213 


passinho  miúdo  e  pulado,  á  loja  do  Canavêta,  que  lhes  não 
recusaria  os  costumados  bolos. 

E  não  recusou. 

O  que  tem  graça  é  que  Maria  da  Gloria,  pegando  n'um 
pires  de  «suspiros»  de  Odivellas,  os  offereceu  a  António  Lobo. 

A  confeitaria,  em  casa  do  Canavêta,  era  roupa  de  francezes 
sempre  que  ali  entravam  mulheres  fáceis. 

Lobo  dizia  facécias  a  respeito  da  Zamperini  e  das  pomposas 
exéquias  do  pai. 

O  confeiteiro  ria-se  e  Maria  da  Gloria,  principalmente, 
parecia  desengonçar-se  dentro  do  corpôte  de  seda  em  convul- 
sões de  hilaridade. 

Lobo  segradava  comsigo  mesmo : 

—  Estou  com  a  minha  gente.  Esta  mulher  já  eu  não  largo. 
E  os  «suspiros»  de  Odivellas  são  magníficos. 

Quando  sahiram  da  loja,  António  Lobo  perguntou  de  re- 
lance á  tafula  onde  morava. 

—  Se  tem  muito  empenho  em  saber,  respondeu  ella,  venha 
verificar,  que  eu  vou  para  casa. 

Lobo  foi  na  pingada  das  duas  mulheres,  e  viu-as  entrar 
n'uma  escada  do  Salitre. 

Ia  a  entrar  também,  mas  obstou  a  isso  Maria  da  Gloria, 
dizendo-lhe : 

—  Eu  não  sou  livre.  Tenho  a  quem  dar  contas.  Passe 
muito  bem,  cavalheiro. 

Outro  homem  haveria  ficado  de  cara  á  banda. 
António  Lobo,  porém,  tinha  sobeja  experiência  do  mundo 
e  das  mulheres. . .  d'aquelle  género. 

—  Bem  sei!  pensou  elle.  Queres  recuar  para  avançar.  Far- 
te-hei  a  vontade. 

E  desandou  caminho  sem  se  mostrar  contrariado. 

N'essa  mesma  noite,  depois  de  ter  estado  a  beberricar  com 
Xavier  de  Mattos  no  armazém  dos  Bragas  ao  Rocio,  e  a  fazer 
as  delicias  dos  circumstantes  a  propósito  das  exéquias,  disse 
que  desejava  recolher-se  mais  cedo. 

Lobo  morava  n'esse  tempo  ao  Castello,  n'uma  casa  do 
conde  da  Calheta. 

A  renda  pagava-a  ordinariamente  em  sonetos  choramigas, 
tão  certo  é  que  elle,  como  todos  os  bohemios  do  século  XVIII, 
lisonjeou  os  fidalgos  de  quem  dependia. 

Ahi  vai  um  exemplo  succedido  com  o  próprio  conde  da 
Calheta. 

Endoideceu,  por  causa  de  certo  namoro,  o  boticário  d'esle 
titular,  e  António  Lobo,  explorando  o  acontecimento,  mandou 
ao  conde,  em  vez  de  renda  do  semestre,  este  soneto : 


214  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


Eu  apostei,  senhor,  a  qual  primeiro 
(Foi  aposta  entre  mim  e  o  boticário) 
Qual  seria  de  nós  ou  preso  ou  vario, 
Se  elle  por  ter  mulher,  se  eu  por  dinheiro. 

Nem  eu,  nem  elle  achar  melhor  parceiro 
Fôramos,  indo  ao  espaço  imaginário; 
Que  elle  perdeu  a  sciencia  de  herbanario, 
E  eu  a  fé  em  que  estou  de  ser  caseiro. 

Andou  comnosco  o  tempo  fementido  : 
Tirou-lhe  a  moça  a  elle  um  bello  moço, 
E  a  mim  deu-rae  um  semestre  já  vencido. 

Com  que,  meu  conde,  para  vós  appello : 
Que  elle  está  no  hospital  a  bom  partido. 
Mas  eu  quasi  entre  os  pobres  do  Castello. 

Despedindo-se  de  Xavier  de  Mattos,  António  Lobo,  em 
vez  de  seguir  para  casa,  atravessou  o  Rocio  e  ladeou  os  en- 
tulhos do   começado  Passeio  Publico  em  direcção  ao  Salitre. 

Viu  luz  na  janella  de  Maria  da  Gloria.  Era  dos  autos.  EUa 
devia  contar  com  um  acto  de  audácia  de  tao  destemido  bohemio, 
e  ageitava-lhe  a  occasiao. 

Lobo  comprehendeu  tudo.  Puxou  o  cordSo  da  tranquêta, 
e  subiu  a  escada. 

Sentiu  um  forte  cheiro  a  alecrim  queimado,  e  disse  com- 
sigo  mesmo: 

—  Tão  certo  é  que  a  moça  me  esperava,  que  até,  para 
disfarçar  o  mau  cheiro  da  escada,  a  mandou  defumar. 

O  leitor,  se  não  é  de  Lisboa,  não  entende  bem  este  por- 
menor. 

Nos  prédios  antigos  da  capital,  e  ainda  em  muitos  do 
nosso  tempo,  a  escada  nao  é  outra  cousa  mais  que  a  conti- 
nuação da  rua.  A  porta  pode  qualquer  pessoa,  seja  inquilino 
ou  nao,  abril-a  por  fora.  De  modo  que  o  aceio  da  escada  está 
á  disposição  do  primeiro  individuo,  que  para  satisfação  própria 
o  queira  violar.  Assim  se  justifica  a  conveniência  dos  defuma- 
doiros.  A  escada  é  de  toda  a  gente,  e  nao  é  de  ninguém. 

António  Lobo  bateu  no  segundo  patamar. 

Uma  voz  de  mulher  perguntou : 

—  Quemé? 

Lobo,  fazendo  voz  grossa,  respondeu  enconchando  as  mãos 
sobre  a  bocca  : 

—  Da  parte  do  sr.  intendente,  abra. 

—  Valha-me  Deus!  exclamou  a  voz  de  mulher.  Da  parte 
do  sr.  intendente!  Eu  abro  já. 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  215 


A  porta  abriu-se,  um  golpe  de  claridade  irrompeu  sobre  o 
patamar,  e  Lobo  entrou  fechando  logo  a  porta  sobre  si. 

Maria  da  Gloria,  com  um  candieiro  de  latão  levantado  á 
altura  do  rosto,  desatou  a  rir : 

—  Quem  elle  é!  Da  parte  do  sr.  intendente!  Ai  que  graça! 
Lobo,  simulando  muita  gravidade: 

—  Sim,  da  parte  do  sr.  intendente  o  Amor  que  faz  a  po- 
licia dos  corações;  filho  de  Vénus  e...  não  se  sabe  de  quem, 
nem  ella  mesma  o  sabia.  Do  marido  é  que  não  foi.  Eu  ainda 
conheci  o  pobre  Vulcano,  que  me  contava  todos  os  seus  des- 
gostos conjugaes. 

Maria  da  Gloria,  através  de  toda  esta  mixorofada  mytho- 
logica,  um  tanto  escura  para  ella,  percebeu  muito  bem  uma 
coisa :  e  era  que  se  tratava  de  uma  pessoa  da  sua  classe,  a 
qual  pessoa  era  Vénus. 

Riu  a  ponto  de  ter  que  poisar  o  candieiro,  cuja  luz  oscil- 
lava  na  tremura  da  mão. 

E,  encostando-se  a  uma  banca,  dizia : 

—  Eu  ouvia  contar  que  o  poeta  Lobo  era  muito  engraçado. 
Mas  tanto  não  pensei  que  fosse ! 

Assim  principiou  a  intimidade  de  António  Lobo  de  Carva- 
lho com  Maria  da  Gloria  Morato. 

Esta  mulher  teria  n'esse  tempo  trinta  e  seis  annos  de  idade. 
Era  alta,  elegante,  possuia  uma  plástica  bem  delineada,  um  co- 
lorido sadio  e  uns  olhos  cheios  de  luz.  Mas  as  feições  eram 
grosseiras,  tinham  o  excessivo  relevo  das  raças  inferiores:  bei- 
ços grossos;  nariz  que  resaltava  n'um  contorno  duro. 

A  experiência,  a  sciencia  precoce  da  vida,  suppria  n'ella 
uma  intelligencia  clara. 

Tudo  quanto  pensava  havia-o  aprendido,  decorado,  como 
se  se  tratasse  de  uma  lição  de  grammatica  :  essa  universal 
grammatica  de  todos  os  tempos,  que  ensina  a  saber  viver. 

Maria  da  Gloria  era  um  producto  vulgar  da  sociedade  das 
capitães,  onde  a  mulher  constantemente  se  vê  rodeada  de  peri- 
gos e  tentações. 

O  pai  foi  um  honrado  picheleiro,  que  vivera  trabalhando 
para  sustentar  com  decência  a  sua  familia. 

Adorava  a  filha  e  f|uereria,  por  seu  gosto,  tel-a  educado 
para  ser  uma  creatura  impeccavel,  uma  alma  para  o  céu,  uma 
santa  para  o  altar. 

A  mãe  era  uma  creatura  ladina,  sem  escrúpulos,  que  não 
conhecia  outra  felicidade  senão  a  do  dinheiro. 

Julgava-se  sempre  infeliz  unicamente  por  ser  pobre. 

—  Pudesse  eu  fazer  rica  a  minha  filha,  dizia  ella,  e  o  mais 
pouco  importava. 


216  o    LOBO    DA    MADHAGÔA 


O  marido  limitava-se  a  dizer-lhe  benignamente : 

—  Credo,  mulher!  A  verdadeira  felicidade  vem  da  alegria 
da  alma.  Não  vês  tu  que  eu  sou  alegre? 

E  ella  replicava-lhe  desdenhosamente: 

—  Tu  nSo  és  alegre,  nem  triste :  tu  és  um  pobre  diabo ! 
Esta  phrase  nunca  o  picheleiro  João  Morato,  bondoso  como 

era,  chegou  a  traduzil-a  na  sua  verdadeira  significação. 

Elle  sempre  tinha  sido,  effectivamente,  um  pobre  diabo ; 
pobre  no  sentido  de  nunca  se  ter  revoltado  como  Lúcifer. 

A'  sua  casa  ia  apenas  gente  que  lhe  inspirava  confiança  r 
uns  velhos,  uns  jarretas,  que  pareciam  inoffensivos  e  discretos. 

Entre  elles  havia  um  antigo  procurador  de  feitos,  o  Penedo, 
que  tinha,  como  já  tivera  seu  pai,  provisão  do  chanceller-mór 
para  exercer  o  cargo,  e  que,  além  da  habilitação  legal,  tinha  a 
fama,  hereditária  na  familia,  de  ser  um  rábula  habilissimo  em 
enredos  judiciaes.  Muito  velhaco,  usava  óculos  verdes,  não 
tanto  por  necessidade  como  por  disfarce.  Os  óculos  occultavam- 
Ihe  a  verdadeira  expressão  do  olhar.  Era  um  livro  sempre  fe- 
chado, que  não  deixava  vér  senão  a  encadernação.  Celibatário, 
tinha  dinheiro  herdado  do  pai  e  também  já  adquirido  por  elle. 
mesmo,  muitas  vezes  em  aííronta  das  «Ordenações.»  Toda  a 
gente  o  sabia  rico  e  avarento,  incapaz  de  fazer  bem  e  de  acudir 
a  um  indigente.  Era  um  unhas  de  fome.  Mas  para  satisfazer 
qualquer  capricho  não  duvidava  ir  ao  pé  de  meia,  tirar  de  lá 
alguns  cruzados  novos,  algumas  peças,  até  alguns  dobrões. 
Satisfeito  o  capricho,  ficava-se  a  rir  do  mundo  e  a  dizer  muito 
cynico : 

—  O  dinheiro  é  tudo.  Depois  do  dinheiro,  não  ha  nada. 
Foi  o  seu  dinheiro  e  a  conformidade  de  opiniões  a  respeito 

do  dinheiro  que  lhe  conquistaram  a  alta  consideração  que  a  mu- 
lher do  picheleiro  tinha  por  elle,  a  ponto  de  o  julgar  a  única 
pessoa  respeitável  que  frequentava  a  sua  casa. 

Aos  outros  fallava  ella  ás  vezes  com  tanto  azedume  como 
costumava  fallar  ao  marido. 

Mas  para  o  rico  procurador  tinha  sempre  boas  maneiras, 
subserviencias  servis. 

Quando  Maria  da  Gloria  andava  nos  quinze  annos,  e  o  de- 
senho da  sua  esbelta  plástica  principiava  a  definir  se  em  linhas 
ondulantes  e  graciosas,  o  procurador  levava-lhe  presentes,  fitas, 
rendas,  cortes  de  vestidos,  —  coisa  que  affligia  o  picheleiro. 

—  Vossa  Mercê  estraga  a  minha  filha  com  mimos  e  louça- 
nias.  Isso  é  para  as  damas  da  corte  e  para  as  sécias,  nanja  para 
as  mulheres  do  povo. 

A  mulher  contrapunha  com  azedume : 

—  Irra !  todos  os  homens  são  feitos  do  mesmo  barro,  e  to- 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  217 


das  as  mulheres  da  mesma  costella  do  pai  Adão.  Tu  até  chegas 
a  ser  ingrato  e  bruto. 

—  Nem  tanto  !  interrompia  hypocritamente  o  procurador. 

—  Sim,  senhor!  accentuava  ella.  Chega  a  ser  ingrato  e 
bruto  com  as  pessoas  que  lhe  obsequeiam  a  familia.  Pois  olhem 
que  nao  sSo  muitas. 

E  relanceava  um  olhar  de  lisonja  ao  procurador,  que  artei- 
ramente observava,  por  detraz  dos  seus  óculos  verdes,  estes 
frequentes  episódios  da  vida  domestica  do  picheleiro. 

A  mae  de  Maria  da  Gloria  deixava  a  filha  na  sala  com  o 
procurador,  e  ia  para  a  cosinha  ou  para  o  esconso  dos  engom- 
mados  dar  as  voltas  da  casa. 

O  pai  estava  na  loja,  trabalhando,  sempre  confiante  na  se- 
riedade da  mulher. 

O  pobre  diabo,  como  ella  lhe  chamava,  acabou  por  não  es- 
tranhar as  louçanias  da  filha,  que  se  habituara  a  vèr  cada  dia 
mais  garrida. 

Era  o  costume.  E  não  deitava  malicia  a  liberalidade  do  pro- 
curador Penedo,  porque  a  attribuia  unicamente  a  um  senti- 
mento honesto  de  amizade  desinteressada. 

—  Deixa -o  gastar,  dizia-lhe  a  mulher.  Elle  não  tem  filhos, 
e  é  muito  rico.  Podemos  até  ser  os  seus  herdeiros,  se  o  não 
afugentarmos  com  algum  disparate. 

—  Mas  se  elle  tem  amizade  á  nossa  filha,  que  case  com  ella. 

—  Fallar-lhe  n'isso,  ou  darmos-lh'o  a  entender,  era  o  mesmo 
que  descobrir  o  jogo.  Tu  não  tens  mesmo  juizo  nenhum,  nem 
vês  um  palmo  adeante  do  nariz. 

A  mulher  do  picheleiro  precipitou  assim  a  queda  da  filha, 
empurrando- a  todos  os  dias  para  um  abysmo,  d'onde  o  procu- 
rador Penedo  lhe  acenava  astuciosamente  com  novas  garridices 
e  tafularias. 

As  mães,  na  sua  obra  de  educação,  são  como  os  moços  de 
cego :  conduzem  a  bom  ou  mau  caminho. 

Uma  só  vez  na  sua  vida  assume  a  mulher  casada  a  má- 
xima responsabilidade  do  casamento:  é  quando  educa  os  filhos, 
principalmente  as  filhas. 

Se  ella  falha  nos  seus  deveres  de  fidelidade  conjugal,  pôde 
envenenar  toda  a  vida  do  marido,  despedaçar-lhe  a  honra  e  o 
coração ;  mas  se  delinquiu  nos  seus  deveres  de  educação  ma- 
ternal, o  seu  delicto  é  ainda  talvez  maior,  e  mais  repugnante, 
porque  pôde  perturbar  irremediavelmente  todo  o  futuro  da  sua 
geração. 

Crear  uma  filha  sem  a  noção  da  dignidade  feminina,  é  en- 
sinal-a  a  ser  esposa  e  mãe  impudica,  que  por  sua  vez  irá  per- 
petuando na  familia  esse  odioso  exemplo  de  degradação  moral. 


218  o    LOBO    DA    MADRAGÔA. 


Foi  a  mSe  de  Maria  da  Gloria  quem  perverteu  a  filha,  não 
a  rodeando  das  cautelas  e  cuidados  que  constituem  uma  verda- 
deira muralha  de  terna  vigilância  materna  em  torno  da  inge- 
nuidade de  uma  creança,  para  defendel-a. 

A  filha  do  picheleiro  João  Morato  entrou  na  realidade  da 
vida  por  essa  porta  travessa,  cheia  de  sombras,  que  só  dá  pas- 
sagem aos  que,  tendo  delinquido,  se  reconhecem  criminosos. 

Começou  pelo  fim.  Conheceu  a  torpeza,  antes  de  conhecer 
o  amor.  E  o  amor  é  como  todos  os  estofos  delicados  e  bellos  :  uma 
vez  manchados,  nSo  readquirem  jamais  a  sua  primitiva  pureza. 

Maria  da  Gloria  nem  amou,  nem  se  sentiu  amada.  Não 
chegou  a  conhecer  esse  prazer  espiritual  e  sublime,  que  se  des- 
embaraça de  todos  os  interesses  materiaes,  para  se  librar  n'um 
mundo  deSuz  onde  a  castidade  do  sentimento  é  como  o  clarão 
branco  de  uma  alvorada  cahindo  sobre  o  coração  humano  para 
illuminal-o. 

As  louçanias,  a  que  tomou  gosto,  serviram-lhe  como  o 
mostruário  serve  ao  mercador :  eram  um  annuncio  ambulante, 
um  chamariz  portátil. 

E  dentro  do  seu  corpo  elegante  desfolhou-se  uma  alma, 
que  envelheceu  precocemente,  como  flor  maltratada. 

O  procurador  Penedo  morreu  de  repente,  sem  testamento. 

A  Providencia  escreve  direito  por  linhas  tortas.  A  mulher 
do  picheleiro  expiou  as  suas  culpas  n'um  grande  desespero, 
que  lhe  apressou  as  rugas  da  velhice,  os  cabellos  brancos,  a 
rabugem,  os  frenesis,  os  explosivos  ódios  peculiares  a  todos  os 
desilludidos,  e  que  exerceu  mais  uma  perniciosa  suggestão  no 
espirito  de  Maria  da  Gloria. 

Por  sua  parte,  o  picheleiro  acabou  serenamente,  ignorando 
os  erros  da  filha,  a  quem  não  recusou  nunca  os  aífectos  pater- 
naes,  por  continuar  a  suppol-a  digna  d'elles. 

Esta  doce  illusão  predispol-o  para  morrer  tão  resignada- 
mente como  sempre  tinha  vivido. 

E,  comtudo,  a  má  sina  de  alguns  infelizes  persegue-os 
ainda  depois  da  morte. 

O  picheleiro,  que  sempre  tinha  sido  um  bom  e  um  dócil, 
um  homem  honesto,  que  ignorava  completamente  os  desman- 
dos da  sua  casa,  a  perda  da  sua  filha,  arrastava,  ainda  depois 
de  morto,  uma  como  grilheta  de  injusta  infâmia,  pois  que  os 
velhos  do  seu  tempo  diziam  quando  Maria  da  Gloria  passava 
na  rua : 

—  Ali  vai  a  «filha  do  picheleiro.» 

Deus  do  céu !  a  leviana  justiço  dos  homens  faz  ambicionar 
aos  desgraçados  a  hora  em  que  a  vossa  incorruptível  justiça 
comece. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  219 


Só  OS  maus  a  podem  temer. 

Mas  estou  certo  de  que  o  adormecer  na  morte,  depois  de 
uma  existência  trabalhosa,  deve  ser  uma  suave  consolação,  al- 
guma coisa  parecida  com  o  respirar  de  inebriantes  aromas  e 
com  a  audição  deliciosa  de  ineffaveis  harmonias. 

Mais  ainda.  Para  as  consciências  tranquillas  deve  haver 
na  morte  uma  casta  voluptuosidade,  o  que  quer  que  seja  de  so- 
nho divino,  de  esforço  musical  de  uma  harpa  que  vai  fazer  ou- 
vir a  sua  ultima  vibração,  para  estalar  depois. 

Maria  da  Gloria,  após  a  morte  dos  pais,  achou-se  despe- 
nhada n'uma  sociedade  de  mulheres  suspeitas,  que  tinham  de 
ser  as  suas  amigas  e  companheiras. 

Uma  d'ellas,  a  mais  intima,  era  a  Ricarda,  cuja  biographia 
se  identificava  tanto  com  a  da  filha  do  picheleiro,  que  pareciam 
decalcadas  sobre  um  «cliché»  commum. 

Quando  António  Lobo  encontrou  Maria  da  Gloria  no  largo 
do  Lorêto,  estava  ausente  de  Lisboa  o  homem  a  quem  ella 
agora  pertencia. 

Pertencer,  deve  entender-se  apenas  n'um  sentido  orçamen- 
tal, financeiro ;  estas  mulheres  nunca  pertencem  de  outro 
modo. 

Foi  amor  o  sentimento  que  António  Lobo  lhe  inspirou? 
Nao.  Já  sabemos  que  Maria  da  Gloria  nao  sentiu  nunca  o  amor, 
nem  em  si,  nem  á  roda  de  si.  Todos  os  seus  actos  determina- 
va-os  apenas  o  interesse.  Lobo  era  pobre,  um  parasita,  um  bo- 
hemio,  que  apenas  trazia  na  algibeira,  quando  trazia,  as  espór- 
tulas que  os  fidalgos  lhe  davam  ou  as  mealhas  que  elle  ás  vezes 
ganhava  compondo  algum  folheto  popular,  em  prosa  ou  verso, 
que  os  cegos  apregoavam  e  vendiam,  sem  nome  de  auctor. 

Maria  da  Gloria  tinha  ouvido  falar  vagamente  de  um  poeta 
errante  e  alegre,  de  appellido  Lobo,  que  mais  se  havia  assigna- 
lado,  ultimamente,  na  ruidosa  campanha  contra  a  Zamperini. 

Ouviu-lhe  recitar  o  soneto  «das  exéquias»,  rir  os  circum- 
stantes  e  applaudirem-n'o.  Fez  reparo  n'elle,  identificou-o  com  o 
poeta  de  escandalosa  fama,  e  lembrou-se  de  que  tinha  ali  um 
sócio  para  as  noitadas  de  folia,  um  companheiro  para  os  pra- 
zeres extravagantes  da  vida  airada. 

Lançou-lhe,  pois,  a  rede,  primeiro  com  sorrisos  e  olhares, 
depois  com  suspiros. . .  de  Odivellas. 

Por  sua  parte,  António  Lobo,  em  cujo  coração  a  imagem 
de  Therezinha  de  Villalva  era  ainda  uma  recordação  absorvente, 
que  o  impedia  de  amar  do  mesmo  modo  outra  mulher,  viu  na 
filha  do  picheleiro  as  facilidades  de  uma  aventura  que  se  encon- 
tra na  rua,  vinda  do  acaso,  e  que  se  não  promette  o  céu,  tam- 
bém não  promette  o  inferno. 


220  o    LOBO    DA    MA  DRAGO  A 


Mas  a  prova  de  que  António  Lobo  continuava  a  lembrar-se 
saudosamente  de  todos  os  factos  relacionados  com  Therezinha, 
está  n'um  soneto  que  por  esse  tempo-  compoz  contra  a  regente 
do  Recolhimento  do  Anjo,  quando  um  portuense,  que  viera  a 
Lisboa  e  o  conhecia,  lhe  dissera  que  ella  continuava  a  aboca- 
nhai-o  com  inextinguível  rancor. 

Esse  soneto  é  violento  contra  a  regente:  o  poeta  convida- a 
a  vir  reger  as  súbditas  da  «Estopa»,  designação  vulgar  de  uma 
casa  de  correcção  que  o  ministro  Francisco  Xavier  de  Men- 
donça, irmão  do  marquez  de  Pombal,  tinha  fundado  na  Ribeira 
das  Naus,  para  recolher  ahi  mulheres  de  costumes  reprehen- 
siveis. 

Lobo  deixou-se  inflammar  em  labaredas  de  redivivo  ódio 
quando  viu,  na  imaginação,  Therezinha  dentro  da  grade  do  Re- 
colhimento do  Anjo,  e  elle  próprio,  fulminado  de  surpreza,  co- 
gitando no  modo  de  restituir  aquella  delicada  alma  de  mulher 
á  vida  honesta  do  seu  lar  e  dos  seus  campos  da  aldeia  de  Vil- 
lalva. 

Maria  da  Gloria  era  agora  um  incidente  banal  na  vida  de 
António  Lobo ;  nunca  poderia  ser  uma  recordação,  e  menos 
ainda  uma  saudade. 

Todas  as  preoccupações  e  tendências  do  espirito  do  poeta 
subsistiam  inalteráveis,  sem  que  Maria  da  Gloria  as  pertur- 
basse. 

Elle  continuava  a  interessar-se  do  mesmo  modo  pelos  acon- 
tecimentos do  theatro  da  Rua  dos  Condes,  a  suciar  com  os  seus 
antigos  companheiros  de  estroinice,  a  frequentar  as  casas  dos 
fidalgos,  as  lojas  de  bebidas  e  as  festas  publicas. 

Podia  Maria  da  Gloria  acompanhal-o  em  excursões  no- 
cturnas, o  que  algumas  vezes  acontecia,  mas  nem  por  isso  a 
alma  do  poeta  estava  mais  radiante  e  completa  n  essas  occa- 
siões. 

Uma  noite,  no  theatro  da  Rua  dos  Condes,  conheceu  Antó- 
nio Lobo  um  rapaz  de  vinte  annos,  natural  de  Setúbal,  aleijado 
de  ambos  os  pés,  e  na  apparencia  débil,  comquanto  de  agradá- 
vel physionomia. 

Tinha  o  rosto  largo,  a  testa  alta  e  escampada,  as  sobran- 
celhas desenhadas  n'um  recorte  perfeito,  o  nariz  rectilíneo,  a 
bocca  desfranzida  n'um  leve  sorriso  cheio  de  bondade  e  espe- 
rança. 

Lobo  soube- o  poeta,  e  sentiu-se  attraído  para  elle  por  essa 
saliente  disparidade  que  se  notava  entre  um  espirito  elevado  e 
um  corpo  defeituoso,  disparidade  que,  aliás,  não  tem  sido  rara 
nos  poetas  de  todas  as  épocas. 

Conversaram  durante  longo  tempo. 


o    LOBO    DA    MADRAGOA 


221 


O  mancebo  setubalense,  com  aquella  fácil  confiança  que  a 
camaradagem  litteraria  inspira,  disse-lhe  que  se  chamava  Tho- 
maz  António  dos  Santos  e  Silva,  que  era  pobre  e  andava  estu- 
dando   humanidades,    na    sua 
terra,  a  expensas  do  padrinho, 
um  desembargador. 

Queria  ir  formar-se  na  fa- 
culdade de  medicina  em  Coim- 
bra. 

Viera  a  Lisboa  para  ouvir 
a  Zamperini,  de  quem  tanto  se 
fallava  áquem  e  além  Tejo,  e 
porque,  sabendo  a  lingua  ita- 
liana, nao  lhe  seria  desagradá- 
vel poder  conversar  com  artis- 
tas italianos. 

Fez  uma  confidencia,  já 
muito  intima,  a  António  Lobo : 
amava  em  Setúbal  uma  menina, 
que  desejava  desposar,  e  a 
quem  chamava  a  sua  «Lésbia». 

Era,  segundo  a  moda  do 
tempo,  o  anagramma  de  Isabel. 

Lobo,   sympathisando  cada 
vez  mais  com  o  moço  setuba- 
lense, deu-lhe  conselhos  auctorisados  na  differença  de  idade  e 
na  experiência  do  mundo. 

—  Ama  Vossa  Mercê  uma  menina  a  quem  pretende  despo- 
sar, e  quer  aproximar-se  da  Zamperini,  e  dos  outros  que  ella 
traz,  para  conversar  com  elles  em  italiano?!  Contente-se  com 
ouvil-os  cantar,  e  fuja  depressa.  Vá  esconder-se  no  seu  ninho 
de  Setúbal,  onde  o  amor  ideal  lhe  enche  de  flores  a  vida  e  de 
sonhos  a  alma.  Ha  quantos  dias  está  em  Lisboa? 

—  Ha  dois. 

—  Fuja.  Não  queira  descer  ao  inferno  ao  aterceiro  dia». 
Isto,  aqui  dentro  do  theatro,  é  tudo  uma  choldra :  e  lá  fora 
ainda  é  peior,  por  ser  maior  theatro  ainda.  A  vida  de  Lisboa 
apenas  serve  para  os  que  teem  muito  ou  para  os  que  não  teem 
nada.  Eu  cahi  de  cabeça  n'este  «maré  magnum»  de  iniquidades 
e  estou  cá,  porque  me  afundei  no  lodo,  como  todos  os  que  são 
pobres.  Vossa  Mercê... 

—  Também  sou  pobre;  pobríssimo. 

—  Qual !  Vossa  Mercê  tem  uma  menina  a  quem  ama  e  que 
o  ama,  tem  uma  alma  capaz  de  comprehender  todas  as  subli- 
midades  do  amor,  e  tem  um  bom  padrinho  que  o  estima  e  pro- 


E.etrato|.'de  Thomaz  António  dos  Santos 
e  Silva,  mais  de  vinte  annos  depois 


222  o   LOBO    DA    MADRAGÔA 


tege.  Fuja ;  vá-se  embora.  Se  ficasse  mais  tempo,  desatava  a 
fazer  versos  á  Zamperini,  para  divertir  os  outros,  como  acon- 
tece ao  toleirão  do  padre  Macedo.  Poupe-se  a  essa  ultima  de- 
gradação e  fuja.  Encha  a  sua  vida  com  a  felicidade  de  um  amor 
puro,  e  creia  que  não  pôde  encontrar  outra  maior  felicidade 
n'este  mundo. 

—  Como  os  homens  são  mal  julgados!  exclamou  Santos  e 
Silva  n'um  movimento  de  enthusiasmo.  Quem  me  havia  de 
dizer. .  . 

E  acobardou-se  de  completar  a  phrase. 

—  Bem  entendo.  Quem  lhe  havia  de  dizer  que  o  terrível 
Lobo,  lingua  viperina,  como  essa  gente  me  chama,  poderia  dar- 
Ihe  tao  prudentes  conselhos? 

—  Isso  mesmo. . . 

—  A'  cautela,  ainda  ninguém  lhe  fallou  assim  desde  que 
está  em  Lisboa,  certamente. 

—  Ninguém. 

—  E'  que  eu  sou  como  os  mestres  cirurgiões,  que  concer- 
tam as  pernas  dos  outros,  e  que  algumas  vezes  partem  as  suas. 
Olha  p'r'o  que  eu  digo...  Attenda-me  o  conselho,  e  não  me  siga 
o  exemplo. 

—  Ah  !  sr.  Lobo !  disse  Santos  e  Silva,  Vossa  Mercê  deve 
ter  amado  muito  !. . . 

—  Muito,  não.  Uma  só  vez...  já  não  sei  quando,  nem  onde. 
N'este  comenos  iam  ambos  sahindo  para  o  estreito  corre- 
dor do  theatro. 

Ahi  se  aproximou  d'elles  um  poetastro  popular,  que  disse 
ao  Lobo : 

^  —  Olha  lá !  Queres  ouvir  um  soneto  que  eu  fiz  hoje  ao  pa- 
dre* Macedo? 

—  Pois  dize. 

O  outro  recitou : 

O'  Santa  Birba,  ó  bera  aventurada 
Vida,  de  quem  não  reza,  nem  salmea  ! 
Quantos  a  levam  de  trabalhos  cheia? 
Pobres  tolos  que  não  entendem  nada. 

Tem  Macedo  peruca  penteada. 
Bom  calção,  bom  sapato,  boa  meia  ; 
Ali  acha  jantar,  acolá  a  ceia  : 
O'  Santa  Birba,  ó  vida  regalada  ! 

Não  ha  modo  de  vida  mais  jucundo: 
Armar  para  viver  o  seu  enredo, 
E  aonde  acha  tolão  ahi  dar  fundo. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  223 


Do  mundo,  nem  de  Deus  vives  sem  medo. 
Era  que  hora  e  em  que  mez  vieste  ao  mundo, 
Em  que  constellação  ?  Dize,  Macedo  I  ^ 

—  Que  tal  te  parece  o  soneto,  ó  Lobo  ? 

—  Queres  que  te  diga  com  franqueza? 

—  Quero. 

—  Ainda  é  peior  que  os  meus. 

O  poetastro  teve  um  sorriso  amarello,  para  cobrir  a  reti- 
rada, e  safou-se. 

Lobo  voltou-se  com  seriedade  para  Santos  e  Silva,  apertou- 
Ihe  nervosamente  a  mSo,  e  despediu-se,  dizendo : 

—  Faça  Vossa  Mercê  o  que  lhe  eu  digo.  Fuja  de  tudo  isto, 
e  ame  a  sua  Lésbia.  O  Tejo  é  uma  barreira  de  purificadora 
agua;  evite  transpol-a. 

—  Vou-me  embora  amanhã,  respondeu  Santos  e  Silva, 
muito  enternecido  de  gratidão. 

E  no  dia  seguinte  atravessou  o  Tejo  n'uma  falua. 
A'  hora  em  que  elle  embarcou,  os  cegos  andantes  apre- 
goavam nas  ruas : 

—  «Trágico  fim  de  Isabel  Clesse,  que  vai  amanhã  morrer 
enforcada». 

Santos  e  Silva  ouviu  o  pregão  dos  cegos,  e  disse  comsigo 
mesmo : 

—  O  Lobo  tem  razão;  isto  é  um  mar  de  lodo. 


1  Copiado  do  manuscripto  n.°  7:008  da  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa» 


XVII 


]VIézinha  eriminosa 


o  dia  seguinte,  que  era  o  ultimo  do  mez  de  março  de  1772, 
amanheceu  claro  e  lindo,  se  bem  que  o  sol  parecesse  de  pouca 
dura,  como  é  próprio  da  inconstância  atmospherica  d'aquelle 
mez,  que  o  nosso  povo  caracterisa,  dizendo: 

Março,  marcegão, 
P'la  manhã  dia  bonito, 
A'  tarde  cara  de  cão  ; 

ou  mudando  as  guardas  á  fechadura : 

Março  marcegão, 
Manhã  de  inverno. 
Tarde  de  verão. 

Pouco  depois  do  amanhecer,  notava-se  na  cidade  um  alvo- 
roço anormal,  sobretudo  para  os  lados  da  Cotovia. 

Esperava-se  de  certo  algum  acontecimento  de  sensação, 
que  parecia  impressionar  principalmente  as  mulheres,  porque 
nos  pateos,  nas  janellas  e  nas  ruas  ellas  discutiam  com  viva- 
cidade o  assumpto  que  as  preoccupava. 

Ora,  diga-se  a  verdade,  alguma  razão  tinham  para  conver- 
sar e  discutir,  porque  n'aquella  manhã  ia  a  enforcar,  na  Praça 
da  Alegria,  Isabel  Xavier  Clesse,  casada  com  o  piloto  Thomaz 
Luiz  Goilão,  da  carreira  da  índia. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  225 


O  leitor  também  nao  deixará  de  estranhar  este  aconteci- 
mento, comquanto  então  fosse  vulgar  vêr  acabar  na  forca  uma 
delinquente. 

Nao  tardou  muito  que,  n'um  mesmo  dia,  soffressem  idên- 
tica pena  duas  mulheres,  ambas  pretas,  depois  de  lhes  lerem 
sido  cortadas  as  mãos. 

E  até  ha  de  estranhar  que  a  execução  se  realizasse  na 
Praça  da  Alegria,  porque  não  se  lembrará,  á  primeira  vista, 
de  que  esta  Praça  era  então  um  logar  quasi  despovoado,  uma 
sequencia  de  hortas  solitárias. 

A  descer  do  alto  da  Cotovia,  logar  a  que  a  lenda  alfacinha 
associa  galhofeiramente  a  memoria  de  Ulysses,  as  terras,  des- 
habitadas,  prestavam-se  a  ser  theatro  de  batalha  dos  garotos 
que  jogavam  ali  a  pedrada,  hasteando,  impunemente,  cada  le- 
gião, a  bandeira  do  seu  bairro  e  cruzando  os  seus  duros  pro- 
jecteis guerreiramente. 

Estas  liberdades  tinham  sido  algum  tanto  cohibidas  depois 
da  creação  da  intendência  geral  da  policia,  mas  não  haviam 
cessado  ainda  completamente ;  e  em  todo  o  caso,  um  trecho  da 
satyra  de  José  Basilio  da  Gama  ao  padre  Macedo,  serve  para 
mostrar  quão  desertos  eram  n'aquella  época  os  sitios  da  Coto- 
via, de  alto  a  baixo  : 

Tempo  jà  houve,  em  que  a  Discórdia  fora, 
Que  nos  pequenos  corações  domina, 
Derramou  o  seu  livido  veneno 
Nos  peitos  dos  Bregeiros,  e  Rapazes. 
Viram-se  então  de  Alfama  e  da  Pampulha 
Tremular  as  bandeiras,  e  os  Exércitos 
Marcharem  com  furor  á  civil  guerra, 
Que  os  campos  infestou  da  Cotovia. 

No  alto  ficavam  as  ruinas  da  Patriarchal  queimada  *,  a  casa 
e  terras  do  Noviciado,  alguns  casaes  e  prédios  habitados  por 
famílias  decentes,  mas  desde  as  Taipas,  correndo  sobre  o  de- 
clivio  da  Cotovia,  agrupavam-se  os  cardenhos  de  mulheres  de 
má  nota,  como  também  acontecia,  mais  ao  occidente,  no  bairro 
da  Madragôa. 

Por  este  motivo  lhe  chamou  Tolentino  a  «suja  Cotovia». 

Depois,  descendo  a  vertente,  alastravam-se  as  hortas  soli- 


*  O  incendiário  foi  Alexandre  Franco  Vicente,  que  commetteu  o  delicto 
n'uma  das  noites  antecedentes  á  véspera  do  Espirito  Santo,  em  1769. 

Frei  Cláudio  da  Conceição,  no  «Gabinete  Histórico»,  (vol.  xvu,  pag.  95), 
diz  que  elle  puzera  fogo  «á  Real  Egreja  Parochial,  quando  existia  no  sitio  da 
Cotovia». 

15 


226  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


tarias,  que  se  estendiam  antigamente  por  todo  esse  «valle  ver- 
de», que  é  hoje  a  Avenida.  A  egreja  de  S.  José  fora  no  sé- 
culo XVI  conhecida  por  «S.  José  d'entre  as  hortas»  e  a  rua  do 
Príncipe  chamou-se  primeiro  rua  Nova  das  Hortas.  Tudo  cam- 
po, por  aU  fora :  hortas  e  quintas. 

A  forca  principiou  a  funccionar,  depois  do  terremoto,  na 
falda  da  Cotovia  e,  ao  occidente,  em  Buenos  Aires,  por  serem 
logares  affastados  e  ermos. 

Agora,  em  1772,  já  as  antigas  hortas  tinham  começado  a 
ser  retalhadas  pelos  fundamentos  do  Passeio  Publico,  cujas 
obras  começaram  em  1764*  e  duraram  muitos  annos;  mas 
ainda  todo  aquelle  rincão  era  sitio  quasi  despovoado,  meio  so- 
lidão, meio  subúrbio. 

Os  entulhos  das  obras  do  Passeio,  e  das  ruinas  do  terre- 
moto, que  ali  eram  despejados,  tornavam  escabroso  o  terreno 
do  que  fora  o  antigo  Valverde,  dificultando  o  transito. 

Dado  este  esclarecimento,  que  justifica  a  escolha  do  logar 
para  uma  execução,  resta  dizer  ao  leitor  o  nome  da  criminosa 
e  qual  a  natureza  do  seu  crime. 

Isabel  Xavier  Clesse  era  accusada  de  haver  attentado  con- 
tra a  vida  do  marido  por  modo  tão  extraordinário,  que  deno- 
tava uma  Índole  e  phantasia  perversas. 

Sobre  os  precedentes  da  criminosa  e  a  historia  do  crime 
poderá  o  leitor  informar-se  devidamente  se,  reportando-se 
áquella  manhã  de  março,  quizer  ouvir  os  commentarios  de  al- 
gumas senhoras  visinhas. 

Maria  da  Gloria  Morato  logo  pela  manhã  veiu  para  a  ja- 
nella,  ainda  em  chambre  caseiro,  e  sem  telonio  na  cabeça,  dis- 
posta a  ouvir  a  fallácia  da  visinhança,  e  a  tomar  parte  n'ella. 

No  Salitre,  talvez  pela  visinhança  das  hortas  e  por  ser  lo- 
cal mal  povoado  ainda,  havia  alguns  páteos  e  soalheiros  habi- 
tados por  gente  pobre,  com  quem  a  filha  do  picheleiro  costu- 
mava repartir  os  sobejos  da  sua  cosinha. 

E'  curioso  o  facto,  mas  verdadeiro,  das  mulheres  honestas 
do  povo  confraternisarem,  por  necessidade,  com  as  mulheres 
de  maus  costumes,  que,  soccorrendo-as,  gostam  de  ser  respei- 
tadas por  ellas. 

Isto  poderá  explicar-se,  talvez,  pela  sede  de  consideração 
e  respeito  que  punge  o  espirito  de  quem  perdeu  o  direito  ás  ho- 
menagens da  opinião  publica. 


^  «Foi  também  n'e8le  enno  (1764)  que  se  estabeleceu  um  Passeio  publico 
sobre  umas  hortas  da  cera,  aonde  se  deitavam  os  entulhos  das  ruinas  da  ci- 
dade. «Gabinete  Histórico»,  vol.  xvi,  pag.  133.» 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  227 


Maria  da  Gloria  gostava  de  ouvir  dizer  ás  mulheres  pobres 
da  visinhança,  quando  entrava  ou  sahia  de  casa: 

—  Adeus,  menina. 

«Menina»  era  um  doce  tratamento  que  só  tinha  ouvido 
em  casa  de  seu  pae,  e  que  para  ella  ficara  perdido,  como  agu- 
lha em  palheiro,  entre  os  montões  de  fitas  e  rendas  com  que  a 
havia  seduzido  o  procurador  Penedo. 

Fácil  foi,  portanto,  a  Maria  da  Gloria  intrometter-se  no 
fallatorio  das  visinhas  sobre  o  grande  assumpto  do  dia  :  a  exe- 
cução de  Isabel  Clesse. 

—  Nao  fosse  ella  tola  —  dizia  a  mulher  de  um  calafate  da 
Ribeira  das  Naus  —  que  estava  bem  tratada  na  sua  casa,  e  o 
marido  era  um  mSos  rotas  para  ella. 

—  O  que  a  perdeu,  acrescentou  outra  mulher,  foi  o  palmi- 
nho  da  cara  e  a  casquilhice. 

—  Não  que  a  casquilhice,  ponderava  uma  terceira  interlo- 
cutora, tem  deitado  a  perder  muita  mulher. 

—  Isso  é  verdade,  visinhas,  disse  da  sua  janella  Maria  da 
Gloria.  Quantas  raparigas  viviam  honestas  em  casa  de  seus 
pais,  até  que  se  deixaram  perder  pelo  engodo  das  louçaniasl 

Fallava  de  si  mesma,  dizendo  isto. 

—  Pois  está  bem  de  vêr  que  sim;  é  uma  perdição. 

—  Mas  o  marido  também  teve  culpa:  não  lhe  desse  tanto. 

—  Que  ella,  diga-se  a  verdade,  aguentou-se  muito  tempo 
sem  deixar  escorregar  o  pé.  Mas  por  fim. . . 

—  Por  fim  era  já  um  escândalo  n'aquella  calçada  da  Es- 
trella.  O  tal  peralvilho  porta-bandeira  não  lhe  deixava  a  rua, 
ora  para  cima,  ora  para  baixo,  elle  todo  sorrisos,  elle  todo  olha- 
res. O  diabo  que  o  carregue ! 

—  E  o  marido  não  via  nada? 

—  O  marido  andava  no  mar. 

—  E  quando  veiu? 

—  Coitado  I  E'  o  costume.  Depositava  confiança  na  mulher, 
e  os  visinhos  tinham  medo  de  lhe  dizer  alguma  coisa.  O  marido 
parece  mesmo  um  banazola !  A  menina  conhece-o? 

A  «menina»  era  Maria  da  Gloria,  que  respondeu : 

—  Não  conheço.  Agora  o  Januário  Rebello,  porta-bandeira 
do  regimento  do  conde  do  Prado,  é  que  eu  vi  algumas  vezes. 

—  Pois  é  preciso  que  o  marido  seja  um  grande  tanso  para 
ter  acreditado  que  padecia  de  uma  doença  de  que  se  não  quei- 
xava. 

—  A  doença  era. . .  um  quê,  menina? 

—  Não  sei  ao  certo;  uma  doença  das  entranhas. 

—  Um  polvo...  não  é? 
Riram-se  todas  as  mulheres  : 


228  o    LOBO    DA   MADRAGÔA 


—  Um  polvo  nas  tripas!  Sô  se  o  comeu  inteiro  I  Ah! 
ah  I  ah ! 

—  Agora!  agora!  apostrophou  Maria  da  Gloria.  Um  volvo 
é  que  é. 

—  Isso. 

—  Tal  e  qual ! 

—  Um  volvo. 

—  Mas  acreditar  tamanha  asneira  ! 

—  Nao,  que  a  mulher  tinha  preparado  bem  a  roupa  da 
cama ;  elle  viu  e  acreditou. 

Nova  risada  das  mulheres. 

—  Credo  !  que  porcaria !  exclamou  Maria  da  Gloria,  que  es- 
tava habituada  a  perfumar  as  suas  roupas  com  a  melhor  «Agua 
de  Colónia»  então  conhecida,  a  de  Paulo  Fenismi,  italiano  de 
nação. 

—  Tem  razão,  menina  ! 

—  E  vai  o  tanso  do  marido  e  soffre  que  ella  lhe  dê  a  me- 
zinha de  agua  forte ! 

—  Não  que  elle  não  sabia  que  era  agua-forte. 

—  Como  ella  pôde  conseguir  que  lh'a  vendessem  na  botica,, 
é  que  eu  não  sei ! 

—  Foi  em  duas  boticas  differentes,  pequenas  porções  em 
cada.  O  criado  que  as  foi  comprar  disse  que  era  para  curar  os 
callos. 

—  E  tinha  criado!  Vivia  toda  liró ! 

—  Pois  não  vos  lembrais,  gentes  1  Os  folhetos  dos  cegos 
contaram  tudo  o  anno  passado,  quando  foi  o  crime. 

—  Sim...  sim.  Tenho  agora  idéa. 

—  E  também  ella  mandou  comprar  uma  untura  venenosa, 
com  que  esfregou  a  pelle  do  marido. 

—  Ainda  por  cima!  Atirou-lhe  toda  â  metralha! 

—  Como  elle  escapou  é  que  parece  milagre! 

—  E'  um  brutamontes  muito  rijo  dos  cascos. 

—  A  Providencia  não  dorme...  Vejam  lá  como  tudo  se 
descobriu ! 

—  isso  sim!  Se  ella  não  tivesse  fugido  e  levado  comsigo 
todo  o  oiro  e  toda  a  prata,  talvez  o  marido  não  tivesse  descon- 
fiado de  nada. 

—  Era  capaz  d'Jsso,  o  grande  pataul 

—  Segue-se  que  a  Isabelinha  cahiu  nas  mãos  da  justiça. 
Ninguém  as  faça  que  as  não  pague. 

—  Querer  tirar  a  vida  ao  nosso  semelhante  é  um  peccado 
que  brada  aos  céus ! 

—  Mas  os  ruins  fígados  não  poupam  ninguém.  Olhem  esse 
atrevido  saloio  que  o  anno  passado  atirou  com  duas  pedras  ao 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  229 


sr.  marquez  de  Pombal  na  hora  do  meio  dial  Se  lhe  acerta  com 
alguma,  matava-o ! 

—  Isso  era  um  doido!  Fazer  mal  a  um  senhor  d'aquelles, 
que  tem  feito  tanto  bem  á  cidade  e  aos  pobres !  Desde  que  elle 
governa  a  nação,  não  tem  faltado  trabalho  aos  nossos  homens. 

—  Quem  governa  a  nação  é  el-rei,  disse  uma  serigaita,  do 
lado. 

—  Pois  é. . .  meu  brinco.  Mas  el-rei  dá-lhe  todos  os  pode- 
res, e  faz  muito  bem.  Se  os  fidalgos  se  queixam,  nós  é  que  não. 
Pois  não  é  assim? 

—  Está  bem  de  vêr  que  é. 

Como  a  conversação  ia  afrouxando,  Maria  da  Gloria  des- 
pediu-se  das  visinhas : 

—  São  horas.  Vou-me  pentear  para  ir  vôr  a  execução. 

—  Ah  !  a  menina  vai?  Também  nós, 

—  Eu  não,  que  não  tenho  animo,  observou  a  serigaita  per- 
lequitete. 

—  Pois  olha  que  se  ha  de  fazer  sem  ti ;  sem  a  Isabel  Clesse 
é  que  não. 

—  Queres  vêr  que  é  uma  carta  de  convite  para  não  falta- 
res !  disse  ironicamente  uma  das  mulheres  á  pequenota  espe- 
vitada. 

E  indicava  um  rapaz,  que  parecia  mariola  da  Ribeira,  o 
qual  trazia  uma  carta  na  mão. 

—  Sabem  dizer-me,  perguntou  elle,  onde  mora  aqui  Maria 
da  Gloria  Morato? 

—  E'  acolá,  responderam  duas  ou  trez  vozes. 

O  portador  entrou  na  escada  de  Maria  da  Gloria,  e  pouco 
se  demorou. 

Mas,  emquanto  isto  acontecia,  dizia  entre  si  um  grupo  de 
mulheres : 

—  E'  carta  que  vem  (dá  de  cima». 

—  Parece.  O  rapaz  que  a  trouxe  tem  ar  de  ser  ganhão  da 
Ribeira. 

—  E'  que  chegou  algum  hiate  da  carreira. 

António  Lobo  tinha  acordado  de  mau  humor  por  causa  do 
fallatorio  das  mulheres  e,  deitando  os  olhos  para  o  sobrescri- 
pto,  disse  a  Maria  da  Gloria  que  desejava  vêr  aquella  carta. 

Ella  respondeu-lhe  frenética  : 

—  Lobo !  Lobo !  Não  me  faças  uma  scena  de  ciúme.  Tu  bem 
sabes  a  minha  vida. 

—  E'  que  eu  já  vi  algures  essa  lettra. 
Maria  da  Gloria,  tomando  animo,  replicou : 

—  Isso  é  que  não  pôde  ser.  Aííianço-te  que  não. 

—  Hum. . . 


230  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


—  Peço-te  que  nao  tenhas  ciúmes,  Lobo. 

—  Eu  o  que  tenho  é  curiosidade. 

—  Já  vejo  que  me  nao  tens  amor  nenhum! 

—  Agora  és  tu  que  queres  fazer  scena.  Deixa-te  d'isso,  que 
perdes  o  tempo.  Sabes  o  que  eu  te  peço?. .  . 

—  Queé? 

—  Que  nunca  penses  em  dar-me  uma  mezinha  de  agua- 
forte. 

—  Credo  f 

—  Porque  eu  não  consentia,  podes  crer. 

E,  ironicamente,  principiou  a  cantarolar,  emquanto  Maria 
da  Gloria  lia  a  carta : 

Quem  tem  pinheiros  tem  pinhas, 
Quem  tem  pinhas  tem  pinhões; 
Quem  tem  amores  tem  zelos, 
Quem  tem  zelos  tem  paixões. 

E,  lembrando- se  de  que  tinha  ouvido  esta  quadra  a  There- 
zinha  na  Palmeira,  íicou  mais  azedo  e  aborrecido. 

Tratou  de  se  apressar  para  sahir. 

Tendo  lido  a  carta,  Maria  da  Gloria  perguntou-lhe  algum 
tanto  preoccupada : 

—  Já  vaes  sair,  sem  almoçar? 

—  NSo  preciso.  Almoço  no  Talaveira,  que  estou  hoje  endi- 
nheirado. Fiz  versos  para  os  cegos.  Os  homens  tiram  sempre 
algum  proveito  da  infidelidade  das  mulheres. 

E,  morto  por  se  vêr  na  rua,  desceu  cantando : 

Quem  tem  pinheiros  tem  pinhas, 
Quem  tem  pinhas  tem  pinhões. 

Maria  da  Gloria  ainda  veiu  ao  patamar  para  dizer : 

—  Eu  sempre  vou  vêr  a  execução. 
E  Lobo  respondeu  da  porta  da  rua  : 

—  Que  te  faça  bom  proveito. 

Horas  depois  todo  o  sitio  da  Cotovia  estava  em  festa,  como 
se  se  tratasse  de  algum  acontecimento  alegre. 

Em  roda  da  forca,  e  por  detraz  do  circulo  dos  soldados  e 
quadrilheiros,  agglomerava-se  uma  grande  multidão,  ávida  de 
sensações  empolgantes. 

As  mulheres  constituíam  a  maioria  dos  espectadores. 

Uma  confusa  resonancia  parecia  zumbir  no  ar  como  um 
trovão  secco  e  longínquo  da  primavera. 

Era  o  conjuncto  formidável  dos  pregões,  dos  gritos,  das 
pragas,  das  apostrophes. 


o    LOBO    DA    MADRAGOA 


281 


Ouvi&m-se  guinchos  de  raparigas,  que  se  sentiam  belisca- 
das na  polpa  do  braço ;  choros  de  creanças  entaladas  no  aper- 


A  execução  de  Isabel  Clesso 

tao ;  lastimas  de  mulheres  que  davam  pela  falta  de  algum  ob- 
jecto de  ouro,  porque  os  gatunos  costumavam  exercitar  a  sua 
arte  de  rapinancia  durante  as  execuções. 

Resoavam  os  pregões  das  pretas  marisqueiras,  dos  vende- 
dores de  agua-ardente  e  de  agua  fresca,  de  ameixas  seccas,  de 
cambos  de  pinhões,  de  cúscus,  de  amêndoas  doces  e  outras  gu- 
loseimas populares;  mas  sobrelevava  a  todos  os  clamores  a 


232  o    LOBO    DA    MADRAGÔA. 


gritaria  dos  cegos  andantes,  que  circulavam  por  entre  a  muiti- 
dSo  apregoando  muitos  folhetos  allusivos  ao  crime  e  execugao 
de  Isabel  Clesse. 

Em  geral  os  poetas  anonymos,  que  cultivavam  a  litteratura 
das  ruas,  exploravam  o  sentimento  publico  falando  ao  coração 
do  povo;  por  isso  Isabel  Clesse  foi  por  elles  pranteada  a  ponto 
de  parecer  que  se  tratava  do  injusto  holocausto  de  uma  victima 
innocente. 

Um  dos  vates  que  tinham  por  lucrativa  tuba  a  voz  dos  ce- 
gos, lastimou  que  a  radiante  formosura  de  Isabel  Clesse  fosse 
estrangular-se  no  laço  de  cânhamo  sobre  o  estrado  da  forca  : 

O'  mísera  Isabel  !  Quem  te  dissera 
Que  na  flor  dos  teus  annos  haveria, 
Quem  tirasse  da  verde  primavera 
A  graça  que  alegrava  o  mesmo  dia  ! 
Quem  pensara  que  a  luz  que  reverbera, 
Tão  breve,  tão  sem  tempo  acabaria  1 
Que  as  flores  tu  verias  fenecidas, 
E  as  estrellas  do  rosto  escurecidas  ! 
Esses  louros  cabellos  que  de  raios 
Poderiam  servir  ao  sol  brilhante 
Descompostos  os  vejo  com  ensaios 
De  servirem  de  crepe  ao  teu  semblante  ! 
Essa  côr  purpurina  com  desmaios 
Bem  mostra  que  a  belleza  é  inconstante. 
Pois  aqui  de  manhã  com  lumes  arde, 
Em  cinzas  se  resolve  pela  tarde. 

Outro  poeta  faz  insipidamente  um  jogo  de  palavras  com  a 
profissão  do  marido  e  o  appellido  do  amante : 

Se  buscavas  a  terra  desejada, 
Para  que  com  fatal  temeridade 
Desprezas  do  «Piloto»  a  sociedade, 
Para  dares  á  costa  destroçada  ? 
Arvoraste  «Bandeira»  sem  cautela, 
Soccorros  esperando  ;  mas  foi  erro 
Pois  sem  leme  te  vês,  desfeita  a  vela. 

Este  poeta  impa  de  moralidade :  segundo  elle,  no  que  Isa- 
bel Clesse  fez  mal,  foi  em  arvorar  Bandeira  «sem  cautela». 

Nenhuma  lyra  tem  pena  do  marido. 

Pelo  contrario,  um  poeta,  não  contente  com  a  mezinha  cor- 
rosiva, ainda  por  cima  o  affronta  imaginando  Isabel  a  despe- 
dir-se  de  Thomaz  Goilão  enternecida : 

Adeus,  «querido  esposo  !»  adeus,  consorte, 
Vou  a  cumprir  meu  fado  e  teu  desejo. 
Vou  coberta  de  horror,  cheia  de  pejo  ; 
Caminho  com  o  algoz  já  para  a  morte. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  233 


Outro  poeta  nao  só  affronta  o  marido ;  vae  mais  longe  ou 
mais  alto,  affronta  também  Deus  : 

Já  soluça^  suspira,  geme  e  chora  ; 
Mas  emquanto  o  verdugo  o  laço  tece 
Para  o  esposo  perdão  ao  céu  implora. 

Eis  seus  olhos  se  fecham . . .  emmudece  ; 
Sua  alma  sobe  a  vêr  o  Deus  que  adora, 
Seu  corpo  a  sepullar-se  á  terra  desce. 

Por  um  triz  que  os  poetas,  para  o  effeito  de  soffrer  a  pena 
ultima,  não  substituíam  Isabel  Clesse  pelo  marido. 

E  o  caso  é  que  conseguiram  impressionar  o  coração  das 
mulheres,  ainda  as  que  horas  antes  se  mostravam  julgadoras 
severas :  lendo  ou  ouvindo  lêr  os  versos,  todas  ellas  choravam 
como  cascatas,  no  que,  segundo  a  versão  de  outro  vate,  imita- 
vam n'essa  hora  Vénus  e  Cupido : 

Chora  Vénus,  lamenta-se  Cupido 
De  assim  vêr  ultrajada  a  formosura 
Com  tão  fúnebre  horror,  fim  desluzido. 

Só  António  Lobo  é  que,  na  maior  parte  dos  sonetos  que 
então  produziu,  foi  menos  sentimental. 

O  seu  génio  folgazão  não  se  compadecia  com  taes  piegui- 
ces lyricas,  e  o  caso  é  que  logrou  arrancar  alguns  sorrisos  ás 
lúgubres  visagens  das  mulheres  sensibilisadas. 

N'um  dos  sonetos,  escriptos  na  linguagem  solta  que  era  o 
seu  bordão  habitual,  diz  elle,  referindo-se  a  Isabel  Clesse  e  á 

mezinha: 

Se  a  mulher  por  seu  gosto  fosse  frade, 
E  de  S.  João  de  Deus  parca  enfermeira, 
Com  esta  vocação  de  cristeleira, 
Mataria  os  irmãos  por  caridade  ! 

—  Isto  com  certeza  é  do  Lobo,  dizia  um  dos  espectadores 
mais  entendido  em  conhecer  poetas  pelo  estylo. 

—  D'elle  ou  do  Tolentino,  replicava  outro,  que  também  se 
prezava  de  familiar  com  os  poetas  em  voga. 

—  Sim;  eu  creio  que  será  do  Lobo.  Mas  de  um  d'elles  ha 
de  ser  por  força. 

Nicolau  Tolentino  de  Almeida  regia  a  esse  tempo  uma  ca- 
deira de  rhetorica,  profissão  que  elle  deixou  assignalada,  com 
grandes  lamurias,  nos  seus  escriptos. 

Nascido  em  Lisboa,  fora  a  Coimbra  para  seguir  o  curso 
de  leis. 


234  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Elle  mesmo  perpetuou  a  memoria  da  sua  chegada  a  Coim- 
bra e  dos  sete  annos  que  por  lá  esbanjou  alegremente  : 

Mas  já  vejo  a  branca  fonte 
Da  alta  Coimbra,  fundada 
Nos  hombros  de  erguido  monte  ; 
Já  sobre  a  areia  dourada 
Vejo  ao  longe  a  antiga  Ponte. 

E,  depois  de  descrever  as  «troças»  que  soífreu  como  no- 
vato, conta-nos  as  torturas  que  também  passou,  decerto  maio- 
res ainda,  pela  falta  de  recursos  pecuniários : 

Sete  annos  de  verde  idade, 
Fui  mettendo  a  destra  mão 
Em  multas  d'esta  entidade  : 
Chamou-se  boa  feição, 
Mas  era  necessidade. 

Achava- me  sempre  o  dia 
No  tecto  os  olhos  pregados  ; 
A  sagaz  Economia, 
Revoando  nos  telhados, 
Ao  conselho  presidia. 

Gemer  em  segredo  pude  ; 
Que  o  bom  Pai,  falto  de  meios, 
Quanto  cheio  de  virtude, 
Só  mandava  nos  correios 
Novas  da  sua  saúde. 

Ahi  por  1765  voltou  definitivamente  a  Lisboa,  sem  haver 
tomado  outro  «grau»  além  d'aquelle  que,  parece,  os  «veteranos» 
lhe  deram  em  Coimbra  por  mais  de  uma  vez. 

Tendo  a  bossa  de  pretendente  adulador,  solicitou,  como  elle 
sabia  fazel-o,  uma  cadeira  de  rhetorica,  e  o  caso  é  que  a  ob- 
teve. 

Tao  certo  é  o  provérbio :  «Quem  porfia  mata  caça». 

Mas,  admittido  ao  magistério,  tanto  deplorava  a  sorte  de 
aturar  rapazes  e  de  viver  jungido  á  férula  de  pedagogo,  que  não 
havia  fidalgo  illustre  e  poderoso  em  cujas  mãos  não  deposi- 
tasse memoriaes  para  obter  melhor  coUocação  em  alguma  Se- 
cretaria d'Estado. 

N'esta  pedinchiche  metrificada  andava  Nicolau  Tolentino, 
aos  trinta  e  dois  annos  de  idade,  na  época  em  que  Isabel  Clesse 
foi  executada  na  Praça  da  Alegria. 

Os  outros  poetas  não  gostavam  d'elle,  porque  os  excedia 
na  graça,  na  correcção,  na  espontaneidade  e  até  nas  lastimas  e 
lisonjas  que  espalhava  pelos  salões  das  casas  nobres. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  235 


Achavam  que  Tolentino  rebaixava  a  dignidade  das  musas, 
aviltando  a  classe,  e  ao  mesmo  passo  se  arrogava  presumpções 
de  melhor  convivência. 

Mas  no  fundo  d'estas  frequentes  accusações  havia  rivali- 
dade litteraria. 

Os  outros  julgavam- se  moralmente  superiores  a  elle,  por 
que  pedinchavam  menos,  e  porque  não  guindavam  tão  alto  as 
suas  ambições.  Intellectualmente,  nao  o  poupavam,  porque  a 
consciência  lhes  dizia  que  lhe  eram  subalternos. 

António  Lobo  teve  para  com  Tolentino  a  mesma  incons- 
tância de  humor  que  para  outros  poetas,  incluindo,  como  sabe- 
mos, o  seu  amigo  João  Xavier  de  Mattos. 

Algumas  vezes  tratou  mal  Tolentino,  como  quando  lhe 
disse  n'um  soneto  : 

Se  velhas  phrases  de  vidrilhos  tocas, 
Não  honras  os  heroes,  que  tu  desfructas ; 
A  quem  offereces,  por  canções  argutas, 
De  pobres  riraas  chochas  massarocas. 

Depois,  parece  que  as  relações  entre  Lobo  e  Tolentino  me- 
lhoraram algum  tanto,  talvez  por  intervenção  de  Mattos. 
Temos  d'isso  uma  prova. 
Mattos  dissera  n'uma  das  suas  canções : 

A  saúde  me  falta,  e  não  me  altero  ; 
Soffro  a  murmuração,  soffro  a  violência, 
Somente  o  gosto  de  morrer  espero, 
Abraçado  co'a  minha  paciência. 

Lobo,  sempre  galhofeiro  e  mordaz,  prolongou  a  triste  phan- 
tasia  de  Mattos,  suppondo-o  já  morto  e  embrulhado  n*uma  «es- 
teira de  tábua»,  sem  caldeira  e  sem  cruz. 

Apollo,  ouvindo  o  pranto  dos  brejeiros,  que  lastimam  a 
perda  do  consócio,  pergunta  quem  é  o  misero  defunto. 

Quem  será  (diz  Apollo)  ?  Oh  dur'i  ausência  I 
—  E'  João  Xavier  que  morreu  hoje, 
«Abraçado  co'a  sua  paciência». 

Tolentino,  fallando  da  miséria  em  que  morreu  Camões,  re- 
fere-se  á  canção  de  Mattos  e  ao  soneto  de  Lobo,  dizendo  : 

Só  as  musas  o  choraram 
E  o  enterro  devia  ser 
Como  hoje  nos  pinta  o  Lobo 
O  de  João  Xavier. 


236  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Esta  referencia  a  António  Lobo  denota  amigável  trato,  se  é 
que  não  foi  uma  indulgente  superioridade  de  Tolentino. 

Mas  a  execução  de  Isabel  Cresse  deve  ter  terminado. 

A  multidão,  que  assistiu  a  esse  fúnebre  espectáculo,  es- 
praia-se  agora  frivolamente  pelas  hortas  e  pelas  quintas  mais 
próximas,  taes  como  a  do  Cordoeiro,  a  de  Lazaro  Verde  e  as 
Terras  do  Guarda-Mór. 

O  lisboeta  aproveita  assim  o  epilogo  de  um  crime  celebre 
para  gosar  um  dia  alegre. 

Ranchos  de  patuscos,  sentados  sobre  a  relva,  estendem  a 
toalha  no  chão  e  preparam-se  para  comer  a  merenda,  que  man- 
daram vir  de  casa  ou  da  taberna. 

Ha  uma  promiscuidade  suspeita  de  homens  e  mulheres, 
por  entre  as  arvores,  nos  recantos  sombrios  das  quintas. 

Os  cegos  andantes  offerecem  ainda  os  folhetos  que  lasti- 
mam a  morte  de  Isabel  Glesse,  mas  quem  se  lembra  já  d'ella? 

Trata-se  apenas  de  comer  e  foliar. 

Ninguém  compra  agora  os  folhetos,  e  os  cegos  o  mais  que 
podem  conseguir  é  que  lhes  dêem  os  sobejos  das  merendas  por 
esmola. 

O  Thomaz  dos  Pós,  um  pobre  donato  muito  popular,  de 
habito  franciscano  e  barbas  compridas,  vai  arrastando  por  en- 
tre as  quintas  e  as  hortas  a  sua  monomania  de  missionário. 

—  Irmãos,  gritava  elle  deante  de  cada  grupo,  lembrai-vos 
de  que  haveis  de  ser  pó  como  aquella  que  ha  pouco  vistes  es- 
trebuxar  na  forca.  Porque  tudo  é  pó,  somente  pó,  nada  mais 
que  pó. 

E  os  patuscos  enxotavam-n'o  berrando : 

—  Vai-te  d'aqui,  Thomaz,  com  a  pregação  dos  teus  pós. 
Deixa-nos  em  paz,  donato  maluco. 

Os  grupos  repelliam  assim  o  pobre  maniaco,  e  a  justiça 
ainda  foi  depois  mais  severa  com  elle,  porque  o  mandou  para 
as  galés  pelo  crime  de  pregar. 

A  isto  allude  Tolentino  quando  diz: 

Thomaz  dos  Pós  fez  missões  ; 
Ajuntou  gente  infinita  : 
Mas  inda  em  negros  vergões 
Traz  nos  artelhos  escripta 
A  paga  dos  seus  sermões. 

Vê-se  que  a  psychiatria  estava  muito  atrazada  no  sé- 
culo XVIII. 

De  Maria  da  Gloria  sei  que  assistiu  á  execução,  parecendo 
mais  preoccupada  com  algum  pensamento  que  lhe  dava  cuidado, 
do  que  com  a  forca,  Isabel  Clesse  e  a  multidão. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  237 


Nao  a  vejo  em  nenhum  dos  grupos  que  merendam  alegre- 
mente. 

Suspeito  que,  sempre  preoccupada,  correu  para  casa  e  que 
logo  que  entrou  começou  a  querer  escrever  um  bilhete.  Rasgou 
nervosamente  uma  folha  de  papel;  depois  inulilisou  outra; 
ainda  despedaçou  uma  terceira,  até  que  pareceu  encontrar  uma 
formula  que  procurava.  E  então  escreveu  mais  tranquilla  o  bi- 
lhete. Veiu  depois  para  a  janella,  á  espera  de  alguma  das  visi- 
nhas  que  chegasse  primeiro. 

Mal  chegou  uma,  chamou-a  á  escada,  e  disse-lhe : 

—  Eu  queria  que  me  fizesse  o  favor  de  ir  procurar  o  sr.  Lobo 
e  de  lhe  entregar  este  bilhete. 

—  Sim,  menina. 

—  Sabe  onde  pôde  encontral-o?  Ali  pelo  Rocio;  ha  de  an- 
dar por  ali.  Mas  não  deixe  de  lhe  entregar  isto. 

—  Sim,  menina.  Eu  sei  pouco  mais  ou  menos  onde  elle 
costuma  parar.  Ai  meu  Deus  !  que  pena  me  fez  a  pobre  Isabel  1 

—  Também  a  mim.  Mas  veja  se  o  encontra. 

—  Vou  já,  n'um  pulo.  A  pobre  rapariga,  tao  bonita,  que  até 
lhe  ficava  bem  a  alva  I 

—  E'  verdade.  Ha  de  encontral-o  ali  pelo  Rocio. 

—  Sim,  menina,  vou  n'um  pé  e  venho  no  outro. 

Agora,  os  poucos  que  ainda  pensavam  em  Isabel  Clesse,  já 
tinham  pena  d'ella,  como  os  poetas;  incluindo  as  próprias  mu- 
lheres dos  páteos  do  Salitre,  que  antes  da  execução  a  julgavam 
com  severidade. 

António  Lobo  recebeu  no  Rocio  o  bilhete,  leu-o  e  sorriu-se. 

—  Tem  resposta?  perguntou  a  portadora. 

—  Não,  respondeu  Lobo.  Diga  lá  que  já  o  esperava. 

Um  bohemio  com  quem  Lobo  estava  n'essa  occasiâo,  per- 
guntou-lhe : 

—  E'  uma  conquista,  seu  maroto? 

—  Não,  disse  elle  tranquillamente.  E'  uma  desconquista. 
O  bilhete  que  Lobo  recebeu  e  guardou  na  algibeira,  dizia: 
«Lobo,  conheci  hoje  que  me  não  tinhas  amor  nenhum.  Não 

posso,  nem  devo  continuar  a  amar  um  ingrato.  Tudo  está  aca- 
bado entre  nós.  Não  voltes  mais  aqui,  e  adeus.» 

António  Lobo  já,  como  dissera,  esperava  este  bilhete,  desde 
que  Maria  da  Gloria  recebeu  pela  manhã  a  carta  e  ficou  per- 
turbada. 

Elle  conhecia  bem  a  táctica  de  todas  as  mulheres  d'aquella 
espécie. 

Uma  só  coisa  parecia  inspirar-lhe  algum  interesse : 

—  Mas  que  diabo!  eu  ia  jurar  que  conheço  a  lettra  do  so- 
brescripto. 


238  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


E,  por  mais  que  quizesse  lembrar-se,  não  atinava  quem 
fosse. 

Um  amigo  disse- lhe  á  noite: 

—  Vi  hoje  na  Praça  da  Alegria  a  Maria  da  Gloria. 

—  Ah!  viste?  respondeu  Lobo.  Ella  também  foi  a  enforcar? 

—  Só  se  tu  foste  o  algoz. 

—  Nao.  Ella  é  que  me  estrangulou  esta  manhã. 

—  Como  V 

—  Despedindo-me. 

—  Depois  de  alguma  scena? 

—  Não.  Antes  da  scena,  logo  que  o  tyranno  da  peça  appa- 
receu  nos  bastidores. 

—  Mas  quem  é  o  tyranno? 

—  Não  sei,  nem  me  dá  isso  grande  cuidado,  apesar  de  me 
parecer  que  lhe  conheço  a  lettra. 

—  Eu  não  sei  quem  seja. 

—  Sabe  ella,  e  é  o  que  basta. 

—  Estás  contrariado? 

—  Eu!  até  foi  bom.  Depois  de  amanhã  é  o  sarau  nas  Pi- 
coas e  eu  preciso  todo  o  tempo  até  lá  para  dar  crena  aos  sapa- 
tos e  arranjar  umas  fivellas  maltezas.  Tens  tu  algumas? 

—  Não. 

—  Nem  eu.  Onde  diabo  as  hei  de  ir  arranjar?  Bem  vês  que 
não  tenho  tempo  para  pensar  em  mais  nada. 


XVIII 


o  sarau  das  Pieôas 


Decerto  que  o  leitor  conhece  um  interessante  opúsculo  do 
marquez  de  Rezende,  intitulado  '«Pintura  de  um  outeiro  no- 
cturno e  um  sarau  musical  ás  portas  de  Lisboa  no  fim  do  sé- 
culo passado». 

Este  opúsculo  é  um  feixe  de  «recordações  e  imagens»,  pit- 
torescamente  agrupadas,  sem  embargo  de  algumas  inexacti- 
dões flagrantes. 

O  auctor  remonta-o  aos  primeiros  annos  do  reinado  de 
D.  Maria  I,  que  foi  acclamada  em  1777,  e  comtudo  faz  concor- 
rer ao  sarau  a  prima-donna  Zamperini,  que  já  então  não  es- 
tava em  Portugal. 

Mas,  apesar  do  anachronismo,  este  facto  mostra  quão  viva 
era  ainda,  alguns  annos  depois,  a  ruidosa  tradição  que  a  Zam- 
perini deixou  em  Lisboa,  tradição  que  o  marquez  de  Rezende 
recebeu  e  aproveitou,  preferindo  sacrificar  a  chronologia  a  ter 
de  renunciar  á  presença  da  prima-donna  n'uma  festa  que  elle 
suppõe  realisada  em  1777. 

Ora  o  que  é  certo  é  que,  no  solar  das  Picoas,  a  familia 
Freire  de  Andrade,  hoje  Camarido,  recebia  semanalmente,  desde 
muitos  annos,  toda  a  nobreza,  todos  os  escriptores  e  todos  os 
artistas,  nacionaes  ou  estrangeiros,  que  brilhavam  em  Lisboa 
n'aquella  época. 

Era  um  «salão  litterario»,  como  sempre  tem  havido  algum 
em  Lisboa,  a  partir  do  reinado  de  D.  Manuel,  especialmente  da 


240  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


pequena  corte  de  sua  filha  a  infanta  D.  Maria,  até  ao  salSo 
Kruz,  da  rua  Formosa,  em  nossos  dias. 

Os  estrangeiros  que  chegavam  a  Lisboa  com  recommenda- 
ção  ou  aqui  se  faziam  recommendar  por  algum  titulo,  facil- 
mente podiam  frequentar  salões  distinctos,  entre  elles  o  dos 
Freires  de  Andrade  nas  Picoas. 

O  famoso  aventureiro  José  Bálsamo,  quando  esteve  em  Lis- 
boa, foi  apresentado  na  grande  roda,  graças  á  belleza,  que  nao 
á  virtude,  de  sua  mulher  Lourença  Fedisiani. 

Anna  Zamperini  também  se  fez  ouvir  nos  saraus  das  Pi- 
coas, porque  muitas  mãos,  em  cujos  dedos  brilhavam  anneis 
brazonados,  lhe  abriram  as  portas  d'aquelle  palácio  illustre. 

Já  sabe  o  leitor  que  António  Lobo  de  Carvalho,  no  dia  da 
execução  de  Isabel  Clesse,  estava  convidado  para  um  sarau  nas 
Picoas,  e  eu  dir-lhe-hei  agora  que  esse  sarau  era  de  maior 
vulto  que  os  ordinários,  por  festejar  o  anniversario  natalício  de 
um  dos  filhos  do  venerando  ancião  Fernando  Martins  Freire  de 
Andrade. 

O  marquez  de  Rezende  não  se  esqueceu  de  mencionar, 
como  frequentador  d'aquelle  palácio,  «o  mordaz  Lobo»,  pala- 
vras suas. 

A  Zamperini  ia  encontrar,  no  palácio  das  Picoas,  mais  uma 
vez,  o  seu  intransigente  adversário  António  Lobo,  mas  era 
aquelle  um  terreno  neutro  onde  ella  não  tinha  que  temer-lhe  as 
arremetidas. 

A  esse  tempo  Zamperini  começava  a  descer  do  zenith,  por 
que  as  algibeiras  dos  seus  mais  abastados  admiradores  come- 
çavam também  a  estar  cansadas  de  frequentes  e  profundas  san- 
grias. 

Os  poetas  aproveitavam  o  momento,  esperançados  em  que 
tivesse  soado  a  hora  do  seu  triumpho,  porque  Anna  Zamperini 
era  sufficientemente  perspicaz  para  não  prescindir  de  uma 
guarda  pretoriana,  que  lhe  defendesse  a  gloria  e  a  fama. 

Vendo  rarear  os  argentados,  voltava-se  com  melhor  som- 
bra para  os  poetas,  a  fim  de  que  lhe  não  faltasse  em  louvores  o 
que  já  lhe  ia  faltando  em  dinheiro. 

E  se  alguns  poetas,  como  António  Lobo,  se  mostravam  in- 
transigentes em  recusar-lhe  culto,  outros,  habilmente  attrahi- 
dos  por  ella,  iam  engrossando  as  fileiras  dos  zamperinistas 
versejadores. 

Quando  a  prima-donna  entrou,  essa  noite,  no  solar  das  Pi- 
coas, levava  a  pungir-lhe  a  memoria  um  soneto  de  António 
Lobo,  em  que  elle  exagerava,  é  certo,  a  decadência  da  artista, 
mas  em  que  havia,  aliás,  um  certo  fundo  de  verdade,  e  era  isso 
o  que  mais  incommodava  a  famosa  cantora. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  241 


Dizia  o  poeta  que  ella  ia  resvalando  á  pobreza. 

Isto  era  manifestamente  uma  exageração  com  o  fim  de  ma- 
guar;  mas  Zamperini  ioem  sabia  que  as  maiores  fontes  de  re- 
ceita estavam  exiiaustas. 

Assim  a  Zamperini  hoje  se  estreita 
A  comer  pão  de  rala. . . 

Nem  tão  longe.  Ella  comia  ainda  o  pão  fino  de  Melecas  *  e 
até  o  pão  de  ló  dos  conventos,  ensopado  em  velho  Porto  ou 
Madeira.  Mas  o  áureo  Pactolo  já  corria  para  a  sua  algibeira 
menos  caudaloso  e  torrencial ;  era  agora  um  regato  escasso, 
escasso,  sobretudo,  para  alimentar  o  fausto  e  brilho  com  que 
ella  e  as  irmãs  se  acostumaram  a  viver. 

Os  bens  da  gente  de  theatro  são  como  os  bens  do  sa- 
christão : 

Cantando  vera, 
Cantando  vão. 

António  Lobo  concluia  o  soneto  dizendo  que  a  Zamperini, 
de  queda  em  queda,  ainda  havia  de  chegar  a  ir  morar  para  a 
rua  d'elle. 

Ora  o  poeta  residia  já  então  á  Madragôa,  sitio  incompatí- 
vel, desde  velha  data,  com  a  decência  dos  costumes. 

Isto  era  um  pesado  aggravo,  que  devia  maguar  a  Zampe- 
rini, mas  já  outros  poetas  lhe  haviam  dito  cousas  igualmente 
cruéis. 

Comtudo,  ao  que  ella  dava  maior  peso,  no  intimo  da  sua 
consciência,  era  «á  diminuição  das  receitas»,  como  diria  hoje 
um  ministro  da  fazenda  nos  debates  de  S.  Bento. 

Começava  a  boquejar-se  que  era  sobre  o  presidente  do  se- 
nado da  camará  que  recahia  agora  a  maior  responsabilidade  do 
torçamento  da  despeza»  e  que,  logo  que  o  marquez  de  Pombal 
tivesse  conhecimento  d'este  facto,  mal  iria  á  Zamperini  e,  por- 
tanto, ás  suas  duas  galantes  manas. 

Mas  o  primeiro  ministro  andava  muito  preoccupado  com  a 
reforma  da  Universidade,  e  havia  partido  para  Coimbra  em  se- 
tembro, não  tendo  por  isso  tempo  para  inquirir  do  que  se  pas- 
sava no  theatro  da  Rua  dos  Condes  e  em  casa  da  Zamperini. 

De  mais  a  mais  não  seria  missão  fácil,  nem  isenta  de  pe- 


*  São  dois  logares  do  concelho  de  Cintra,  nas  freguezias  de  Bellas  e  Rio 
de  Mouro,  onde  n'aquelle  tempo,  principalmente,  se  fabricava  o  melhor  pão 
de  tricô  que  vinha  ao  mercado  de  Lisboa. 

^    ^  16 


242  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


rigos,  a  de  lhe  dar  noticias  desagradáveis  sobre  acontecimentos 
em  que  estava  envolvido  o  nome  do  seu  filho  primogénito. 

A  formosa  «estrella»  da  Rua  dos  Condes  e  António  Lobo 
não  eram  os  únicos  adversários  que,  n'essa  noite,  se  encontra- 
vam reunidos  sob  o  tecto  do  solar  das  Picoas. 

Ali  estava  também  o  padre  Manuel  de  Macedo,  que  não  ti- 
nha menores  aggravos  de  Lobo  que  a  Zamperini ;  e  que,  nas 
mesmas  salas,  fazia  cara  alegre  ao  passar  hombro  a  hombro 
pelo  dr.  Domingos  Monteiro  de  Albuquerque  e  Amaral,  por 
José  Basilio  da  Gama,  e  por  vários  outros  que  o  haviam  fiagel- 
lado  8  conta  da  celebre  ode. 

Ali  os  sócios  da  Arcádia  se  baralhavam,  perpassando  de 
sala  em  sala,  com  os  seus  implacáveis  emulos,  do  Grupo  da 
Ribeira  das  Naus. 

Ali  o  conde  de  Oeiras  tinha  de  roçar  o  braço  por  muitos 
dos  mais  figadaes  inimigos  de  seu  pae  e  da  sua  familia. 

Ali,  finalmente,  no  campo  neutral  das  Picoas,  sob  o  paci- 
fico influxo  das  Musas,  reinava  a  mais  apparente  harmonia  en- 
tre pessoas  que  intimamente  se  detestavam. 

Nicolau  Tolentino  de  Almeida  abeirou-se,  logo  ao  começo 
do  sarau,  da  mesa  em  que  o  marquez  de  Angeja  estava  jogando 
o  isque  com  o  marquez  de  Lavradio,  o  conde  de  S.  Lourenço 
e  o  conde  de  Ville  Verde. 

—  Excellentissimos  senhores,  disse  o  poeta,  tenho  a  honra 
de  saudar  todos  os  illustres  parceiros  de  tao  preclara  partida. 

—  Olá,  sr.  Tolentino!  responderam  os  quatro  fidalgos  cor- 
respondendo familiarmente  ao  cumprimento. 

—  Então  não  joga?  perguntou  o  marquez  de  Angeja. 

—  Eu  !  meu  sr. !  Não  jogo  por  duas  razões,  e  comtudo  bas- 
taria uma  só. 

—  Comece  pela  principal. 

—  A  principal  é  vossas  excellencias  não  quererem  que  eu 
jogue. 

—  Nós?! 

—  Ora  essa? ! 

—  Porquê  ? ! 

—  Diga  lá. 

E  Tolentino,  aproveitando  a  occasião  de  metter  memorial, 
respondeu : 

—  Porque  ainda  se  não  dignaram  despenar  o  pobre  mestre 
de  meninos  e  fazel-o  subir  ao  sétimo  céu  de  uma  secretaria  de 
estado. 

Riram-se  os  quatro  fidalgos,  e  todos  elles  disseram  uma 
palavra  amável  ao  poeta. 

—  Vamos  a  vêr  agora  a  outra  razão. 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA  243 


—  A  outra  é  que  eu  não  gosto  nada  d'esta  moda  do  isque, 
com  perdão  de  vossas  excellencias,  que  o  estão  jogando. 

—  Mas  por  quê? 

—  Por  quebrar  a  cabeça,  e  exigir  silencio  e  concentração 
de  espirito  para  tomar  sentido  nas  cartas.  Bem  se  vê  que  é  jogo 
de  inglezes,  cabeças  frias  e  meditativas. 

Aquiilo  a  que  os  portuguezes  do  século  xviii  chamavam 
«isque»  não  era  outra  coisa  senão  o  «whist»,  que  principiava  a 
ter  voga  entre  nós. 

Tolentino,  que  foi  sempre  adversário  d'este  jogo,  orthogra- 
phava  «isque»,  como  quasi  toda  a  outra  gente:  mas  Garção  es- 
creveu —  Wiske. 

—  Vamos  indo  com  as  modas,  respondeu  o  conde  de  S.  Lou- 
renço. 

—  Eu,  meus  senhores,  contestou  Tolentino,  direi,  sempre 
com  o  respeito  devido  a  vossas  excellencias,  que  prefiro  a  bisca 
c  o  truque,  em  que  fui  criado. 

—  Mas  ha  ainda  outro  que  lhe  não  desagrada  decerto... 
sublinhou  com  affavel  ironia  o  marquez  de  Angeja. 

—  Ah  I  bem  entendo,  meu  senhor.  A  Banca  é  o  rei  dos  jo- 
gos. Fazer  um  vistoso  parolim  é  ganhar  uma  batalha  terrível. 
Mas...  não  chega  a  tanto  um  pobre  mestre  de  meninos,  por 
que  os  banqueiros  lhe  não  consentem  que  aponte  a  palmatória, 
sua  única  riqueza. 

—  Ah!  parceiro!  apostrophou  o  marquez  de  Angeja  ao 
conde  de  Lavradio.  Essa  carta  agora ! . . . 

—  Perdão!  perdão!  disse  Tolentino.  A  culpa  foi  minha;  o 
tal  isquesinho  não  é  jogo  que  permitta  desvios  de  attenção. 
Desculpem  vossas  excellencias. 

E  affastou-se  da  mesa  dos  quatro  fidalgos. 
O  padre  Francisco  Manuel  do  Nascimento  dizia  ao  ouvido 
do  dr.  Monteiro  Amaral,  n'outra  sala : 

—  Não  posso  vêr  aquelle  homem  que  acolá  está.  Conten- 
de-me  com  o  systema  nervoso. 

O  dr.  Monteiro  Amaral  olhou  disfarçadamente,  e  viu  José 
Manuel  Pinheiro,  secretario  da  Junta  do  Gran-Pará  e  Mara- 
nhão. 

—  E'  um  assassino,  proseguiu  Francisco  Manuel.  Assas- 
sino da  lingua  portugueza,  que  vae  retalhando  a  golpes  de  fran- 
cezia.  E'  o  francelho-mór  d'este  reino,  uma  peste  de  homem, 
que  estraga  tudo  em  que  põe  a  mão. 

Mas  de  repente  fez-se  grande  silencio  nas  salas. 

Ia  começar  o  outeiro,  rompendo  os  poetas  o  sarau  com  os 
costumados  louvores  e  felicitações  ao  dono  da  casa  por  motivo 
do  fausto  anniversario  natalício  de  um  dos  seus  filhos. 


244  o    LOBO   DA    MADRAGÔA 


Depois  seguiram-se  os  motes  e  as  glosas,  os  jogos  floraes 
dos  repentistas,  e  ainda  a  longa  recitação  de  poesias  com  que 
vinham  munidos  os  poetas  que  nSo  eram  improvisadores. 

Durante  todo  este  tempo  Anna  Zamperini  esteve  sendo  as- 
sediada pelo  «Chevallien)  de  Montigny»,  encarregado  dos  negó- 
cios de  França,  o  que  dava  alguns  engulhos  ao  conde  de  Oei- 
ras, sempre  preoccupado  em  vigial-os  de  longe  com  mal  dis- 
farçado interesse. 

Montigny  era  um  poeta,  que  se  propunha  conquistar  as 
mulheres  pelo  amor,  mediante  a  suggestao  estonteadora  do 
verso.  O  «vil  metal»  cheirava-lhe  a  repugnante  trafico  de  cha- 
tins.  Tinha  uma  paixão  ardente  pela  Zamperini,  mas  para  con- 
quistal-a  seguia  pelo  caminho  mais  longo :  a  poesia.  Ella  en- 
tendia pouco  d'isso,  e  muito  de  dinheiro.  D'aqui  o  não  poderem 
identiíicar-se,  e  o  perder  elle  tempo  a  rondar -lhe  a  casa,  a  vi- 
sitar-lhe  o  camarim,  a  seguil-a  por  toda  a  parte. 

N'aquella  noite  das  Picoas  intentou  o  cavalheiro  de  Monti- 
gny vibrar  o  golpe  de  misericórdia  ao  resistente  coraçSo  da 
Zamperini. 

O  poeta  illudia-se  mais  uma  vez,  porque  ella  só  tinha  gar- 
ganta e  algibeira. 

Mas,  ainda  assim,  Montigny  tomou  n'essa  noite  as  suas 
precauções. 

Além  de  uma  epistola  em  verso,  levou-lhe  uma  carta  em 
prosa,  de  leitura  mais  rápida,  na  qual  resumia  em  poucas  linhas 
o  que  dizia  na  epistola  metrificada. 

Era  a  ultima  palavra  do  seu  amor,  o  ultimo  cartuxo  quei- 
mado, a  confissão  decisiva  de  que  a  amava  loucamente:  «la  fo- 
lie de  vous  aimer» 

Julgava  elle  que  as  circumstancias  o  favoreciam,  visto  sa- 
ber-se  que  os  argentados  começavam  a  desertar. 

Possuo  uma  copia  manuscripta  d'esse  duplo  documento 
amoroso. 

A  epistola,  composta  em  alexandrinos  pareados,  é  muito 
extensa,  e  eu,  para  não  fatigar  o  leitor,  limito-me  a  traduzir  os 
quatro  primeiros  versos : 


Zamperini,  é  tamanha  a  lua  formosura, 
Que  o  meu  amor  por  ti  vai  até  á  loucura. 
Teu  encanto  allucina  e  faz  loucos  diversos. 
Mas  o  maior  sou  eu,  que  te  dedico  versos. 

Pobre  sr.  de  Montigny !  está-se  vendo,  logo  n'este  inflam- 
mado  intróito,  a  alma  ingénua  de  um  rapaz  francez,  sincero 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  245 


como  todos  os  rapazes,  galanteador  como  todos  os  francezes, 
com  mais  cora<jão  do  que  «porte-monnaie»,  simples  encarre- 
gado de  negócios  na  carreira  diplomática. 

Isto  de  confessar-se  o  maior  louco  de  todos,  no  amor,  aos 
pés  de  uma  cantatriz,  é  o  mesmo  que  dizer-lhe :  «vá  pensando 
primeiro  nos  outros  todos  e  deixe-me  para  o  fim,  que  eu  estou 
certo,  porque  nao  posso  fugir-lhe». 

Ah  !  se  a  mocidade  soubesse ! . . . 

Mas  que  o  cavalheiro  de  Montigny  estava  loucamente  apai- 
xonado bem  o  mostrou  elle,  se  ainda  fosse  precisa  mais  uma 
prova,  no  sarau  das  Picoas,  sentado  junto  da  Zamperini  a  di- 
zer-lhe finezas,  a  requebrar-lhe  olhares,  a  dar-se  em  espectá- 
culo á  curiosidade  e  maledicência  de  todos  os  convidados. 

O  padre  Manuel  de  Macedo,  nada  contente,  desforrava-se 
dizendo  aos  seus  Íntimos  : 

—  Vejam  aquillo!  Eu  chamei-lhe  divina  no  papel.  Mas  o 
Chevallier  de  Montigny  vae  mais  longe :  divinisa-a  no  salão. 

A  carta  em  prosa,  transumpto  da  epistola  em  verso,  é, 
como  já  disse,  um  recurso  de  que  o  poeta  lançou  mão  para  ter 
algumas  probabilidades  de  se  fazer  lêr  pela  «prima-donna». 

A  epistola  decerto  a  nao  leu  ella;  mas  a  carta,  por  ser 
curta,  e  em  prosa,  talvez  a  lesse. . .  se  é  que  leu. 

O  padre  Manuel  de  Macedo  e  outros  muitos  vates  pode- 
riam testemunhar,  por  experiência  própria,  que  os  versos  não 
eram  instrumento  efficaz  para  render  a  Zamperini. 

Dizia  a  carta  do  sr.  de  Montigny : 

«Eu  junto  esta  breve  carta  a  uma  Epistola  assaz  longa,  a 
fim  de  que  possaes  lêr  em  prosa,  como  em  verso,  que  tenho  o 
bom  gosto  de  vos  admirar  e  a  loucura  de  vos  amar.  Tendes 
um  banqueiro,  um  joalheiro,  um  mordomo,  um  pintor  e  um 
postilhão;  não  vos  falta  senão  um  poeta.  Se  o  meu  estylo  vos 
agrada,  dar-me-hei  por  muito  feliz  em  entrar  ao  vosso  serviço 
n'essa  qualidade.  Não  esqueçaes  que  as  personagens  mais  ce- 
lebres na  historia  do  mundo,  os  generaes  victoriosos,  e  as  bel- 
las  que  subjugam  todos  os  corações,  só  adquirem  uma  reputa- 
ção immortal  pelas  obras  dos  poetas ;  e  se  é  doce  na  velhice 
contemplar  em  uma  tela  sempre  fresca  a  figura  encantadora 
que  aos  dezoito  annos  contemplávamos  no  espelho,  não  é  me- 
nos doce  folhear  com  mão  tremula  uma  collecção  de  ternos  bi- 
lhetes e  assestar  a  luneta  para  reler  apaixonados  versos.  Já  vos 
fizestes  retratar  a  óleo ;  fazei-vos  celebrar  em  verso.  Querereis 
acceitar  a  minha  dedicação  e  dar-me  uma  resposta?  Permittir- 
me-heis  ir  estudar  a  vossa  casa  a  matéria  dos  meus  poemas? 
Só  essa  idéa  me  envaidece.  Mas  consenti  ao  menos  que,  espe- 


246  o   LOBO   DA   MA  DRAGO  A 


rando  as  vossas  ordens,  eu  tenha  o  prazer  de  me  assignar  com 
o  mais  profundo  amor, 

o  mais  humilde  e  o  mais  apaixonado  entre  aquelles 
que  ambicionariam  ser  vossos  escravos 

Assignado:  Metrophobyr», 

Era  o  pseudonymo  do  sr.  de  Montigny,  mantida  a  inicial 
do  seu  appellido  de  familia. 

Havemos  de  confessar  que  a  phrase  —  para  ir  estudar  a 
vossa  casa  a  matéria  dos  meus  poemas  —  é  o  mais  subtil  eufe- 
mismo de  que  lia  noticia. 

Esta  phrase  vale  bem  toda  a  outra  prosa,  e  até  todos  os 
poemas,  do  joven  diplomata  francez. 

Pobre  sr.  de  Montigny !  mal  diria  elle,  n'aquella  noite  das 
Picoas,  tão  cheio  de  vida,  de  mocidade  e  amor,  que  a  morte  o 
estava  ameaçando  de  perto  e  que  dentro  de  pouco  o  empolgaria 
na  fiôr  dos  annos,  cortando  impiedosamente  todos  os  seus 
anhelos  e  sonhos. 

Montigny  falleceu  d'ahi  a  um  anno,  no  palácio  que  então 
habitava  o  marquez  de  Macedónio,  enviado  extraordinário  e  mi- 
nistro plenipotenciário  de  Nápoles,  residente  em  Lisboa  desde 
1767. 

Frei  Cláudio  da  Conceição  diz  no  aGabinete  Histórico»:  * 

«No  dia  8  de  agosto  (de  1773)  morreu  em  Lisboa  o  caval- 
leiro  Montigny,  encarregado  dos  negócios  de  França  n'esta 
corte:  sepultou -se  na  egreja  de  S.  Luiz,  que  a  nação  franceza 
tem  em  Lisboa,  ás  Portas  de  Santo  Antão.  Os  ministros  es- 
trangeiros, o  corpo  da  nação  franceza,  e  muitas  outras  pessoas 
de  distincção,  assistiram  tanto  ao  seu  enterro,  como  ás  &uas 
exéquias  feitas  na  mesma  igreja  no  dia  seguinte». 

Não  diz  que  a  «prima-donna»  Zamperini  assistisse  aos  actos 
fúnebres,  e  comtudo  ella  devia  essa  homenagem  de  respeito  á 
memoria  do  homem  que  tanto  a  amou  e  cantou. 

O  cavalheiro  de  Montigny  não  pôde  ser  ainda  hoje  um  nome 
indiííerente  a  Portugal,  pois  que  seguiu  com  interesse  em  Lis- 
boa a  evolução  do  theatro  portuguez,  independentemente  da  in- 
fluencia que  no  seu  coração  exercia  a  paixão  pela  Zamperini. 

N'um  oflficio,  datado  de  12  de  agosto  de  1771,  dizia  elle  ao 
duque  de  Bouillon  que  todos  os  esforços  do  marquez  de  Pombal 
tendiam  a  promover  o  adeantamento  e  progresso  das  artes  e 


^  Vol.  XVII,  pag-  104. 


o    LOBO    DA   MADRAGÔA  247 


das  manufacturas,  e  até  o  dos  theatros,  e  concluía  noticiando 
que  o  theatro  nacional  estava  sendo  construído  por  meio  de 
subscripçao;  que  se  tinham  mandado  buscar  actores  á  Itália; 
e  que  se  traduziam  as  peças  francezas.  * 

Ora,  a  esse  tempo,  não  só  já  havia  opera  nos  theatros  do 
Bairro  Alto  e  da  Rua  dos  Condes,  mas  até  já  havia  começado 
o  ruidoso  periodo  da  Zamperini. 

O  theatro  em  construcçao  devia  ser  o  do  Salitre. 

O  cavalheiro  de  Montigny  foi  substituído  em  Lisboa  pelo 
marquez  de  Clermont  d'Amboise,  na  qualidade  de  embaixador 
de  França,  o  qual  habitou,  no  palácio  do  marquez  de  Macedó- 
nio, os  mesmos  aposentos  em  que  Montigny  falleceu. 

No  festival  das  Picoas,  succedeu-se  ao  outeiro  dos  poetas 
um  primoroso  serviço  de  bufete,  a  que  o  marquez  de  Rezende 
chama  «lauta  merenda»,  e  depois  começou  o  sarau  musical  em 
que  Anna  Zamperini  cantou  com  o  tenor  Caporalini  o  dueito 
fAh  cari  palpiti»  da  burletta  de  Gimarosa  ali  matrimonio  se- 
creto», sendo  acompanhados  ao  piano,  um  dos  primeiros  pia- 
nos de  Pleyel  que  chegaram  a  Lisboa,  pelo  professor  João  Cor- 
deiro da  Silva. 

Este  musico,  sempre  muito  scismatico  com  doenças,  não 
se  sentava  ao  piano  sem  ter  a  seu  lado  pessoa  de  confiança  que 
lhe  voltasse  a  solta  com  toda  a  cautela  para...  se  não  cons- 
tipar. 

N'essa  noite  solicitou  esse  obsequio  de  Nicolau  Tolentino 
de  Almeida,  seu  amigo,  que  ficou  de  pé  junto  ao  piano,  immo- 
vel,  com  os  olhos  pregados  na  Zamperini. 

A  cantora  perturbou-se  com  o  olhar  insistente  de  um  ho- 
mem, que  ella  sabia  ser  poeta  satyrico  e  que  não  andava  con- 
tado no  numero  dos  zamperinistas. 

Muito  nervosa,  no  meio  de  uma  tempestade  de  applausos, 
quando  acabou  de  cantar  não  teve  mão  em  si  que  não  dissesse 
ironicamente  ao  poeta : 

—  Parece  que  o  sr.  Tolentino  nunca  me  viu  ! 
Elle  replicou  de  prompto,  gravemente : 

—  De  graça  é  a  primeira  vez. 

Cantaram  ainda  outros  artistas  da  companhia  da  Rua  dos 
Condes,  Trebbi,  Schettini,  Felicaldi,  etc,  mas  o  grande  «ciou» 
do  sarau  musical  foi  Anna  Zamperini,  a  qual  despertou  tama- 
nha ovação  de  palmas  e  bravos,  que  mais  uma  vez  irritou  os 
nervos  do  padre  Francisco  Manuel  do  Nascimento. 


^  «Quadro  elementar  das  relações  diplomáticas»  pelo  visconde  de  San- 
tarém, vol.  xviii,  pag.  14. 


248 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Dizia  elle  n'um  grupo  de  amigos  : 

—  Vejam  Vossas  Mercês  o  que  é  ser  estrangeiro  em  Por- 
tugal !  A  nossa  grande  Luiza  de  Aguiar,  com  a  sua  linda  voz 
de  meio-soprano,  encantadora  no  registo  grave,  se  quiz  ganhar 
a  vida,  desde  que  chegou  esta  maluca  da  Zamperini,  teve  de 
ir  para  o  Porto,  e  por  lá  está !  E'  bonita,  canta  bem,  mas  ca- 


0  sarau  nas  Picoas 


sou  com  o  rabequista  Todi,  e  é  honesta.  O'  diabo!  má  recom- 
mendação!  Nasceu  aliem  Setúbal ;  se  tivesse  nascido  em  Itália, 
outro  gallo  lhe  cantaria !  Ao  Galli,  quando  metteu  hombros  á 
empresa  da  Rua  dos  Condes,  só  porque  era  italiano,  todos  lhe 
quizeram  levar  dinheiro.  O  pobre  JoSo  Gomes  Varella  tem-se 
amolado  na  empresa  do  Bairro  Alto  pela  culpa  de  ser  portu- 
guez.  Até  lhe  fazem  satyras!  Melhor  lhe  teria  ido  se  continuasse 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  249 


a  ser  boticário.  Pois  tem  lá  a  irmã  da  Todi,  a  Cecilia  Rosa,  que 
é  uma  primeira-dama  de  se  lhe  tirar  o  chapéu. 

—  Metteu  n'um  chinelo  a  Maria  Joaquina,  disse  o  dr.  Je- 
ronymo  Estoquette. 

—  E'  verdade  que  metteu !   proseguiu  o  padre  Francisco 
Manuel.  Até  me  lembro  do  final  de  um  soneto  que  dizia  : 

Mas  apenas  Cecilia  fez  ensaios, 
Uma  Rosa  venceu  tantos  candores, 
Um  sol  fez  encobrir  tão  puros  raios  ! 


—  Sim...  sim,  disse  o  capitão  Manuel  de  Sousa.  Isso  eram 
lamentações  postas  na  bocca  de  Maria  Joaquina.  E  comtudo 
ella  tem  valor  na  comedia;  quasi  tanto  como  Cecilia  Rosa  na 
tragedia. 

—  Tanto  não!  ponderou  Francisco  Manuel.  Mas  a  emula- 
ção faz  prodígios.  Maria  Joaquina  foi-se  atrevendo,  menos  mal, 
com  alguns  papeis  trágicos.  No  canto,  porém,  Cecilia  Rosa  era- 
Ihe  muito  superior. 

N'este  momento  soaram  duas  palmadas  fortes. 

—  O  que  é  agora  ? 

O  padre  Apolinário  da  Silva  enfiou  o  olhar  ao  longo  das 
salas  e  disse : 

—  E'  a  sr.*  D.  Caetana  Cardoso  que  vai  cantar. 

—  Bem!  bem!  exclamou  o  padre  Francisco  Manuel.  Isso 
ha  de  ser  modinha  portugueza.  Estou  com  a  minha  gente. 

Pouco  depois  ouvia-se  uma  voz  bem  timbrada  e  suave  can- 
tar uma  das  mais  estimadas  canções  da  época:  «De  saudades 
morrerei». 

Este  numero  do  sarau  foi  applaudido  com  o  sincero  en- 
thusiasmo  de  portuguezes  que  acabavam  de  ouvir  a  sua  bella 
lingua  glosada  sobre  um  melodioso  estribilho  musical. 

Nào  havia  n'aquelles  applausos  nenhum  fim  reservado, 
como  quando  cantou  a  Zamperini  ou  qualquer  das  outras  da- 
mas italianas,  que  mais  ou  menos  tinham  arregimentado  parti- 
daristas interesseiros  ou  fanáticos. 

Premiava-se  o  mérito  da  cantora  na  pessoa  de  uma  senhora 
distincta,  e  festejava-se  esse  como  protesto  da  alma  nacional 
contra  a  inundação  da  musica  italiana,  que  tinha  invadido  os 
theatros,  os  palácios  e  até  as  ruas. 

António  Lobo  de  Carvalho,  percorrendo  as  salas,  teve  von- 
tade de  se  benzer  trez  vezes  quando  viu  encostado  a  uma  porta, 
em  attitude  contemplativa,  o  morgado  da  Boa  Vista. 

—  Vossa  Senhoria  aqui!  exclamou  elle  admirado. 


250  o    LOBO   DA    MADRAGÔA 


—  E'  verdade,  respondeu  o  fidalgo.  Eslava  observando  a 
galanteria  com  que  a  condessa  de  Assumar  sabe  menear  o 
leque. 

—  Quando  chegou? 

—  Ha  dois  dias. 

—  Por  mar  ou  por  terra? 

—  Por  mar. 

—  Foi-lhe  então  levantado  o  interdicto? 

—  Consegui  que  os  primos  Lorênas  consentissem  na  mi- 
nha vinda  a  Lisboa,  sob  condição  de  que  nâo  frequentaria  o 
theatro  da  Rua  dos  Condes,  nem  me  intrometteria  mais  em 
questões  da  Zamperini. 

—  Já  lhe  fallou? 

—  Não;  nem  quero  fallar.  Ouvi-a  cantar  ha  pouco.  Estou 
no  propósito  de  respeitar  fielmente  a  prohibição.  Então  o  que 
tem  feito,  Lobo? 

—  O  mesmo  que  fazia  antes  de  Vossa  Senhoria  se  ausen- 
tar: perder  o  tempo  e  gastar  a  vida. 

—  E  amores? 

—  Amores !  repetiu  com  uma  ligeira  sombra  de  tristeza 
António  Lobo. 

—  Nunca  mais  teve  noticias  de  Villalva? 

—  Nunca  mais.  Tenho  sido  um  ingrato.  Mas  para  que  se 
ha  de  atiçar  um  fogo,  que  uma  vez  atiçado  não  teria  remédio? 

—  Ao  menos  ha  de  ter  tido  algum  passa-tempo. ..  Conte  lá 
isso,  homem. 

—  Ah !  essas  coisas  são  fogos  de  vista,  que  estalam  agora 
e  logo  se  apagam. 

—  Mas  então? 

—  Agora  acabou  justamente  de  queimar-se  uma  d'essas 
ephemeras  bagatellas. 

—  Diga  lá, 

—  Não  era  nenhuma  vestal,  nem  nenhuma  conquista  de 
envaidecer  ninguém.  Conheci  por  acaso  uma  rapariga  que  mora 
ao  Salitre. . . 

—  Ao  Salitre? 

—  Sim. 

—  E  como  se  chama? 

—  Maria  da  Gloria. 

—  Maria  da. . .  disse  o  morgado  e  deteve-se. 

—  Vossa  Senhoria  conhece-a? 

—  Eu!. ..  Não.  Que  idéa  ! 

—  Pois  o  certo  é  que  passei  algum  tempo  com  essa  rapa- 
riga, mas  agora  fui  posto  no  olho  da  rua,  como  se  despede  um 
criado. 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  251 


De  repente,  António  Lobo  sentiu-se  assaltado  por  um  pen- 
samento que  o  incommodou. 

—  Vossa  Senhoria  chegou  ha  dois  dias? 

—  Ha  dois  dias. 

—  E  não  escreveu  uma  carta  iogo  que  chegou? 

—  Que  me  lembre  não. 

—  Ah!  morgado!  nao  diga  isso.  Eu  vi  o  sobrescripto.  Pa- 
receu-me  conhecer  a  lettra,  e  não  me  acudia  de  quem  fosse. 
Agora  vejo  que  era  a  sua.  Dê-me  palavra  de  honra  que  não  era. 

O  morgado  da  Boa  Vista  respondeu  serenamente : 

—  Era. 

—  Ah  !  morgado!  Eu  estou  innocente  d'esta  culpa  :  ignorei 
sempre  quem  fosse  a  pessoa  da  província,  em  quem  Maria  da 
Gloria  me  fallava  mysteriosamente. 

—  Acredito. 

—  Mas  como  o  diabo  as  tece ! 

—  Bom  foi  que  acontecesse  assim,  porque  de  outro  modo 
eu  não  viria  a  saber  com  tanta  certeza  o  que  Maria  da  Gloria 
fizera  na  minha  ausência.  Mas  deixe-me  dizer-lhe  uma  coisa : 
calculava. 

—  Eu  é  que  fui  imprudente  em  fallar  de  mais.  Este  meu 
génio ! 

—  Nunca  se  é  imprudente  em  fallar  francamente  a  um  amigo. 
Imagine  que  eu,  vindo  a  sabel-o  por  alguém,  exigiria  que  me 
dissesse  a  verdade.  Dizia  ou  não? 

—  Dizia. 

—  Pois  ahi  tem. 

—  Mas  a  prova  de  que  eu  ignorava  a  verdade  está  na  fran- 
queza com  que  fallei  a  Vossa  Senhoria. 

—  E'  claro.  Não  vale  a  pena  justificar-se  mais,  meu  caro 
Lobo. 

O  morgado  da  Boa  Vista  poz  amigavelmente  a  mão  sobre 
o  hombro  de  António  Lobo  e  foi-o  guiando  para  a  sala  do  bi- 
lhar, como  para  cortar  um  incidente  em  que  o  poeta  parecia 
ainda  mais  constrangido  do  que  o  morgado. 

Estava  jogando  uma  partida,  n'essa  occasião,  o  padre  Fran- 
cisco do  Campo  Grande,  homem  corpulento,  com  as  faces  cri- 
vadas de  variola,  e  que  tinha  a  paixão  do  bilhar. 

Em  roda  havia  um  grande  numero  de  espectadores,  que 
riam  muito  com  o  padre. 

Quando  o  morgado  e  António  Lobo  entravam  na  sala  do 
bilhar,  dizia  um  dos  circumstantes  ao  acérrimo  bilharista : 

—  O'  padre!  diga  lá  uma  coisa. 

E  o  padre  apontando  o  taco  á  bola  : 

—  Direi  se  souber. 


252  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  E'  certo  que  Vossa  Mercê  uma  vez,  celebrando  missa, 
em  vez  de  dizer  «Orate  fratres»,  se  enganou,  e  disse  «Caram- 
bolou o  parceiro»  ? 

Estrondosa  gargalhada  de  todo  o  auditório. 
O  padre  Francisco,  tendo-lhe  falhado  a  tacada,  começou  a 
pôr  giz  no  taco  e  disse  mansamente : 

—  Ahi  ha  mais  e  menos.  Eu  enganei-me  eííecti vãmente. 
Mas  o  que  disse  foi:  «Perdoai,  irmãos,  á  rapaziada,  que  se  ri 
de  mim  nas  Picoas,  porque  elles  do  jogo  do  bilhar  não  perce- 
bem patavina». 


XIX 


fl  chanfana 


Oito  dias  depois  do  sarau  das  Picoas,  António  Lobo  de 
Carvalho  tinha  ido,  com  alguns  amigos,  passar  o  dia  a  Saca- 
vém em  casa  do  seu  antigo  condiscípulo  João  Dias  Talaia 
Souto-Maior. 

O  pretexto  d'esta  excursão  era,  como  sempre,  mais  uma 
tourada,  das  muitas  que  o  Talaia,  «aficionado»  tão  enthusiasta 
quanto  desastroso,  promovia  frequentes  vezes. 

Este  Talaia,  que  o  leitor  conhece  vagamente  desde  que  An- 
tónio Lobo  fez  uma  rápida  paragem  em  Coimbra,  comquanto 
não  fosse  tolo  e  tivesse  recebido  o  grau  de  bacharel  em  câno- 
nes, tornava-se  ridículo  por  duas  manias  infelicíssimas :  a  de 
tourear  e  a  de  fazer  versos. 

Ora  a  verdade  é  que  toureava  tão  mal  como  poetava,  não 
distinguindo  entre  o  toureio  das  Musas  e  o  das  rezes  para  o 
effeito  de  maltratar  umas  e  outras. 

António  Lobo,  posto  que  sempre  conservasse  com  elle  re- 
lações de  amizade,  não  o  poupava  a  cada  novo  desastre,  espe- 
cialmente tauromachico.  Talaia  nem  se  offendia,  nem  descoro- 
çoava :  era  de  boa  feição.  Não  lhe  faltasse  publico  para  o  vêr 
tourear,  dissessem  os  cartazes  que  tomava  parte  na  corrida  o 
dr.  Talaia,  e  estava  contente.  Pouco  lhe  importava  que  os  es- 
pectadores se  rissem,  e  entre  elles,  principalmente,  o  seu  amigo 
António  Lobo,  que  lhe  levava  sempre  uma  «troupe»  de  bohe- 
mios,  e  cujo  génio  galhofeiro  desde  Coimbra  o  divertia. 


254  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


N'esse  dia  o  dr.  Talaia  fizera  coisas  do  arco  da  velha,  como 
aliás  era  costume  seu. 

Estando  já  morto  um  touro,  que  certo  escravo  mulato  do 
conde  de  Óbidos  derrubara  valentemente,  o  dr.  Talaia  descar- 
regou duas  tremendas  cutiladas. . .  no  touro. 

Toda  a  praça  riu  estrepitosamente  d'esta  fúria  tauroma- 
chica  do  desastrado  doutor.  E  António  Lobo  improvisou,  a  pro- 
pósito, um  soneto  jovial : 

Não  dês  Talaia,  não,  contra  o  preceito 
N'esse  bruto,  que  em  fira  te  não  resiste : 
Não  se  estrague  o  valor  n'uma  acção  triste, 
Onde  illeso  ficou  o  teu  respeito. 

Corra  embora  a  cachões  sangue  no  peito 
Cada  vez  que  o  aggressor  no  campo  existe; 
Mas  o  boi  já  morreu,  como  tu  viste, 
A's  mãos  do  teu  collega,  em  postas  feito. 

Este  collega  era  o  escravo  mulato  do  conde  de  Óbidos,  tão 
«aficionado»  como  o  doutor,  se  bem  que  muito  mais  valente  e 
perito  do  que  elle. 

Cedo  já,  diz  Talaia;  já  não  provo 

N'este  curro  estas  armas  reluzentes, 

Que  á  historia  hão  de  servir  de  assumpto  novo: 

Só  as  fevras,  que  eu  sinto  mais  valentes, 

E'  ser  isto  co'um  boi,  não  ser  co'um  «Lobo«, 

Que  lhe  abrira  a  cabeça  até  os  dentes. 

Lobo  recitou  este  soneto,  de  pé,  na  trincheira,  e  o  publico, 
logo  que  o  viu  em  attitude  de  recitar,  suspendeu  a  gritaria,  para 
ouvil-o. 

Os  espectadores  applaudiram  ruidosamente  o  poeta,  obri- 
gando-o  a  repetir  o  soneto. 

—  Tem  coisas  este  Lobo!  dizia  um. 

—  E'  levado  do  diabo!  affirmava  outro. 

—  Não  as  poupa  a  ninguém!  E  mais  elle  e  o  Talaia  são 
amigos  de  tu. 

—  Muito.  Ouvi  dizer  que  andaram  juntos  na  escola. 

De  repente  armou-se  uma  baralha  no  logar  em  que  Antó- 
nio Lobo  recitara.  Muitas  pessoas  acorreram  áquelle  ponto, 
saltando  degraus,  empurrando,  acotovellando,  querendo  saber 
o  que  era.  Outras,  de  pé,  gesticulavam,  barafustavam,  discu- 
tiam porque  tinham  visto  o  que  se  passara  ou  porque...  não  ti- 
nham visto  nada. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  255 


—  O  que  foi? 

—  O  que  é? 

—  O  Lobo  bateu  em  alguém? 

—  Alguém  bateu  no  Lobo? 

—  A  coisa  é  com  elle. 

—  Eu  vi  um  homem  bater-lhe. 

—  Porquê? 

—  Não  sei.  O  Lobo  ainda  quiz  defender-se,  mas  cahiu,  e  o 
outro  foi  sobre  elle. 

—  Alguém  que  tomou  as  dores  pelo  Talaia. 

—  Qual!  o  Talaia  não  se  importa  com  chalaças. 

—  Então  por  que  seria? 

—  Ha  de  saber-se.  Vamos  vôr  o  que  foi. 

Pouco  depois  Lobo  era  retirado  em  braços,  com  a  cabeça 
aberta,  a  cara  ensanguentada,  e  os  quadrilheiros  levavam  preso 
um  rapaz,  que  teria  pouco  mais  de  vinte  e  cinco  annos,  e  pare- 
cia muito  exaltado. 

Alguns  dos  espectadores  que  estavam  mais  próximos  de 
António  Lobo,  contavam  do  seguinte  modo  a  historia  do  con- 
flicto. 

Logo  que  elle  acabou  de  recitar  o  soneto,  aquelle  rapaz 
poz-se  a  pé,  bateu-lhe  no  hombro  e  disse : 

—  Eu  é  que  sou  capaz  de  abrir-lhe  a  cabeça. 
Lobo,  estupefacto,  replicou-lhe  : 

—  Não  o  conheço ;  não  sei  quem  é  ! 

O  rapaz,  cada  vez  mais  pallido,  retrucou  : 

—  Conheço-o  eu;  sei  que  é  um  grande  canalha. 

A  esta  palavra,  Lobo  volta-se  de  repente  e  avança  para  o 
desconhecido ;  mas  escapa-lhe  um  pé,  cáe,  e  então  o  aggressor 
descarrega-lhe  uma  forte  mocada  na  cabeça. 

Tudo  isto  se  passou  rapidamente. 

Alguns  espectadores  ainda  agarraram  o  rapaz  e  o  aggredi- 
ram,  mas  elle,  se  bem  que  subjugado,  disse  serenamente  : 

—  Eu  fiz  o  que  elle  pedia  ao  Talaia :  abri -lhe  a  cabeça,  não 
sei  se  até  aos  dentes. 

Depois  acudiram  os  quadrilheiros,  e  levaram-n'o  preso. 

Aventou-se  a  hypothese  de  que  o  rapaz  era  amigo  do  Ta- 
laia, e  o  quizera  desaffrontar. 

Veiu  o  doutor,  e  declarou  que  nem  sequer  conhecia  de 
vista  aquelle  mancebo ;  quanto  ao  soneto,  declarou  também  que 
elle  nunca  tomava  á  má  parte  as  facécias  do  seu  antigo  condis- 
cípulo e  amigo  António  Lobo  de  Carvalho. 

A'  noite  dizia-se  em  Lisboa  que  o  Lobo  tinha  sido  morto 
na  corrida  em  Sacavém. 

—  Pois  elle  toureou  ! 


256  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


—  O  dr.  Talaia  pegou-lhe  a  mania!? 

—  Não  foi  um  touro  que  o  matou,  foi  um  homem. 

—  Porquê? 

—  Nao  se  sabe ! 

—  Vingança  de  alguma  versalhada,  talvez. 

—  Seria  o  alferes  Constantino  que  se  quizesse  vingar  do 
soneto  que  ahi  corre  contra  a  mulher  d'elle,  e  que  dizem  com- 
posto pelo  Lobo? 

—  Não,  não  era  o  alferes  Constantino. 

—  Então  quem  diabo  seria? 

Ora,  como  já  dissemos,  nem  o  próprio  Lobo  sabia  respon- 
der a  esta  pergunta. 

A'  noite,  quando  elle  voltou  de  Sacavém  e  appareceu  no 
Rocio,  saudaram-n'o  como  a  um  resuscitado,  pois  que  a  ima- 
ginação popular  o  tinha  dado  por  morto. 

—  Coisa  ruim  não  tem  perigo,  dizia  alegremente  António 
Lobo. 

—  Mas  por  que  foi  isso? 

—  Eu  sei  lá!  Sabe-se  a  rasão  do  diluvio  universal :  foi  a 
maldade  dos  homens.  Sabe-se  a  origem  da  guerra  de  Troya : 
foi  a  formosura  de  Helena.  Só  não  se  sabe  a  causa  por  que 
certo  muchacho,  que  eu  não  conheço,  me  quiz  pôr  hoje  os  mio- 
los ao  sol. 

—  Mas  é  esquisito! 

—  Também  acho,  concordava  jovialmente  António  Lobo; 
muito  mais  esquisito  para  mim  do  que  para  Vossas  Mercês. 

Toda  a  gente,  ouvindo  esta  e  outras  chistosas  respostas  de 
Lobo,  desatava  a  rir  da  excentricidade  de  um  homem,  que  não 
parecia  preoccupar-se  de  haver  sido  espancado  sem  saber  por 
quem  e  por  quê? 

—  Mas  quem  será  o  brutal  sujeito?  perguntavam-lhe  al- 
guns amigos  no  intuito  de  provocar  novas  facécias. 

—  Ora  quem  será?!  E'  qualquer  representante  d'esta  vil 
humanidade,  que  eu  tantas  vezes  tenho  atanazado  com  gana. 
Acreditem  que  por  tão  módico  juro  vale  a  pena  ir  amontoando 
um  grosso  capital  de  maledicência.  Não  cahisse  eu,  e  o  homem- 
sinho  apanharia  a  sua  conta,  que  eu  n'outro  tempo  experimen- 
tei o  braço  n'estas  lides,  e  sahia-me  melhor  do  que  o  Talaia 
nas  touradas.  Ora  quem  será  elle?!  E'  um  inimigo  retardatá- 
rio, um  ódio  feito  pessoa,  que  esteve  a  abeberar  uma  vingança 
durante  mezes,  talvez  annos.  Isto  foi  mocada  d'escabeche,  que 
esteve  de  vinha  d'alhos  á  espera  de  ter  consumo.  Teve,  e  aca- 
bou-se.  Vira  a  gente  a  folha,  e  pensa  n'outra  coisa. 

—  Não  andaria  mulher  no  caso? 

—  Qual  mulher !  Eu  não  offendo  Dulcineas,  que  reclamem 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  257 


um  D,  Quichote  vingador.  Só  um  homem  teria  a  este  respeito 
motivo  para  se  julgar  aggravado  por  mim,  ainda  que  incons- 
cientemente o  aggravei ;  mas  esse  não  era  capaz  de  pensar  em 
semeliiante  tolice.  Finalmente,  meus  amigos,  vamos  a  vêr  se 
nos  podemos  divertir  esta  noite  para  apagar  da  memoria  das 
gentes  a  lembrança  tétrica  do  caso  estupendo  de  Sacavém. 

—  Vamos  a  isso  I  disseram  muitas  vozes. 

—  O  que  ha  de  ser? 

—  Proponham  um  alvitre. 

—  Querem  ir  ceiar  ao  Isidro? 

—  Vá  feito! 

—  EUe  hoje  ha  de  ter  chanfana  fresca. 

—  A'  chanfana!  á  chanfana! 

E  largaram  por  ali  fora,  em  grupo,  para  a  casa  de  pasto 
do  Isidro. 

O  leitor  quer  decerto  saber  o  que  era  a  chanfana. 

Nao  admira,  porque  um  joven  príncipe,  que  teria  então  11 
annos  de  idade,  e  fora  baptisado  com  o  mesmo  nome  de  seu 
augusto  avô  el-rei  D.  José,  também  por  aquelle  tempo  pergun- 
tou o  que  era  essa  famosa  chanfana,  de  que  tanto  ouvia  fallar. 

Creança  intelligente,  parecendo  fadada  para  altos  destinos, 
tinha  a  aguda  curiosidade  que  é  própria  de  todas  as  creanças 
intelligentes. 

A  pergunta  do  príncipe  constou  na  cidade,  e  não  só  deu 
assumpto  a  varias  composições  poéticas,  mas  também  poz  em 
maior  voga  a  chanfana,  que  desde  essa  hora  passou  das  choças 
da  Ribeira  para  as  casas  de  pasto  mais  notáveis. 

E'  que  também  constou  que  o  joven  príncipe  D.  José  não 
se  contentara  apenas  com  a  resposta  que  lhe  deram,  e  quiz 
avalial-a  praticamente,  dignando-se  comer  chanfana  no  Paço. 

António  Lobo  foi  um  dos  poetas  que  promptamente  acudi- 
ram á  curiosidade  do  neto  de  el-rei. 

Compoz  um  soneto,  que  transcrevo  textualmente  com  a  ru- 
brica que  o  antecede : 

Perguntando  o  Príncipe  do  Brasil  D.  José — Que  cousa  era  chanfana? 

D'aUo  barrete,  á  laia  de  turbante, 
Os  braços  nus,  a  faca  na  cintura, 
Co'um  panno  por  timão  á  dependura, 
Trabalha  o  Isidro,  a  turco  semelhante. 

Do  elástico  bofe  inda  pingante, 
Da  barriga  do  porco  alva  gordura, 
Faz  por  tal  modo  uma  tal  qual  fritura, 
Que  aos  toneis  cheios  toca  a  só  vacantel 

17 


258  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Esta,  príncipe  augusto,  é  que  eu  approvo, 
Chanfana  santa,  assaz  famigerada, 
Com  que  o  turco  amofina  o  nosso  povo. 

O  peor  é  que  lambe  d'e8tocada 
Aos  peraltas  o  seu  cruzado  novo, 
Menos  a  mim,  que  nunca  paguei  nada. 

Isto  era  já  no  período  de  aristocratisação  da  chanfana,  em 
seguida  á  pergunta  do  príncipe,  quando  tanto  o  Isidro  como  o 
Almeida  e  o  Talaveira  levavam  aos  peraltas  um  cruzado  novo 
por  essa  indigesta  petisqueira. 

Mas  António  Lobo,  aproveitando  o  assumpto  e  a  opportu- 
nidade,  também  descreveu  a  chanfana  na  sua  primitiva  feição 
popular,  entrançando  uma  reste  de  sonetos,  de  que  vamos  ar- 
rancar alguns : 

Lá  onde  d'antes  era  situada 
Essa  antiga  Ribeira,  ^  em  negras  choças 
Estão  vendendo  enlabuzadas  moças 
Arroz  com  açafrão,  sardinha  assada. 

Socos  nos  pés,  as  pernas  sem  ter  nada, 
Roupinhas  de  baeta,  argolas  grossas, 
Aos  tostões  do  gallego  fazem  mossas 
Co  feijão,  com  a  isca,  co'a  canada. 

Ali  de  humilde  boi  já  esfolado 

O  molle  bofe  se  lhe  vae  frigindo, 

E  em  prato  o  põem,  que  nunca  foi  lavado. 

Toda  a  plebe  á  chanfana  vae  surgindo. 
Mas  depois  saem  d'este  coe  damnado 
Ora  dando  encontrão,  ora  cahindo. 

Lobo  não  se  contentou  com  descrever  o  aspecto  sujo  das 
choças  da  Ribeira  Velha,  e  das  moças  que  preparavam  a  chan- 
fana. 

Accentuou  a  pintura  do  interior  das  tascas  n'outro  soneto, 
que  é  um  bello  quadro  da  vida  plebêa  de  Lisboa  no  seu  tempo : 

Em  casa  térrea  cora  dois  bancos  sujos, 
Mesa  de  pinho  a  quem  um  dos  pós  falha, 
De  estopa  em  cima  sórdida  toalha, 
E  de  roda  fumando  alguns  marujos; 


1  Antiga  Ribeira,  porque  monsenhor  Paulo  de  Carvalho  Mendonça,  ir- 
mão do  marquez  de  Pombal  e  fallecido  em  1770,  tinha,  sendo  presidente  do 
senado  da  camará,  mandado  construir  o  cães  da  Ribeira  Nova. 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  259 


A  porta  sempre  cheia  de  sabujos, 
E  defronte,  sentada  sobre  a  palha, 
De  Guiné  e  d'Angola  essa  canalha. 
Vendendo  mexilhões  e  caramujos ; 

De  louro  á  porta  um  grande  molho  atado, 
Cortina  rota,  e  sobre  o  fogareiro 
Da  chanfana  o  banquete  costumado  : 

Pois  quem  vir  isto  assim  fuja  do  cheiro, 
Que  se  entrar,  por  querer  d'este  guisado, 
Sairá  sem  comer,  e  sem  dinheiro. 

Nicolau  Tolentino  também  interveio  no  assumpto,  e  por 
um  triz  se  não  accendeu  outra  guerra  entre  os  poetas  como  ti- 
nha acontecido  a  respeito  da  Zamperini  e  do  padre  Macedo. 

Fallar  da  chanfana  entrara  em  moda,  e  o  que  é  certo  é  que 
o  pubHco,  dando  maior  attenção  aos  poetas  do  que  hoje,  se 
mostrava  interessado  pelo  assumpto...  apesar  de  indigesto. 

O  soneto  de  Tolentino  vae  servir-nos  para  um  duplo  fim : 
como  contribuição  para  a  historia  da  chanfana  e  como  parallelo 
de  caracter  entre  o  seu  auctor  e  António  Lobo. 

Diz  Tolentino : 

Comprada  em  asqueroso  matadouro 
Sanguinosa  fressura,  quente  e  inteira, 
E  cortada  por  gorda  taberneira, 
Cujo  cachaço  adorna  um  cordão  d'ouro; 

Cabeças  d'alhos  com  vinagre  e  louro, 
E  alguns  carvões  que  saltam  da  fogueira, 
Fervendo  tudo  em  vasta  frigideira 
Cos  indigestos  fígados  do  touro  ; 

Suavissimo  cheiro,  o  qual  augura 
Grato  manjar,  mas  que  por  causa  justa 
Dá  um  sabor  que  nem  o  demo  o  atura : 

Isto  é  chanfana  ;  e  sei  quanto  ella  custa  ; 
Deu-me  o  berço,  dar-me-ia  a  sepultura, 
A  não  valer-me  a  vossa  mão  augusta. 

No  final  d'este  soneto,  Nicolau  Tolentino  não  pôde,  a  pro- 
pósito da  chanfana,  reprimir  a  sua  bossa  de  adulador  de  pes- 
soas gradas. 

Mette  memorial,  como  sempre. 

Dá  a  entender  que  foi  creado  com  a  chanfana  e  que  terá  de 
morrer  n'esse  mesmo  regimen  culinário  se  lhe  não  acudir  a 
mão  generosa  do  príncipe  D.  José. 


260  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Para  conseguir  o  effeito  da  sua  habitual  pedinchice,  não 
duvida  dizer  que  na  infância  se  alimentou  a  chanfana,  o  que 
nao  deve  ter  sido  inteiramente  verdade,  porque  o  pae  de  Tolen- 
tino  era  advogado  de  causas  forenses,  e  vivia  decerto  menos 
mal,  a  ponto  de  poder  mandar  o  filho  para  Coimbra. 

Por  sua  parte,  António  Lobo,  no  final  de  um  dos  sonetos, 
revela-se  o  bohemio  que  sempre  fora,  declarando  que  o  Isidro 
nunca  lhe  apanhou  dinheiro  pela  chanfana. 

Quando  elle  a  comia,  eram  sempre  os  outros  que  pa- 
gavam. 

Tolentino  só  quer  dinheiro ;  Lobo  até  se  gaba  de  o  não  ter. 

Vejamos,  porém,  como  foi  que  esteve  para  rebentar  nova 
guerra  entre  os  poetas. 

O  soneto  de  Tolentino  não  passou  sem  contestação ;  sahiu 
a  contradictal-o  um  sujeito  chamado  Caetano  Pinto  de  Moraes 
Sarmento. 

O  leitor  não  ouviu  nunca  fallar  d'este  poeta,  certamente. 

E  o  que  eu  mesmo  sei  da  sua  vida  é  apenas  o  que  António 
Lobo  nos  deixou  escripto  acerca  d'elle. 

Era  filho  de  um  barbeiro,  e  parece  que  vaidoso,  aperalvi- 
Ihado,  velhaco,  com  fumos  de  poeta  e  de  fidalguia. 

Lobo  chama-lhe  uôdre  de  vento». 

Da  farailia  dos  Pintos  o  morgado, 
Primeiro  tolo  sem  contrariedade. 

Está  bem  de  ver  que  eram  inimigos,  e  que  Pinto  temia  o 
Lobo,  o  que  zoologicamente  parece  natural- 

Mettendo-se  na  questão  da  chanfana,  não  é  com  o  Lobo 
que  o  Pinto  investe;  mas  com  Tolentino,  sem  respeito  algum, 
porque  lhe  chama  desdenhosamente  —  o  tal  Tolentino. 

Não  é  esta,  senhor,  a  de  que  falia, 

A  chanfana  do  fígado  do  touro, 

Nem  se  aduba  cora  alhos,  nem  com  louro, 

Como  o  tal  Tolentino  quiz  pintal-a. 

Uma  carne,  que  deixam  de  sangral-a, 
Mais  asquerosa  que  a  do  matadouro, 
Com  toucinho,  que  o  ranço  fez  côr  de  ouro, 
E  pedregoso  arroz,  que  o  dente  estala; 

Carneiro  resequido,  e  não  assado, 
Gallinha,  que  mais  conta  que  anno  e  dia, 
Com  os  sêccos  pasteis  sem  ter  picado : 

Eis  aqui  de  que  falia  a  fídalguia  : 
Isto  ó  chanfana,  insípido  bocac^o 
Que  forjam  os  cyclópes  da  ucbaria» 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  261 


Vem  mais  um  poeta,  também  obscuro,  Luiz  Joaquim  da 
Frota,  e  envolve-se  na  contenda,  passando  em  revista  o  que  os 
outros  disseram  sobre  a  chanfana : 

Tolentino,  senhor,  foi  quem  traçou 
Da  chanfana  o  retrato  natural; 
Bem  que  sem  pimentão,  toucinho  e  sal, 
Muito  mal  o  guizado  temperou. 

Lobo  apenas  o  Isidro  nos  pintou 
De  turbante  adornado,  e  de  avental; 
Posto  que  uma  imagem  tal  e  qual 
Da  mais  fina  chanfana  nos  mostrou. 

Pinto  toma  os  pincéis  da  phantasia, 
E  subindo  ao  sentido  figurado, 
Fqí  colorir  as  fezes  da  ucharia. 

Seu  quadro  é  bom;  seria  consumado. 
Se  a  sua  tão  creança  fidalguia 
Não  tivera  no  quadro  respirado  I 

Esta  ultima  estocada  ao  Caetano  Pinto  de  Moraes  Sar- 
mento confirma  as  prosapias  de  fidalguia,  que  Lobo  lhe  attri- 
bue.  Frota  também  lhe  ferra  a  unha,  dando  a  entender  que, 
sendo  o  pai  barbeiro,  a  nobreza  da  família,  começando  no  filho, 
era  apenas  recemnascida. 

Felizmente,  este  rompimento  de  hostilidades  não  se  azedou 
mais,  nem  continuou. 

Mas  veja-se  o  mau  sestro  que  teem  os  poetas  de  estar  sem- 
pre em  divergência  uns  com  outros. 

Pelo  que  elles  disseram,  o  príncipe  D.  José  ficaria  sem  per- 
ceber o  que  era  chanfana,  se  os  criados  da  real  ucharia  lh*o 
nao  tivessem  dito  a  preceito. 

O  leitor,  á  falta  de  leccionista  profissional,  também  de  certo 
ficou  sem  uma  nitida  idéa  do  assumpto,  mas  isso  nâo  é  coisa 
que  lhe  deva  causar  grande  desgosto. 

O  que  convém  saber  é  que  António  Lobo  e  os  outros  su- 
cios  foram,  effectivamente,  ceiar  chanfana  ao  Isidro  e  que  o 
poeta,  sem  vintém  na  algibeira,  acceitára  contente  a  ceia  como 
solemne  desaggravo  da  mocada  de  Sacavém. 

Lobo  estava  magnifico  de  pilhéria  n'essa  noite,  como  quem 
nada  se  importava  com  a  resolução  d'este  desagradável  pro- 
blema:  quem  foi  que  lhe  abriu  a  cabeça,  e  porquê? 

João  Xavier  de  Mattos,  apesar  de  ter  feito  protesto  de  não 
comer  chanfana,  por  andar  arrazado  de  saúde  á  conta  de  noi- 
tadas e  ceiatas,  quebrou  o  protesto,  comeu  e  bebeu  bem,  mos- 


262 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


trando-se  tão  alegre  como  nas  suas  melhores  noites  de  chalaça 
e  apetite. 

O  banquete,  como  elle  dizia,  ia  rwoseguindo  animado, 
quando  de  repente  entrou  na  loja  do  Isidro  o  beneficiado  Do- 
mingos Caldas  Barbosa. 

Trazia  cara  de  caso. 

—  O  padre  por  aqui !  Grande  novidade  ha  de  ser ! 


A  ceia  da  chanfana 


Lobo  e  Caldas  davam-se  bem.  Lobo  poupara-o  sempre; 
estimava-o,  e  era  retribuido.  Até,  lastimando  n'um  soneto  a 
sorte  de  ambos,  sobretudo  a  falta  de  dinheiro,  lhe  disse  um  dia  : 


Outra  vida  sigamos,  que  eu  approvo  : 

Faze-te  cego,  eu  moço  malhadiço. 

Se  has  de  levar  um  cão,  levas  ura  Lobo, 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  263 


Caldas,  por  sua  parte,  tinha  um  caracter  leal  e  dedicado. 
Innocencio  diz  a  respeito  d'elle:  «Consta  que  fora  homem  pres- 
tavel  e  estudioso,  de  trato  ameno,  disposto  sempre  a  interes- 
sar-se  por  seus  amigos,  e  a  obsequial-os  no  que  podia,  ainda 
que  alguns  se  houvessem  para  com  elle  ingratamente». 

Pois  a  sua  entrada  na  loja  do  Isidro,  n'aquella  noite,  e  os 
passos  que  já  tinha  dado  antes,  são  a  confirmação  plena  da  in- 
formação que  nos  deixou  Innocencio. 

—  Grande  novidade  ha  de  ser!  insistiu  António  Lobo. 
O  padre  calou-se.  Uma  voz  disse  : 

—  Quem  cala,  consente. 

Apertaram  com  elle  :  que  desembuchasse ;  que  despejasse 
o  sacco;  que  puzesse  as  cartas  na  mesa. 

Finalmente,  Domingos  Caldas  Barbosa  resolveu-se  a  dizer : 

—  O  motivo  da  minha  vinda  aqui  interessa  principalmente 
ao  Lobo.  Se  elle  quizer  conversar  comigo  á  puridade,  dir-lhe- 
hei  o  que  me  trouxe  cá. 

Lobo  olhou  para  elle  e  perguntou : 

—  E'  o  caso  de  Sacavém? 

—  E' 

—  Então,  meu  Caldas,  podes  fallar  em  voz  alta,  e  pôr  tudo 
em  pratos  limpos. 

Isidro,  que  estava  cabeceando  com  somno,  debruçado  no 
balcão,  accordou  a  disse : 

—  Já  lá  vao.  O'  rapaz!  vai  mudar  os  pratos  áquelles.  se- 
nhores. 

Riram-se  do  «qui-pro-quo»  os  commensaes. 
Novamente  instado  por  Lobo,  o  padre  Caldas  contou : 

—  Já  se  sabe  quem  é  o  homem  de  Sacavém. 

—  Já  !  ?  exclamaram  muitas  vozes. 

—  Então  quem  é  o  meu...  assassino?  perguntou  Lobo  sor- 
rindo. 

—  Lá  vamos.  Apenas  me  constou  o  que  tinha  acontecido, 
fui  á  intendência  geral  para  saber  noticias,  pois  constava  que  o 
Lobo  ficara  malferido,  e  até  se  dizia  que  era  já  morto. 

—  Ah!  maroto!  interrompeu  António  Lobo.  Cheirava-te  a 
enterro  rico ! 

Xavier  de  Mattos  reprehendeu-o  : 

—  Deixa  contar  o  caso,  sem  interrupções. 

—  Soube  então,  proseguiu  Barbosa,  que  o  aggressor... 
Lobo  cortando  a  narrativa  : 

—  Linda  e  macia  palavra. . .  para  me  não  oífender. 

—  Chiu!  Cala-te  lá! 

—  Que  o  aggressor  era  filho  de  um  fanqueiro  da  rua  Nova 
da  Princeza. 


264  o    LOBO   DA   MA  DRAGO  A 


Lobo,  muito  admirado : 

—  Filho  de  um  fanqueiro!  Mas  não  conheço! 

—  Conhece-te  elle,  e  tanto  basta,  disse  João  Xavier.  Va- 
mos ao  fim. 

—  E',  continuou  Barbosa,  um  estouradinho  que  não  faz  se- 
não gastar  o  dinheiro,  que  o  pai  honradamente  ganha  vendendo 
pannos  e  lençarias  na  sua  loge. 

—  Como  se  chama?  perguntou  Lobo. 

—  Lourenço  Ramos. 

—  O  pai  ou  o  filho? 

—  O  filho. 

—  Ah!  sim,  disse  JoãO  Xavier.  Tenho  idéa  de  haver  um 
fanqueiro  chamado  Ramos,  ahi  por  pé  do  largo  dos  Torneiros. 

—  Já  lhe  namoraste  alguma  filha  por  força  I  acudiu  Antó- 
nio Lobo. 

—  Homem!  tu  és  peor  que  um  algarvio!  Deixa  fallar  o 
Caldas. 

—  Pois  o  tal  Lourenço  estouradinho,  continuou  o  benefi- 
ciado, está  com  uma  mulher  que  diz  ter  grandes  aggravos  do 
Lobo. 

—  De  mim!? 

—  Sim,  de  ti. 

António  Lobo  ficou  suspenso,  perturbado. 

Mulher  que  pudesse  ter  aggravos  seus,  havia  só  uma,  que 
elle  julgava  incapaz  de  planear  uma  vingança.  Era  There- 
zinha. 

—  E  como  se  chama  essa  mulher? 

—  E'  uma  sécia  de  contrabando. 

—  Ah  !  é  uma  sécia  f  exclamou  António  Lobo,  tão  desoppri- 
mido,  como  se  lhe  houvessem  tirado  de  cima  do  peito  um  peso 
enorme. 

—  Uma  mulher,  disse  o  Caldas,  a  quem  tu,  segundo  ella 
declara,  tolheste  interesses  e  commodos. 

António  Lobo  perguntou  de  repente: 

—  Maria  da  Gloria? 

—  Isso  mesmo. 

—  Ah!  já  sei.  Mas  querer  vingal-a  o  tal  estouradinho!? 
Ainda  se  fosse  outra  pessoa. . . 

—  O  morgado  da  Boa-Vista?  perguntou  Barbosa. 

—  Sim,  o  morgado. 

—  Ella  contou  tudo  na  intendência,  aonde  também  foi  cha- 
mada. 

—  Então  o  que  disse? 

—  Que  o  morgado,  a  quem  tu  foste  dizer  que  ella  te  rece- 
bia na  sua  ausência. . . 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  265 


—  Fui,  sim,  porque  ignorava  que  o  morgado  fosse  o  dono 
da  casa.  Cahi  n'uma  ratoeira  imprevista. 

—  Que  o  morgado,  proseguiu  Barbosa,  a  deixou  logo  que 
o  soube,  e  foi  adejando  para  os  braços  da  Ricarda,  que  ella  con- 
siderava a  sua  primeira  amiga. 

—  Isso  é  a  vulgar  perfídia  do  official  do  mesmo  officio, 
disse  Lobo.  Mas  que  falta  pôde  fazer  á  Maria  da  Gloria  o  mor- 
gado, se  ella  já  tem  o  estouradinho? 

—  E'  sol  de  pouca  dura.  Ella  julga-se  desgraçada,  e  a  ti  o 
auctor  da  sua  desgraça.  Diz  que  nao  te  ha  de  dar  mais  uma 
hora  de  descanso  na  vida. 

—  Ora  essa  !  Tem  graça  ! 

—  Foi  ella  que  induziu  o  peralvilho  a  ir  provocar-te  em  Sa- 
cavém, sabendo  que  tu  não  faltarias  a  uma  tourada  do  Talaia. 
Pois  o  que  é  certo  é  que  lá  estão  ambos  presos  na  intendên- 
cia, ella  e  o  tal  Lourencinho  da  rua  Nova  da  Princeza. 

—  O  que  nSo  é  de  todo  mal  feito,  observou  Lobo. 

—  Sim...  se  a  coisa  ficar  por  aqui. 

—  Pois  ainda  haverá  segundo  acto  da  tragedia? 

—  Maria  da  Gloria  teve  o  despejo  de  dizer  que  ha  de  dar 
comtigo  doido. 

—  Querem  Vossês  vêr,  disse  Lobo  rindo,  que  ainda  me 
acontece  como  ao  Schiattini :  el-rei  tem  pena  de  mim,  e  no- 
mea-me  cantor  da  sua  real  capella! 

E  simulou  querer  afinar  a  voz,  como  se  fosse  cantar,  o  que 
despertou  geral  hilaridade. 

—  Pois  senhores,  disse  elle  d'ahi  a  momentos,  faltava  na 
minha  historia  amorosa  este  baptismo  de  sangue.  Estou  um  ga- 
lan  completo.  Tenho  agora  a  marca  do  sacrificio  na  cachimo- 
nia :  sou  uma  victima  do  amor.  Querem  Vossês  saber  uma 
coisa?  Vou  jogar.  Infeliz  nos  amores,  feliz  no  jogo. 

—  Deixa-te  d'isso,  aconselhou  paternalmente  Domingos 
Caldas  Barbosa. 

—  Não.  Vou  tentar  um  parolim.  Devo  estar  em  sorte,  ou 
não  ha  verdade  nos  provérbios. 

Levantaram-se  da  mesa  alegremente,  e  sahiram. 

O  grupo  dispersou-se.  Uns,  como  Domingos  Caldas  Bar- 
bosa, recolheram-se  a  casa.  Outros  acompanharam  Lobo  á  rua 
dos  Correeiros,  onde,  como  já  sabemos,  o  Mendes  estucador 
dava  tavolagem  a  pontos  conhecidos. 

Lá  encontraram  Nicolau  Tolentino,  muito  embuçado  no  seu 
josésinho  de  camelão. 

João  Xavier  de  Mattos  dirigiu-se  logo  a  elle,  dizendo : 

—  Então,  apesar  de  todos  os  protestos!.. . 

—  Ora,  meu  caro  João  Xavier,  protestos  são  palavras  vans, 


266  o  LOBO   DA   MADRAGÔA 


que  se  repetem  e  desfazem  como  bolas  de  sabão.  Agora  mesmo 
sahiu  d'aqui  um  taful  depennado,  a  jurar  e  a  trejurar  que  não 
jogará  mais.  Ha  de  voltar  amanhã,  se  Deus  quizer. 

E,  a  propósito,  recitou  os  quatro  primeiros  versos  de  um 
soneto  seu: 

Que  tornas  a  apontar,  prometto,  e  attesto; 
Que  eu,  pássaro  bisnau,  fino  garoto, 
Depois  de  já  ter  feito  o  mesmo  voto. 
Jogo  o  que  trago,  e  jogarei  de  resto. 

Depois,  fallando  ao  ouvido  de  João  Xavier,  disse-lhe  To- 
lentino : 

—  Aquillo  do  Lobo  foi  coisa  de  pouca  monta?  Elle  já  está  boml 

—  Não  valeu  nada. 

—  Antes  assim. 

E  logo,  dando  attenção  ao  jogo,  vozeou  Tolentino  ao  ban- 
queiro : 

—  Jogo  doze  vinténs  á  sota  de  copas.  E'  a  minha  dama. 

O  Mendes  estucador  começou  a  tirar  as  cartas,  espremen- 
do-as  entre  os  dedos  queimados  de  cigarro.  Tolentino  perdeu. 
António  Lobo  levantou  o  parolim  que  fizera  e  exclamou  contente : 

—  Está  salva  a  verdade  dos  provérbios  ! 

E,  muito  animado,  continuou  a  jogar  com  audácia,  sendo- 
Ihe  a  sorte  favorável. 

Banqueiro  e  pontos  ficaram  subitamente  assustados,  quando 
d'ali  a  pouco  ouviram  bater  á  porta  por  modo  que  não  era  o 
combinado  com  os  frequentadores  da  casa. 

•—  Serão  os  quadrilheiros  ?  tal  foi  a  anciosa  interrogação  de 
todos  os  olhares. 

Rapidamente  trataram  de  acautelar  o  dinheiro  e  os  bara- 
lhos, e  o  Mendes  mandou  á  porta  a  mulher,  a  illustre  bastarda 
do  duque  de  Cadaval,  como  ella  dizia  vaidosamente,  que  estava 
sempre  á  mão  para  acudir  a  estas  occorrencias,  em  que  o  medo 
aconselhava  todos  os  disfarces  e  prevenções  possíveis. 

Houve  momentos  de  silencio  e  terror. 

Por  fim,  a  solicita  esposa  do  banqueiro  voltou,  sorrindo, 
com  uma  carta  na  mão,  e  disse : 

—  Não  é  nada  de  cuidado :  uma  carta  para  o  sr.  António 
Lobo.  Trouxe-a  um  almocreve  a  quem  primeiro  disseram,  se- 
gundo contou,  que  Vossa  Mercê  tinha  hoje  sido  morto  em  Sa- 
cavém; depois  que  estava  na  loge  do  Isidro;  e  por  ultimo  o 
próprio  Isidro  lhe  disse  que  Vossa  Mercê  devia  estar  aqui.  O 
homem  larga  de  manhã  e  queria  entregar  hoje  a  carta  por  força. 

António  Lobo  olhou  para  a  carta,  olhou  para  os  circum- 
stantes  e  exclamou  furioso  : 

—  Que  mais  teremos  ainda  ? !  Estragaram-me  o  jogo! 


XX 


Pobreza  e  independência 


Felizmente,  a  carta  não  trouxe  más  noticias. 

Pelo  contrario,  era  um  convite  do  padre  capellão  da  Con- 
ceição de  Beja,  antigo  amigo  de  António  Lobo,  instando  com 
elle  para  que  fosse  tomar  parte,  com  alguns  amigos,  no  outeiro 
do  abbadeçado,  que  devia  realizar-se  dentro  de  oito  dias. 

Dizia  o  padre  na  carta  : 

«Traze  quem  quizeres,  comtanto  que  tenha  prenda  de  poeta 
ou  instrumentista.  Poesia  e  musica  é  que  as  minhas  freiras 
querem.  Despezas  todas,  incluindo  as  da  jornada,  pagas  pelo 
convento.  Vai  ser  festa  de  arromba.  Se  precisares  de  algum  di- 
nheiro adeantado,  falia  com  o  almocreve,  que  vai  prevenido. 
Rogo-te  que  não  faltes,  porque  está  a  meu  cargo  a  organização 
do  outeiro,  e  eu  não  quero  ficar  com  cara  de  tolo». 

Lobo  leu  a  carta,  e  disse  para  João  Xavier: 

—  Olha  que  tem  sido  uma  noite  de  sorte !  Vê  isto. 

João  Xavier,  inteirado  do  texto  da  missiva,  mostrou-se 
muito  satisfeito. 

—  Boa  occasião,  alvitrou  elle,  para  eu  reapparecer  por  al- 
guns dias  na  Vidigueira,  á  ida  ou  á  volta. 

—  O  que  não  será  preciso  como  demonstração  de  que  tu  és 
um  funccionario  pontualissimo,  replicou  ironicamente  António 
Lobo. 

—  Não  que  eu  também  quero,  de  passagem,  abraçar  o  meu 


268  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


amigo  dr.  Alho  Mattoso,  na  sua  herdade  de  Villa  de  Frades. 
Ha  que  tempos  pensava  em  ir  fazer-lhe  uma  visita  !  mas  falta- 
va-me  o  melhor. . . 

—  E'  verdade!  apostrophou  António  Lobo.  Agora  por  di- 
nheiro! Onde  está  o  almocreve? 

E  correu  á  porta,  mas  a  mulher  do  Mendes,  sahindo  ao 
corredor,  disse-lhe  que  o  almocreve  entregara  a  carta  e  descera 
logo. 

—  Estávamos  bem  arranjados,  contestou  Lobo,  se  eu  hoje 
n5o  tivesse  a  algibeira  quente! 

João  Xavier,  a  quem,  por  aquelles  motivos,  sorria  a  idéa 
de  ir  ao  Alemtejo,  tratou  immediatamente  de  arrancar  o  Lobo 
á  tavolagem,  e  de  combinar  com  elle  a  partida  para  o  dia  se- 
guinte, receioso  de  que  o  dinheiro  ardesse  com  a  costumada  ra- 
pidez. 

Effectivamente,  graças  aos  esforços  de  João  Xavier,  recru- 
taram alguns  repentistas  e  atravessaram  ao  outro  dia  para  Se- 
túbal, onde  Lobo  quiz  avistar-se  com  o  joven  Santos  e  Silva 
para  o  tentar  a  acompanhal-os. 

—  Que  nao,  que  não  podia,  disse-  lhe  o  moço  poeta,  porque 
nem  o  padrinho  desembargador,  nem  a  sua  querida  Lésbia,  lhe 
permittiriam  uma  nova  ausência  tão  próxima  da  que  fizera 
quando  veiu  a  Lisboa  ouvir  a  Zamperini. 

Conversando  de  assumptos  litterarios,  disse  Santos  e  Silva 
haver  em  Setúbal  um  menino  que  promettia  vir  a  ser  um  grande 
poeta  pela  facilidade  com  que  improvisava  em  convivência  com 
outras  creanças  da  sua  idade. 

—  Como  se  chama?  perguntou  Lobo. 

—  Manuel  Maria  Barbosa  du  Bocage. 

—  Francez  ? 

—  A  mãe  é  de  origem  franceza,  mas  o  pai  é  portuguez  e 
advogado  n'esta  villa. 

—  Que  idade  tem  o  pequeno? 

—  Pouco  mais  de  sete  annos. 

—  E'  assombroso!  Deus  queira  que  elle  não  degenere,  como 
eu  degenerei. 

Santos  e  Silva  sorriu  d'esta  phrase  do  Lobo  e  acompanhou 
o  sorriso  com  um  gesto  negativo  de  cabeça. 

De  Setúbal  seguiu  a  caravana  dos  poetas  para  o  Torrão, 
onde  um  dos  do  rancho  tinha  parentes,  e  do  Torrão  jornadea- 
ram  para  Beja,  através  da  charneca,  nas  tradicionaes  carretas 
puxadas  a  muares,  que  então  constituíam  o  melhor  systema  de 
viação  adoptado  n'aquella  província. 

Era  a  primeira  vez  que  António  Lobo,  bem  como  alguns 
dos  companheiros,  entrava  em  terras  do  Alemtejo. 


o    LOBO   DA    MADRAGÔA 


269 


O  minhoto  é  quasi  sempre  soberbo  dos  bellos  panoramas 
da  sua  província,  e  a  dizer  a  verdade  tem  razão  para  o  ser. 

Comtudo  o  Álemtejo,  posto  que  proporcionalmente  menos 
povoado  e  muito  mais  despido  de  vegetação  que  o  Minho,  offe- 
rece  pela  vastidão  do  território,  pela  amplidão  das  herdades  ou 
das  charnecas,  e  pelos  aspectos  tanto  da  cultura  como  da  vida 
agrícola,  um  interesse  novo  e  picante,  que  prende  a  attenção  do 
homem  do  norte. 

Lobo  ia  observando,  com  viva  curiosidade,  a  physionomia 


Um  «monte»  no  Alem^tejo 


da  província  transtagana,  o  interior  dos  «montes»  onde  pernoi- 
tavamre  comiam,  sendo  sempre  recebidos  com  bizarra  hospita- 
lidade ;  os  usos  e  costumes  domésticos,  os  processo  de  lavoira, 
o  typo  das  mulheres  e  dos  homens,  dos  ciganos,  dos  ganhões, 
dos  maltezes,  dos  pastores,  dos  mendigos  e  das  creanças. 

—  Que  diabo!  dizia  elle.  Aquillo  em  Lisboa  é  uma  Cápua, 
que  enerva  todas  as  actividades  da  vida  humana.  Cai  a  gente 
ali,  e  não  quer  vêr  mais  nada  senão  o  que  todos  os  dias  vê.  E' 
um  captiveiro  voluntário,  onde  se  estraga  pela  estagnação  o 
gosto  de  viver.  Pois,  n'este  nosso  pequeno  paiz,  ha  mais,  ha 
muito  que  vêr  e  admirar;  ha  uma  variedade  cambiante,  que  de- 
leita o  espirito,  sem  quebrar  a  unidade  do  sentimento  nacional. 
Não  sei  se  Vossês  entendem  isto? 

—  O  que  eu  entendo,  retrucava  um,  é  que  mais  depressa. 


270  o   LOBO   DA   MA  DRAGO  A 


n'esta  moedeira  somnolenta  da  carreta  alemtejana,  posso  tritu- 
rar a  espinha  dorsal,  do  que  o  sentimento...  quê?  Como  dis- 
seste tu? 

—  Nacional  é  que  elle  disse,  recordava  outro. 

—  Pois  isso,  menino,  é  que  eu  ainda  não  moí;  o  mais  vai 
tudo  moído. 

—  Bárbaros  I  exclamava  António  Lobo.  Vossês,  em  per- 
dendo de  vista  o  Isidro  e  a  chanfana,  pensam  que  o  mundo 
acabou  !  Pois  ha  aqui  muito  que  admirar  sem  phantasias  de  poeta 
lunático.  Entre  o  Alemtejo  e  a  minha  provincia  noto  differenças 
consideráveis.  O  que  lá  é  propriedade  dividida  e  retalhada,  é  aqui 
extensa  herdade  e  grande  cultura.  O  boi,  esse  pacifico  e  traba- 
lhador animal  do  Minho,  é  aqui  desbancado  pelo  gado  muar, 
que  puxa  a  carreta,  a  carroça  e  a  nora. 

—  Ora  vejam  lá  como  o  Lobo  vai  ralado  de  saudades  pelo 
boisinho  minhoto  l  Limpem-lhe  as  lagrimas;  façam  favor. 

—  Ha  bois  que  valem  mais  do  que  Vossês,  que  nunca  pres- 
taram para  nada. 

—  Pouco  mais  ou  menos  como  tu. 

—  Exacto;  é  por  isso  que  reconheço  a  superioridade  do  boi. 

Passando  por  um  grande  rebanho  de  ovelhas  negras,  guar- 
dadas por  um  pastor  e  dois  cães,  perguntou  Lobo  ao  conductor 
da  carreta : 

—  E'  baldio  este  terreno? 

—  Não,  senhor.  São  terras  que  ficam  de  pousio,  de  trez  em 
trez  annos,  e  servem  para  engordar  os  gados. 

—  Mas  foram  lavradas? 

—  Nós  cá  dizemos  alqueivadas.  Foram,  sim  senhor. 

—  Não  ha  no  Alemtejo  ovelhas  brancas?  Que  diacho!  só 
vejo  ovelhas  pretas! 

—  As  brancas  dão-se  melhor  no  alto  Alemtejo,  lá  para  Por- 
talegre e  Castello  de  Vide. 

—  Ah!  Lobo!  Lobo!  confessa  que  te  faz  falta  um  cordeiri- 
nho  branco  para  compor  um  idyllio ! 

—  Um  idyllio!  disse  elle.  Que  peste!  Eu  nunca  pude  sup- 
portar  as  semsaborias  bucólicas. 

E,  concentrando-se,  António  Lobo  continuava  mentalmente 
o  confronto  entre  o  Alemtejo  e  o  Minho,  invadindo-lhe  o  espi- 
rito, n'uma  penetrante  saudade,  a  doce  recordação  da  sua  pro- 
vincia natal,  especialmente  do  tempo  que  passou  na  Palmeira, 
onde  conheceu  e  amou  Therezinha. 

Nunca,  como  n'essa  viagem  pelo  Alemtejo,  elle  tinha  pen- 
sado tanto  n'ella  desde  que  sahira  do  Porto. 

Pondo  os  olhos  na  monótona  aspereza  de  terras  infindas, 
ou  na  vastidão  de  um  ceu  que  parecia  mais  abrazado  do  que 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  271 


luminoso,  onde  de  vez  em  quando  passavam  aves  de  rapina,  a 
águia  e  o  milhafre,  António  Lobo  reconstituía  a  paizagem  mi- 
nhota, a  terra  verde,  o  rio  claro,  o  céu  azul,  o  canto  das  aves, 
a  mulher  cantando. 

Mas  a  única  mulher  do  Minho  que  elle  via  n'essa  hora,  na 
tortura  de  uma  recordação  suave,  era  aquella  linda  cachopa  de 
Villalva,  sempre  cantando,  trabalhando  e  sorrindo. 

—  O  que  será  feito  d'ella?  perguntava  a  si  mesmo.  Talvez 
casasse  com  o  pobre  Miguel. 

Mas  o  seu  coração  queria  repellir  esta  hypothese,  que  des- 
valorisava  a  lealdade  e  a  dedicação  de  Therezinha. 

Depois,  como  que  procurava  justifical-a  se  isso  tivesse 
acontecido : 

—  Sim,  casou  decerto.  E'  bem  natural  que  o  fizesse.  Pois 
havia  de  estar  á  espera  de  um  noivo,  que  não  podia  voltar 
nunca? 

E  recordava-se,  nitidamente,  do  primeiro  e  único  beijo  que 
lhe  furtara,  no  dia  em  que  abandonou  a  Palmeira:  parecia-lhe 
sentir  ainda  nos  lábios  o  contacto  de  uma  face  macia  e  casta 
como  a  pétala  de  uma  rosa. 

—  O  beijo,  pensava  elle,  recebe  o  fluido  magnético  do  corpo 
em  que  toca :  é  puro  ou  impuro  não  pela  intenção  de  quem  o 
dá,  mas  pelo  fluido  que  absorve.  Um  beijo  pôde  ser  malicioso, 
mas  se  fôr  dado  n'uma  mulher  honesta,  é  como  a  onda  que  vae 
quebrar-se  n'uma  roca  de  coral.  E  se  a  mulher  não  fôr  vir- 
tuosa, o  beijo  mais  innocente  inflamma-se,  arranca  uma  cente- 
lha como  o  fuzil  á  pederneira. 

E  jurava  a  si  mesmo  que,  no  beijo  que  furtou  á  Therezi- 
nha, a  innocencia  d'ella  o  purificou  tanto  n'esse  momento  como 
se  fosse  uma  agua  lustral  cahindo  dentro  da  sua  alma  e  sa- 
grando-a. 

Foi  sob  todo  este  influxo  de  recordações  saudosas  que  elle 
avistou  os  muros  negros  de  Beja  e  a  negra  Torre  de  Menagem, 
rodeados  de  campinas  mortas  e  silenciosas,  onde  raras  man- 
chas verdes  de  olival  ou  vinha  quebravam  a  monotonia  da  cul- 
tura dos  cereaes. 

Sentia-se  triste  e  acabrunhado;  suppunha-se  a  mil  léguas 
de  distancia  das  povoações  alegres  e  cantantes  do  seu  Minho 
luminoso. 

—  Tu  vaes  meditabundo,  ô  Lobo ! 

—  Ainda  choras  pelo  bolsinho  trabalhador? 

—  E  a  ovelhinha  branca,  que  pena! 

—  Diabo !  disse  Lobo.  Em  Guimarães  as  pedras  negras  do 
castello  e  da  muralha  não  são  tão  feias  como  estas! 

E  logo,  disfarçando  os  seus  pensamentos,  acrescentou: 


272 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Hei  de  vingar-me  de  toda  esta  fadiga  na  ucharia  e  gar- 
rafeira das  freiras. 

—  Evohé!  gritou  um. 

—  Por  Marianna  Alcoforado  !  berrou  outro. 

—  Irra !  regougou  António  Lobo.  Não  me  íallem  de  mulhe- 
res que  escrevem  cartas  delambidas!  Isso  é  gentinha  que  eu 
não  posso  soffrer. 

O  capellão  do  convento  recebeu-os  com  grande  alegria  e 
levou-os  para  a  hospedaria  que  lhes  fora  destinada. 

Era  uma  casa  de  taipa,  isto  é,  com  paredes  de  terra  com- 


Beja 


primida,  camadas  de  cal  e  pedras  miúdas;  e  com  pavimentos 
de  tijolo. 

—  Que  diabo  de  casas  estas!  exclamava  Lobo.  Não  ha 
pedra? 

—  Falta  nas  visinhanças  da  cidade. 

—  E  não  ha  madeira  para  assoalhar  as  casas? 

—  Também  não  ha. 

—  Então  o  que  teem  Vossês  cá?  perguntou  Lobo. 

—  Teem  freiras,  e  já  não  é  mau,  respondeu  um  dos  poetas. 
O  capellão,  muito  risonho,  explicou-lhes  que  o  abbadeçado 

tinha  d'esta  vez  maior  brilho  por  ser  o  primeiro  que  no  con- 
vento da  Conceição  se  fazia  depois  que  o  illustre  bispo  Cená- 
culo regia  a  diocese. 

Era,  pois,  uma  dupla  homenagem  ao  prelado  e  á  abbadeça. 

E,  para  lisonjear  os  seus  hospedes,  foi-lhes  mostrar  um 
esconço  onde  estava  a  garrafeira  que  elles  deviam  esgotar,  uma 
formidável  bateria  de  garrafas  cheias  do  melhor  vinho  de  Beja, 
de  Cuba,  da  "Vidigueira  e  de  Ferreira. 

—  Gaspite  1 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  273 


—  Bravo! 

—  ((Per  Baccho !» 

Depois  do  abba(ieça(io,  cujas  festas  constituíram  um  bri- 
lhante triciuo,  ainda,  a  instancias  das  freiras,  se  demoraram  os 
vates  mais  trez  dias  em  folguedos  que  deram  brado. 

Fallou-se  muito  de  uma  ceia  que  elles  promoveram  para  se 
divertir  á  custa  de  um  rapaz,  que  os  servia  como  criado. 

Metteram-lhe  na  cabeça  que  o  nome  romano  de  Beja,  «Pax 
Júlia»,  se  referia  a  uma  illustre  matrona,  que  no  tempo  de  Jú- 
lio César  ali  passou  de  viagem  e  casou,  por  paixão,  com  um 
camponez  lusitano,  sendo  esta  a  primitiva  origem  da  cidade. 

—  Pois  tu  nunca  tinhas  ouvicio  fallar  na  D.  Júlia?  pergun- 
tava António  Lobo  ao  criado. 

—  Ouvia  algumas  vezes  fallar  em  Júlia,  sim,  senhor;  mas 
a  historia,  tão  explicada,  ninguém  m'a  tinha  contado  ainda. 

—  Ficas  agora  sabendo  que  Vossês,  os  de  Beja,  são  filhos 
de  uma  fidalga  romana ;  e  quem  sabe  se  seria  teu  parente  o  ra- 
paz com  quem  ella  casou? 

—  Não  que  eu  não  tenho  parentes. 

—  Como  não  tens  parentes? 

—  Sou  engeitado. 

—  Mais  uma  razão:  podes  ser  o  representante  longínquo 
de  alguma  fragilidade  de  D.  Júlia,  que  nas  romanas  não  havia 
que  fiar.  Pois,  amigo,  vamos  remir  a  vossa  ingratidão,  reali- 
zando amanhã  uma  ceia  de  despedida  para  honrar  a  memoria 
da  preclara  D.  Júlia,  illustre  matrona,  sétima  filha  de  Sexto 
Pompeu,  o  qual  casou  oito  vezes,  e  teve  nove  mulheres,  porque 
uma  foi  illegitima. 

A  ceia  eífectuou-se,  e  a  ella  assistiram  o  capellão  das  frei- 
ras e  outros  bejenses  de  bom  humor. 

Ficou-se-lhe  chamando  «a  ceia  de  D.  Júlia»,  e  esta  expres- 
são servia  depois,  n'aquella  cidade,  durante  os  últimos  annos 
do  século  XVIII,  para  designar  alguma  comesaina  formidável, 
copiosamente  regada  de  vinhos. 

António  Lobo,  que  não  gostara  da  cidade,  gostou  da  vida 
que  ali  teve  n'esses  alegres  oito  dias;  e  a  lembrancja  de  The- 
rezinha  esvaiu-se-lhe  nos  fumos  bacchicos  que  o  traziam  con- 
tente e  folgado. 

João  Xavier  de  Mattos  quiz,  após  breve  demora  na  Vidi- 
gueira, leval-o  comsigo  para  Villa  de  Frades,  em  visita  ao 
dr.  Joaquim  António  Alho  Mattoso,  *  e  fácil  foi  captar-lhe  a 
annuencia. 


^  Foi  este  bacharel,  em  cuja  casa  Mattos  falleceu  mais  tarde^  que  o  man- 
dou sepultar  n&  egreja  matriz  e  pôr-lhe  um  epithaphio  sobre  a  campa  (1789). 

18 


274  o   LOBO   DA   MADRÂGÔA. 


Os  outros  poetas  seguiram  directamente  para  Lisboa. 

Na  herdade  do  dr.  Alho  Mattoso  teve  António  Lobo  occa- 
sião  de  observar  mais  deitdamente  a  vida  alemtejana,  cujos  as- 
pectos tanto  o  haviam  interessado  durante  a  jornada  para  Beja. 

Dentro  d'essa  herdade  havia  um  mundo  que  elle  desconhe- 
cia inteiramente :  era  pelo  menos  uma  vasta  cidade,  fechada  por 
muros  brancos,  contendo  uma  abundante  população  agrícola  de 
homens,  mulheres,  creanças,  animaes  domésticos  e  bestas  de 
trabalho. 

O  «monte»  ficava  sobre  uma  collina,  n'um  dos  extremos  da 
herdade:  «monte»  quer  dizer  a  casa  de  habitação  do  dr.  Alho 
Mattoso,  á  qual  se  agrupavam  outros  edifícios  menores,  depen- 
dências suas. 

Sentia-se  ali  dentro  a  riqueza  e  a  abundância,  provenien- 
tes de  uma  grande  propriedade  agrícola. 

Solteirão  maior  de  quarenta  annos,  o  dr.  Mattoso  vivia 
com  todos  os  regalos  e  commodidades  que  sobejariam  á  vida, 
pacifica  e  farta,  de  uma  família  numerosa. 

Quando  António  Lobo  viu  a  despensa,  declarou-se  assom- 
brado deante  das  grossas  mantas  de  toucinho,  empilhadas  em 
salmoira,  e  das  varas  de  paios,  chouriços,  linguiças,  cacholei- 
ras,  farinheiras  e  murcellas,  que,  pendentes  do  tecto,  comple- 
tavam o  fumeiro;  dos  potes  de  azeite,  das  azadas  de  queijo,  das 
talhas  de  azeitonas,  dos  balaios  de  ovos,  das  saccas  de  arroz, 
dos  costaes  de  bacalhau,  como  elle  nunca  tinha  visto  nem  em 
Guimarães,  nem  na  Palmeira,  onde  as  ucharias  dos  frades  pa- 
reciam reles  despensas  comparadas  com  a  de  um  rico  celiba- 
tário do  Alemtejo. 

—  Santo  Deus!  exclamou  António  Lobo.  E  lembrar-se  a 
gente  de  que  em  Lisboa  se  celebra  a  gloria  da  chanfana,  como 
sendo  uma  coisa  digna  de  preoccupar  o  espirito  de  um  prín- 
cipe 1 

O  dr.  Alho  Mattoso,  mostrando-lhe  a  sua  casa,  levou-o 
também  á  cosinha,  vasta,  com  uma  lareira  enorme,  onde  o  fogo 
chammejava  constantemente.  Dir-se-ia  que  se  estava  n'um  mos- 
teiro; em  Tibães,  por  exemplo.  Todo  o  arsenal  culinário,  em 
cobre,  ferro,  estanho,  arame  e  barro  revestia  as  paredes  de  alto 
a  baixo,  sumptuosamente,  espelhando  os  clarões  rubros  da  la- 
reira, onde  a  lenha  estalava  ardendo. 

Depois  o  dr.  Mattoso  mostrou-lhe  os  celleiros,  aqueijeira, 
as  cavallariças,  os  palheiros,  a  atafona,  o  laneiro,  a  pocilga,  a 
capoeira,  o  pombal,  o  forno,  em  cuja  «alpendorada»  dormiam 
os  maltezes  e  os  mendigos;  as  arrecadações  de  carros  e  appa- 
relhos  de  lavoura;  as  arribanas  do  gado;  o  casão  do  carpin- 
teiro; emfim,  todo  esse  conjunto  de  variadas  dependências  de 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  275 


um  «monte»,  a  que  no  Alemtejo  se  dá  o  nome  genérico  de  «ca- 
banas». 

António  Lobo  senlia-se  divertido  e  feliz  dentro  d'esta  coló- 
nia agrícola,  espécie  de  cidade  e  de  campo,  onde  fremiam  acti- 
vidades, laboravam  officinas,  e  se  confundiam  no  ar  os  ruidos 
das  ferramentas  e  dos  utensílios  de  trabalho  com  as  vozes  dos 
animaes  e  dos  homens;  e  onde  havia  ociosos  e  inúteis,  parasi- 
tas e  vadios,  desconhecidos  suspeitos,  criminosos  errantes,  ci- 
ganos pilharengos,  a  escoria  vil  que  nas  grandes  cidades  cos- 
tuma viver  da  esmola,  da  burla  e  do  furto. 

Entretinha-se  a  observar  a  lida  rural,  os  processos  de 
cultura,  a  labuta  quotidiana  do  Alemtejo;  mas  o  que  principal- 
mente lhe  prendia  a  attenção  era  a  fauna  transtagana,  sobretudo 
o  pária,  o  lixo  humano,  a  que  elle  chamava  «seu  irmão»:  o 
maltez  que  a  herdade  alimenta  e  que  diz  mal  do  proprietário, 
quando  á  noite,  em  voita  da  fogueira,  tem  a  barriga  cheia  de 
assorda  ou  atabefe;  o  cigano,  acampado  á  parte,  quasi  sempre 
junto  ás  medas  de  lenha;  a  creança,  malteza  vagabunda,  sem 
família  e  sem  guia,  que  é  ali  acolhida  caridosamente  como  n'um 
asylo  protector  e  que  ali  permanece  regenerada;  o  adventício, 
o  caldeireiro,  o  vendedor  ambulante,  que  vem  de  toda  a  parte, 
sem  passaporte,  nem  íolha  corrida,  e  que  no  «monte»  encontra 
hospitalidade  e  tolerância. 

—  Grande  terra  o  Alemtejo!  dizia  António  Lobo,  onde  os 
vadios  como  eu  podem  contar  com  o  pão  nosso  de  cada  dia  sem 
terem  que  pedíl-o  a  Deus  Nosso  Senhor!  Terra  de  hospitali- 
dade e  protecção,  onde  a  fome  não  existe,  e  a  cosinha  de  um 
«monte»  é  a  cosinha  de  toda  a  gente.  Creia  Vossa  Senhoria, 
dizia  elle  ao  dr.  Alho  Mattoso,  que  me  parece  que  já  d'aqui  não 
saio  mais,  porque  a  minha  cara  de  certo  lhe  inspirará  mais 
confiança  que  a  de  um  desconhecido  barbadão  que  eu  vejo  ha 
dias  na  herdade,  e  que  Vossa  Senhoria  não  sabe  quem  é,  nem 
isso  lhe  importa. 

—  Esteja  o  tempo  que  quizer,  meu  caro  Lobo,  respondia- 
Ihe  o  generoso  hospedeiro,  pois  que  somos  dois  a  folgar  com  a 
sua  demora,  o  Mattos,  que  já  parece  vender  saúde,  e  eu,  que 
lenho  a  companhia  de  duas  pessoas  cuja  conversação  litteraria 
e  convivência  amena  são  deleitosa  distracção  aos  meus  cuida- 
dos e  aborrecimentos  de  celibatário. 

O  dr.  Alho  Mattoso  proporcionava  aos  seus  dois  hospedes 
excursões  de  recreio  e  festas  campestres  para  os  ter  sempre 
entretidos,  pois  que  em  verdade  desejava  demoral-os. 

Percorreram  juntos  as  melhores  herdades  circumvisinhas, 
em  Cuba,  Selmes,  Vidigueira,  SanfAnna  e  Villalva. 

—  Pois  também  aqui  ha  Villalva  1  exclamou  António  Lobo, 


276  o   LOBO   DA   MA  DRAGO  A 


impressionado,  quando  ouviu  nomear  a  freguezia  d'este  nome. 

—  Ha,  respondeu  o  dr.  Mattoso.  Havemos  de  lá  ir  visitar 
a  Gandra,  propriedade  de  uma  senliora  tão  respeitável  como 
distincla. 

Lobo  fallava  muitas  vezes,  desde  então,  no  passeio  a  Vil- 
lalva. 

—  Esse  nome  deu-lhe  no  golto !  dizia  o  dr.  Mattoso. 

—  E'  que  também  no  Minho  ha  uma  povoação  assim  cha- 
mada. 

A  Villalva  alemtejana,  freguezia  limitrophe  com  a  de  Villa 
de  Frades,  fica  na  vertente  septentrional  de  uma  ramificação  da 
serra  d'Alpedreira. 

Desce  sobre  a  planície,  e  é  banhada  por  uma  ribeira  que 
vae  desaguar  na  de  Odivellas. 

A  herdade  da  Gandra  pertencia  n'esse  tempo,  como  o 
dr.  Alho  Mattoso  dissera,  a  uma  senhora,  D.  Maria  Engracia 
Bellem,  viuva  rica  e  quasi  sexagenária,  que  fez  amável  acolhida 
ao  jurisconsulto,  seu  visinho,  e  aos  dois  hospedes  que  elle  lhe 
apresentou. 

Ao  cabo  de  vinte  e  quatro  horas,  quando  pensavam  em  re- 
tirar-se,  D.  Maria  Engracia  pediu-lhes  que  se  demorassem  mais 
alguns  dias,  mostrando-se  encantada  com  a  presença  dos  dois 
poetas,  especialmente  de  António  Lobo,  cujos  ditos  chistosos  a 
divertiam  immensamente. 

—  O  marido  d'esta  senhora,  dizia  o  dr.  Mattoso,  era  um 
lavrador  taciturno,  bom  homem,  mas  sombrio,  que  fallava 
pouco  e  só  tratava  dos  seus  negócios.  De  modo  que  D.  Maria 
Engracia  parece  apreciar  muito  o  seu  género,  meu  caro  sr.  Lobo, 
não  só  por  ser  novo  sob  este  tecto,  mas  também  pouco  vulgar 
na  nossa  província,  onde  os  aspectos  da  natureza  e  as  condi- 
ções da  existência  tornam  o  homem  pouco  expansivo  e  alegre. 

Por  sua  parte,  D.  Maria  Engracia  dizia  ao  dr.  Alho  Mat- 
toso : 

—  Peço  ao  meu  bom  visinho  que  retenha  na  minha  casa  os 
seus  hospedes,  porque  elles  são  como  um  raio  de  luz  que  en- 
trou aqui  e  desassombrou  o  meu  espirito.  Não  tenho  filhos,  não 
tenho  família,  passo  semanas,  mezes,  annos  até,  que  não  fallo 
senão  com  os  meus  criados  ou  com  o  meu  abegão,  porque  as 
visitas  são  raras  e  cerimoniosas.  Com  a  chegada  de  Vossa  Se- 
nhoria e  dos  seus  companheiros  entrou  aqui  a  alegria.  Então 
este  sr.  Lobo,  ainda  mais  que  o  sr.  João  Xavier,  é  dotado  de 
um  génio  tão  jovial,  que  ninguém  pôde  estar  triste  ao  pé  d'ellel 
Estimável  pessoa  o  sr.  António  Lobo! 

—  Minha  senhora,  replicava-lhe  Lobo,  eu  não  sou  o  que 
pareço ;  sou  muito  peor.  A  minha  graça,  se  a  tenho,  é  como  o 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  277 


assucar  que  os  boticários  deitam  nas  drof^as  amargas,  para  que 
os  doentes  possam  engulil-as  melhor.  Tenho  o  azedume  pró- 
prio de  todos  os  inúteis  e  de  todos  os  pobretões,  que  a  cada 
momento  se  despeitam  por  encontrar  em  toda  a  parte  uma  pes- 
soa mais  feliz  do  que  elles. 

—  Um  homem  intelligente,  contestava  D.  Maria  Engracia, 
nunca  é  inútil;  e  se  não  é  rico,  tem  direito  a  aspirar  a  uma  si- 
tuação em  que  deixe  de  o  não  ser. 'Vossa  Mercê,  íóra  de  Lis- 
boa, mudaria  completamente  o  seu  teor  de  vida,  teria  menos 
distracções,  mas  talvez  mais  commodidades;  sobretudo,  teria 
paz  e  saúde,  que  lhe  fariam  perder  o  azedume  de  que  se  queixa, 
e  que  aliás  não  enxergo. 

Lobo,  ouvindo-a,  dizia  comsigo  mesmo: 

—  E'  curioso!  Que  estranha  influencia  tem  este  nome  de 
Villalva  no  meu  destino  1  Na  Villalva  do  Minho,  encontrei  o 
coração  de  uma  rapariga,  tão  linda  como  a  sua  aldeia.  Na  Vil- 
lalva do  Alemtejo,  mais  árida  e  triste,  venho  encontrar,  cuido 
eu,  o  coração  de  uma  viuva  rica  e  velha! 

Escusado  será  dizer  que,  preoccupado  com  esta  singular 
coincidência,  o  pensamento  de  António  Lobo  fugia  para  a  Vil- 
lalva do  Minho. 

João  Xavier  de  Mattos  disse  um  dia  a  Lobo,  na  presença 
do  dr.  Alho  Mattoso: 

—  Homem !  casa  com  a  velha.  Tu  ainda  não  percebeste  que 
ella  morre  por  ti? 

António  Lobo  sorriu-se. 
O  dr.  Mattoso  acrescentou : 

—  Se  Vossa  Mercê,  sr.  Lobo,  me  permitte  liberdades,  a 
que  eu  não  tenho  direito  ainda  por  ser  o  mais  recente  dos  seus 
amigos,  comquanto  na  sinceridade  possa  igualar  os  que  mais 
antigos  forem,  dir-lhe-hei  que  seria  um  óptimo  casamento.  Esta 
senhora,  com  ser  idosa,  é  de  presença  e  trato  agradável,  como 
vê.  Quanto  a  honestidade,  não  se  lhe  conhece  uma  falta.  A  sua 
casa  vale  um  punhado  de  mil  crusados.  Um  tio  do  marquez  de 
Olhão,  homem  violento,  tem  procurado  captar  a  estima  de  D.  Ma- 
ria Engracia,  sem  que  ella  se  mostre  resolvida  a  desposal-o, 
certamente  por  lhe  conhecer  o  génio  e  calcular  também  que  o 
único  móbil  a  que  elle  obedece  é  o  dinheiro.  No  Alemtejo,  meu 
caro  sr.  Lobo,  ha  uma  fidalguia  de  coração  que  se  não  julga 
inferior  á  fidalguia  de  raça. 

—  Creio  bem,  respondeu  Lobo;  e  Vossa  Senhoria  o  está 
demonstrando  agora  com  as  suas  boas  palavras.  Mas  o  casa- 
mento é  para  mim  como  um  hieroglypho  do  Egypto:  não  o 
sei  lêr. 

João  Xavier  acudiu  do  lado: 


278  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Eu  tenho-me  dado  a  estudar,  estes  dias,  o  coração  da 
mulher  aos  sessenta  annos.  E'  como  um  rescaldo  suave,  que 
nSo  abrasa,  mas  aquece.  Esta  senhora  está  namorada  de  ti,  sem 
faceirice  ridícula,  nem  obstinação  impetuosa.  Conserva  a  digni- 
dade no  amor,  a  temperatura  calma  de  quem,  sentindo  ainda  o 
coração,  pondera  claramente  as  responsabilidades  dos  seus  an- 
nos. 0£ferece-te  a  sua  riqueza,  a  sua  casa,  o  seu  affecto,  e  con- 
segue fazel-o  sem  te  vexar  e  sem  vexar-se.  O  teu  próprio  des- 
interesse parece  captival-a  ainda  mais,  porque  só  está  habituada 
a  que  lhe  cobicem  o  dinheiro. 

—  E  n'uma  coisa  também  eu  por  minha  vez  tenho  repa- 
rado, disse  o  dr.  Alho  Mattoso.  Nos  primeiros  dias,  D.  Maria 
Engracia  deu  á  sua  casa  um  ar  de  festa,  promovendo  bailes  e 
descantes  dos  ganhões,  saltos  dos  ciganos,  e  uma  corrida  de 
novilhos.  Mas  desde  que  Vossa  Mercê  lhe  despertou  algum 
affecto,  ella  aproveitou  habilmente  a  nossa  aprendizagem  do  is- 
que, para  reimprimir  á  sua  casa  a  feição  de  tranquillidade  ha- 
bitual e  mostrar  a  Vossa  Mercê  a  pacifica  vida  que  o  pôde  es^ 
perar  aqui,  ao  lado  d'ella. 

—  Já  uma  vez,  replicou  Lobo,  eu  poderia  ter  casado  em 
condições  de  muito  menor  abastança,  mas  de  bem  maior  felici- 
dade. . .  O  meu  génio,  o  meu  instincto  de  liberdade  e  indepen- 
dência, por  ventura  a  imposição  do  meu  destino,  venceu  o  co- 
ração, contrariou  esse  ephemero  e  delicioso  sonho.  Não  casei 
então  que  era  moço;  hoje  começo  a  envelhecer  e  tenho  já  in- 
vencíveis hábitos  de  solteirão  libérrimo.  Vossa  Senhoria,  em 
matéria  de  casamento,  lembra  um  pouco  frei  Thomaz:  olha  para 
o  que  elle  diz,  não  olhes  para  o  que  elle  faz. 

Ao  cabo  de  oito  dias,  o  dr.  Alho  Mattoso  disse  aos  dois 
poetas  que  não  podia  abandonar  por  mais  tempo  a  sua  casa,  e 
combinou-se  que  na  madrugada  seguinte  se  despediriam  da  il- 
lustre  hospedeira. 

Quando  D.  Maria  Engracia  soube  isto,  mostrou -se  pre- 
occupada.  Durante  a  partida  do  isque,  ella  tinha  hesitações  so- 
bre as  cartas  que  devia  jogar  ou  que  já  haviam  sabido.  A  me- 
moria falhava-lhe  n'essa  noite.  No  fim  do  jogo,  resolveu-se  a 
chamar  António  Lobo  de  parte  e  a  dizer-lhe: 

—  Vejo-me  embaraçada  para  significar  a  Vossa  Mercê 
quanto  eu  desejaria  que  continuasse  a  viver  em  Villalva,  n'esta 
mesma  casa,  como  senhor  d'ella  e  marido  da  proprietária. 

—  Minha  senhora,  respondeu  Lobo,  eu  agradeço  profunda- 
mente o  testemunho  de  estima  que  me  dispensa,  e  a  que  me 
confesso  grato.  Mas  eu  seria  um  marido  intolerável,  por  que 
sou  um  espirito  rebelde  ao  casamento;  contentar-me-hei  com 
ser  um  sincero  venerador  de  Vossa  Senhoria. 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  279 


E  beijou-lhe  respeitosamente  a  mão. 

—  Que  tolo!  dizia  d'ahi  a  momentos  João  Xavier. 

—  Ali!  meu  caro  sr.  Lobo!  ousou  dizer  o  dr.  Mattoso.  Isso 
é  o  que  se  chama  atirar  a  felicidade  pela  janella  fora.  Chame-me, 
embora,  frei  Thomaz.  Fallo-lhe  com  toda  a  minha  franqueza  de 
alemtejano. 

Prolongou-se  durante  trez  mezes  a  estada  de  João  Xavier 
e  António  Lobo  na  herdade  do  dr.  Alho  Mattoso. 

Voltaram  algumas  vezes  á  Gandra,  e  ahi  passaram  dias, 
sendo  Lobo  sempre  recebido  com  o  mesmo  affectuoso  acolhi- 
mento. 

D.  Maria  Engracia  nao  revelava  o  menor  despeito,  antes 
timbrava  em  significar  ao  poeta  a  constância  de  um  sentimento 
discreto,  mas  sincero. 

Lobo  era  sempre  o  mesmo  homem,  jovial,  communicativo 
6  sarcástico. 

Passara  os  quarenta  annos  sem  quebra  do  bom  humor,  do 
génio  mordaz  que  lhe  conhecemos  desde  a  mocidade. 

Envelhecia  rindo,  podendo  facilmente  conter  as  recordações 
saudosas  do  passado,  por  mais  que  intimamente  o  pungissem. 

Duas  coisas,  dizia  elle,  me  contentam  da  inutilidade  da  mi- 
nha vida:  ter  a  algibeira  leve,  e  a  consciência  tão  leve  como  a 
algibeira. 

Também  costumava  traduzir  esta  mesma  idéa  por  um  ri- 
fão, que  elle  declarava  ter  adoptado  como  divisa:  «Pobrete,  ale- 
grete» . 

Todos,  na  herdade,  a  partir  do  dr.  Mattoso,  gostavam  de 
António  Lobo,  que  umas  vezes  conversava  com  os  ciganos, 
outras  com  os  maltezes,  agora  com  os  velhos,  logo  com  as 
creanças. 

—  Como  Vossa  Mercê  pôde  entreter-se  com  essa  gente! 
dizia-lhe  a  miude  o  dr.  Mattoso. 

—  A  minha  resposta  é  sempre  a  mesma,  contestava  Lobo. 
Ouvindo-os,  folheio  mentalmente  o  grande  livro  da  vida,  a  his- 
toria da  humanidade,  que  é  o  maior  de  todos  os  dramas,  uma 
tragedia  monstruosa. 

Certo  dia  explanou  esta  resposta,  dizendo: 

—  E  sabe  Vossa  Senhoria  uma  coisa?  E'  que  eu  sinto-me 
perto  d'esses  desgraçados.  Com  um  pouco  menos  de  intelligen- 
cia,  teria  nascido  igual  a  elles,  e  então,  em  vez  de  dormir  n'um 
dos  melhores  quartos  do  «monte»,  dormiria  na  «alpendorada» 
do  forno;  e,  em  vez  de  comer  gallinha  ou  abetarda  á  mesa  de 
Vossa  Senhoria,  comeria  sopas  com  toucinho  no  meio  dos  mal- 
tezes. 

O  dr.  Mattoso,  escutando- o,  dizia  comsigo  mesmo: 


280  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Singular  homem  este,  que  não  tem  onde  cahir  morto,  e 
recusa  ser  o  dono  da  Gandra ! 

Uma  vez,  no  intuito  de  prevenil-o  contra  quaesquer  peri- 
gos, o  dr.  Mattoso  aproveitou  o  primeiro  ensejo  para  dizer-liie: 

—  Vossa  Mercê  conversa  muito  com  as  ciganas,  especial- 
mente com  as  raparigas,  e  consinta  que  o  avise  de  que,  entre 
esta  raça  cosmopolita,  os  homens  são  intransigentes  quanto  á 
honra  das  mulheres.  Poder-se-ia  pagar  caro  um  delicto,  que 
contrariasse  o  sentimento  geral  da  raça. 

—  Sei  perfeitamente;  mas  em  todo  o  caso  agradeço  a  boa 
intenção  do  aviso.  Não  ha  malícia  no  meu  trato  com  as  ciga- 
nas; apenas  curiosidade  de  observar  costumes  e  praticas  in- 
teressantes, se  bem  que  exóticas.  Prefiro,  naturalmente,  con- 
versar com  as  raparigas,  porque  a  cigana  é  precoce,  e,  depois 
dos  vinte  annos,  começa  a  envelhecer;  até  os  olhos,  que  são 
dois  bellos  luzeiros,  principiam  a  apagar-se.  Gosto  que  ellas  me 
contem  um  pouco  da  sua  raça;  eu  entretenho-me  a  perscrutar 
o  que  posso.  Até  já  sei  canções  das  ciganas.  Quer  Vossa  Se- 
nhoria ouvir? 

E,  com  o  seu  bom  humor  habitual,  António  Lobo  cantou  : 

A*  noche  estube  en  chique, 
Dama,  para  pirabar-te ; 
Pó,  non  ha  podido  sé, 
Qu'e&tabas  con  el  avate. 

O  dr.  Mattoso  ria  de  o  ouvir  cantar  em  rumanho. 

—  Ora  agora,  proseguiu  Lobo,  para  ser  inteiramente  leal 
com  Vossa  Senhoria,  dir-lhe-hei  que  outro  dia  uma  das  cigani- 
tas,  que  traz  na  ponta  das  tranças  um  laço  de  fita  verde. . . 

—  Bem  sei;  é  talvez  a  mais  bonita. 

—  Isso  mesmo...  se  me  ofifereceu  para  ir  ser  minha  criada 
em  Lisboa. 

—  Pois  não  é  vulgar.  Ellas  não  se  desaggregam  facilmente 
da  sua  raça  e  dos  seus  costumes.  E  Vossa  Mercê  o  que  lhe 
respondeu? 

—  Que  eu  nunca  tive  criados  em  parte  nenhuma. 

—  Bem  respondido!  observou,  sorrindo,  o  dr.  Mattoso,  por 
que  podia  ser  uma  grande  cilada. 

—  Perdão!  bem  respondido,  porque  é  uma  grande  verdade. 
Uma  vez  vieram  cartas  de  Lisboa  para  João  Xavier  de 

Mattos. 

—  Que  vai  lá  por  essa  Sodoma?  perguntou-lhe  António 
Lobo. 

—  Queres  vêr? 

—  Nao. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  281 


—  Mas  queres  saber? 

—  Dize. 

—  Ainda  que  te  seja  desagradável? 

—  Isso  é-me  indifferente.  Pois  ainda  ha  alguém  em  Lisboa 
que  tenha  tempo  para  se  lembrar  de  mim?  Quem  é? 

—  Maria  da  Gloria. 

—  Então  nao  é  ninguém.  Mas  dize  sempre. 

—  Conta  aqui  o  Barbosa  que  ella  tem  espalhado  que  fugiste 
de  Lisboa  com  medo  da  sua  vingança  implacável. 

Lobo  ficou  um  momento  pensativo,  e  disse: 

—  Sim...  ha  trez  mezes  que  andamos  por  fora.  Prefiro  nSo 
ter  vergonha  a  ter  medo.  Amigo,  vamos  embora,  e  ha  de  ser 
hoje  mesmo. 

—  Que  diabo  de  tolice ! 

—  Hoje  mesmo. 

E  d'aii  a  horas  partiam  do  Alemtejo  para  Lisboa. 


XXI 


Rua! 


Estamos  em  1774. 

A  Zamperini  continua  a  cantar  no  theatro  da  Rua  dos  Con- 
des, mas  os  seus  espectáculos  nao  produzem  já  receita  que 
possa  equilibrar  as  despezas  da  companhia. 

Succedem-se  umas  operas  a  outras,  sem  melhoria  de  êxito 
pecuniário.  Succedem-se  uns  artistas  a  outros,  mas  fogem  a 
iDreve  trecho  como  os  ratos  quando  presentem  a  ruína  de  um 
prédio. 

Comtudo  o  theatro  enche-se  de  espectadores,  porque  o 
conde  de  Oeiras  distribue  entradas  gratuitas  para  sustentar,  ao 
menos  apparentemente,  o  culto  da  sua  «rdiva». 

A  sociedade  empresaria  falliu,  julgando-se  os  accionistas 
muito  felizes  por  não  serem  obrigados,  segundo  o  estatuto,  a 
renovar  o  capital  extincto. 

Não  ha  vadio  em  Lisboa  que  se  não  faça  admittir  como 
«claqueur» :  a  onda  dos  borlistas  cresce  todas  as  noites  á  porta 
do  theatro. 

E',  como  hoje  dizemos  em  giria  theatral,  toda  a  tirmandade 
da  Senhora  da  Graça». 

Mas,  em  nossos  dias,  o  borlista  permitte-se  a  liberdade  de 
sahir  dizendo  mal  do  espectáculo  a  que  assistiu  por  lavor. 

Em  1774  o  caso  mudava  um  pouco  de  figura,  porque  pa- 
recia arriscado  offender  o  conde  de  Oeiras,  filho  do  primeiro 


o   LOBO    DA    MADRAGÔA  283 


ministro,  comendo  a  isca  de  uma  opera  e  desfeiteando  depois  o 
anzol  com  que  elle  pescava  espectadores. 

Toda  a  gente  sabia,  comquanto  o  marquez  de  Pombal  con- 
tinuasse a  ignoral-o,  que  a  sustentação  do  theatro  e  da  família 
Zamperini  pesava  exclusivamente  sobre  o  conde  de  Oeiras. 

A  «prima-donna»,  a  sós  com  as  irmSs,  mostrava-se  muito 
preoccupada  com  o  próximo  fim  do  seu  reinado  em  Lisboa. 

Ella  tinha  a  esperteza  que  a  mulher  de  theatro  copia  das 
heroinas  das  peças  e  das  outras  actrizes,  mais  velhas  ou  mais 
ladinas. 

A  escola  dos  bastidores  dá,  como  nenhuma  outra  escola,  a 
«sciencia  da  vida». 

Anna  Zamperini  via  bem  a  questão^  receiava  uma  de  duas 
coisas:  que  o  conde  de  Oeiras,  arruinado,  alijasse  a  carga;  ou 
que  o  marquez  de  Pombal,  sabendo  o  que  se  passava,  prati- 
casse alguma  violência  para  salvar  o  filho  de  uma  ruina  com- 
pleta. 

Pois  nao  arcara  elle  com  a  poderosa  Companhia  de  Jesus, 
não  insistira  pela  sua  extincção,  e  essa  Companhia  não  acabava 
de  ser  extincta  por  um  breve  de  Clemente  XIV,  vendo  assim  o 
marquez  esmagados  aquelles  que  tão  porfiadamente  combatera? 

O  próprio  marquez  não  fez  alarde  da  sua  victoria  solemni- 
sando  a  derrota  dos  jesuítas  com  um  «Te-Deum»  cantado  em 
todas  as  egrejas  de  Lisboa  e  com  trez  noites  de  luminárias  pu- 
blicas? 

E  o  que  era,  a  par  da  Companhia  de  Jesus,  a  companhia... 
da  Rua  dos  Condes? 

Essa  bem  podia  elle  esmagal-a  sem  o  auxilio  de  breves 
pontificios;  bastava-lhe  uma  ordem,  uma  palavra,  a  pressão  de 
um  dedo  da  sua  mão  omnipotente. 

As  operas,  por  melhor  que  fosse  a  escolha,  não  conseguiam 
levantar  financeiramente  o  theatro:  o  êxito  da  «Isola  d'amore>, 
de  Sacchini,  e  do  «Amore  senza  malícia»,  de  Ottani,  cantadas 
em  abril  e  maio  d'esse  anno,  ensaiadas  e  representadas  em  me- 
nos de  um  mez,  fora  tão  pouco  lucrativo  como  o  de  outras  mui- 
tas operas  anteriormente  postas  em  scena. 

Conhecendo  bem  o  falso  terreno  que  pisava,  sentindo  zum- 
bir-lhe  nos  ouvidos,  como  um  enxame  de  vespas,  aquelle  ter- 
rível soneto  em  que  Lobo  lhe  prophetisára  que  ella  ainda  havia 
de  ir  morar  para  o  bairro  da  Madragôa,  Anna  Zamperini  soube 
com  inquietação  que  o  mordacíssimo  poeta  tinha  regressado  a 
Lisboa  depois  de  uma  ausência  de  alguns  mezes. 

Elle  viria,  com  novas  satyras  e  sarcasmos,  descarregar-lhe 
o  golpe  de  misericórdia,  justamente  no  momento  de  maior  pe- 
rigo. 


284  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


A  cantora  nao  se  enganou. 

Durante  os  últimos  mezes  de  1773  e  os  primeiros  de  J774, 
António  Lobo  continuou  a  sua  pertinaz  campanha  de  opposição 
á  companhia  Zamperini. 

As  circumstancias  favoreciam -n'o  agora  mais  que  nunca. 

—  O  naufrágio,  dizia  elle  por  toda  a  parte,  já  pouco  pode 
tardar.  O  chaveco  da  Rua  dos  Condes  navega  desarvorado  e 
com  grande  rombo  no  casco.  Até  os  adjectivos  do  padre  Ma- 
cedo, que  é  o  calafate  da  casa,  já  não  sao  querena  que  preste. 

Anna  Zamperini,  para  amordaçar  António  Lobo,  decidiu 
recorrer  ás  habilidades  próprias  do  seu  sexo  e  da  sua  profissão, 
á  sciencia  de  viver  aprendida,  por  copia  de  bons  modelos,  nos 
bastidores  e  nos  camarins. 

Traçou  um  plano,  que,  segundo  todas  as  probabilidades, 
devia  dar  bom  resultado. 

Encarregou  uma  das  suas  irmãs,  Felicia,  a  mais  velha,  a 
quem  nSo  faltavam  seducções  plásticas,  de  provocar  amorosa- 
mente António  Lobo. 

As  duas  manas  Zamperinis  assistiam  sempre  aos  espectá- 
culos n'uma  das  frisas  ou  «forçuras»,  que  ficavam  ao  nivel  da 
platéa,  e  que  não  costumavam  ser  frequentadas  pelas  damas 
portuguezas,  exceptuando  as  noites  de  enchente  real. 

Mas,  aproveitando  a  sua  qualidade  de  estrangeiras  e  tam- 
bém a  circumstancia  de  serem  pessoas  de  casa,  isto  é,  da  famí- 
lia da  primeira  aestrella»  da  companhia,  nem  tendo  que  guar- 
dar o  decoro  que  pertence  ás  mulheres  honestas,  conversavam, 
nos  intervallos,  das  frisas  para  a  platéa  com  os  «habitues»,  que 
lhes  ofíereciam  raminhos  de  flores,  rebuçados  e  outras  galan- 
terias. 

António  Lobo  nunca  lhes  tinha  sido  apresentado,  pois  que 
desde  o  principio  se  alistara  na  phalange  dos  adversários  da 
tprima-donna». 

Mas  dissera  uma  vez,  e  isso  constava  no  theatro  —  pequeno 
mundo  onde  tudo  se  sabe  —  que  das  trez  Zamperinis  a  que  va- 
lia menos  como  mulher  era  a  cantora. 

Também  se  sabia  no  theatro  que  elle,  encarecendo  a  belleza 
das  suas  patrícias,  estava  sempre  disposto  a  desdenhar  das  mu- 
lheres estrangeiras,  que  ordinariamente  só  pensavam  em  cha- 
tinar  com  os  seus  encantos. 

Ora  o  plano,  audazmente  traçado  por  Anna  Zamperini,  era 
complexo,  porque  abrangia  uma  plena  desforra  de  todas  estas 
opiniões  emittidas,  em  momentos  de  expansiva  franqueza,  por 
António  Lobo. 

O  que  é  certo  é  que  uma  noite,  inesperadamente,  Felicia 
Zamperini,  vendo  entrar  o  poeta  no  theatro,  se  dignou  dispen- 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  285 


sar-lhe  olhares  maviosos,  cuja  significação  não  admittia  duvida. 
EUe  não  attingiu  logo  todo  o  alcance  d'este  amável  logro, 
e  contentou-se  em  dizer  a  João  Xavier: 

—  As  Zamperinis  estão  cada  vez  mais  perto  do  naufrágio. 
Até  já  se  não  esquivam  a  encarar  os  poetas  que  não  dão  tré- 
guas á  irmã,  nem  a  ellas  podem  dar  garantia  de  lhes  offerecer 
alguma  jóia  de  preço. 

—  Bem  sei  por  que  dizes  isso,  tornou-lhe  João  Xavier.  E' 
que  a  Felicia  tem-te  feito  esta  noite  um  namoro  descarado.  Pa- 
rece querer  arvorar  a  bandeira  branca  da  paz,  em  nome  da  fa- 
milia. 

—  Meu  caro  amigo,  quem  no  Alemtejo  passou  noventa  dias 
entre  maltezas  e  ciganas,  não  deixa  de  achar  attractivos  na  mu- 
lher que  sabe  toucar-se  e  vestir-se.  E'  uma  espécie  de  perinha 
doce  depois  de  um  longo  regimen  de  fumeiro. 

—  Estás  um  pouco  mudado! 

—  E'  verdade.  Vai-me  cansando  a  guerra.  Talvez  seja  acção 
reflexa  do  Alemtejo,  onde  a  grandeza  das  terras  influe  no  espi- 
rito do  homem  dilatando-o  generosamente.  Começo  agora  a  sen- 
tir os  eíTeitos  da  tizana  benéfica.  Eu  tenho  esta  noite  consentido 
em  deixar-me  namorar  —  e  n'isto  é  que  está  a  minha  generosi- 
dade—o que  é  muito  differente  de  me  fazer  eu  namoradiço  como 
qualquer  peralvilho  de  cuteliqué.  Para  onde  queres  tu  que  eu  me 
volte?  Para  a  Maria  da  Gloria,  que  me  daria  que  fazer,  se  a  não 
tivessem  enxotado  de  Lisboa?  Para  a  D.  Maria  Engracia,  a 
quem  recusei  a  mão  e  a  Gandra?  Para  a  cigana  dos  laços  ver- 
des, immunda  e  honesta,  a  cheirar  a  azeite  no  cabello?  Para 
quem  mais?. . . 

E,  subitamente,  uma  nuvem  de  tristeza  lhe  poisou  no  sem- 
blante :  tinha-se  lembrado  de  Therezinha. 

Mas  logo,  rebatendo  este  pensamento,  readquiriu  o  seu  bom 
humor  e  continuou  muito  discursivo,  como  quasi  sempre. 

—  Eu,  entre  a  Zam.perini  e  o  padre  Macedo,  não  hesitarei 
um  momento :  sou  pela  cantora,  que  é  mulher,  contra  o  padre, 
que  é  tolo.  E  quanto  ás  irmãs,  meu  amigo,  visto  que  não  ha 
ciganos  dispostos  a  desaffrontal-as  de  cochilla  em  punho,  está-me 
parecendo  hoje  que  ellas  não  são  para  recusar,  caso  esponta- 
neamente se  declarem  dispostas  a  esquecer  os  aggravos  feitos 
á  tdivina»  cantatriz,  sua  illustre  mana. 

—  Todavia  são  estrangeiras,  o  que  prejudica  a  tua  patrió- 
tica theoria  do  monopólio  nacional. 

—  São,  mas  não  me  podem  roubar,  porque  eu  não  tenho 
nada  que  me  roubem.  E'  uma  d'ellas  que  vem  hoje  ao  meu  en- 
contro e  me  diz  com  o  olhar  e  com  o  sorriso:  «Vossa  Mercê 
defende  as  portuguezas,  sem  interesse  nem  proveito.  Pois  fi- 


286  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


que-se  embora  com  ellas,  que  eu  quero  ser  gentil  com  um  ad- 
versário, galardoando-liie  o  seu  mesmo  patriotismo,  já  que  as 
suas  patricias  o  não  fazem  por  gratidão.  Pensassem  todos  os 
italianos  tSo  patrioticamente,  e  nenhuma  das  Zamperinis  teria 
necessidade  de  andar  expatriada  por  longes  terras.»  O'  João 
Xavier!  olha  que  é  honroso  e  justo.  Uma  reconciliação  é  sem- 
pre nobre.  Deixa-me  agora,  que  lá  está  a  Felicia  a  arvorar  ou- 
tra vez  a  bandeira  branca  da  paz.  E'  o  inimigo  que  se  rende. 
Sejamos  humanos  e. . .  homens. 

O  que  é  certo  é  que  o  «signum  pacis»  já  fluctuava  benigno 
nos  olhos  de  Felicia  havia  trez  ou  quatro  dias,  quando  uma 
noite  António  Lobo,  atravessando  o  Rocio  para  ir  á  Rua  dos 
Condes,  encontrou  o  morgado  da  Boa- Vista  junto  ao  palácio  da 
Inquisição. 

Foi  o  morgado  que  o  deteve,  tocando-lhe  no  hombro. 

—  Não  me  engano  !  exclamou  Lobo.  Por  onde  se  tem  gas- 
tado Vossa  Senhoria  ? 

—  O  mesmo  digo  eu  a  respeito  de  Vossa  Mercê.  Cheguei 
ha  trez  dias  de  França,  onde  passei  alguns  mezes.  Não  o  pude 
vêr  antes  de  partir,  por  mais  que  o  procurasse! 

—  Estive  no  Alemtejo,  em  Villa  de  Frades. 

—  Onde  fica  isso? 

—  Para  os  lados  de  Beja. 

—  Gostou? 

—  Muito.  Passei  excellentemente.  Mas  Vossa  Senhoria  não 
tem  apparecido  na  Rua  dos  Condes  ! 

—  Não,  respondeu  o  morgado,  sorrindo;  por  causa  dos 
primos  Lorênas,  preciso  guardar  as  apparencias. 

—  E  deu-se  bem  por  França? 

—  Oh  1  excellentemente.  Grande  e  alegre  paiz  aquelle.  Mas 
deixemos  esse  bello  assumpto  para  melhor  occasião.  Agora  va- 
mos a  outra  coisa.  Eu  estava  morto  por  encontrar  Vossa  Mercê 
para  lhe  dar  uma  explicação. 

—  A  mim? 

—  Certamente.  Tenho  que  pedir -lhe  desculpa  da  desagradá- 
vel occorrencia  de  Sacavém,  para  que  eu  involuntariamente  con- 
corri. Pratiquei  talvez  uma  leviandade... 

—  Por  modo  nenhum. 

—  O  caso  foi  que  Maria  da  Gloria  negava  impudentemente 
que  me  houvesse  atraiçoado.  Exigia  provas  com  irritante  alti- 
vez. Tive  de  dizer-lhe  tudo,  e  fallei  no  seu  nome,  meu  caro 
Lobo,  que  era  a  prova  decisiva.  Ella  então  lembrou-se  de  que 
Vossa  Mercê  havia  reconhecido  a  minha  lettra  no  sobrescripto 
de  uma  carta,  e  attribuiu  a  denuncia  sua,  por  vingança,  o  meu 
rompimento.  Disse-lhe  que  da  parte  de  Vossa  Mercê  não  houve 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  287 


propósito  algum  de  prejudical-a;  mas  apenas  uma  referencia  a 
factos  em  que  me  nao  suppunlia  interessado.  Ella  parecia  ter 
ficado  convencida  da  verdade.  Mas  d*ali  a  dias,  sabendo  da  mi- 
nha intimidade  com  a  Ricarda,  perdeu  a  cabeça,  deu  por  paus 
e  por  pedras,  e  conseguiu  levar  o  filho  do  fanqueiro  a  praticar 
o  desatino  de  Sacavém.  Mas  ainda  a  historia  não  pára  aqui. 

—  Então  que  mais? 

—  Eu  também  tive  um  conflicto  com  o  rapazote. 

—  Sim? 

—  Provocou-me,  e  posso  garantir-lhe  que  d'uma  cajadada 
matei  dois  coelhos :  vinguei  a  Vossa  Mercê  e  a  mim. 

—  E  o  peralvilho  ficou  ensinado  de  vez? 

—  Entrou  em  casa  bem  zurzido,  e  o  pai,  não  podendo  já 
supportar-lhe  as  estroinices  nem  os  gastos,  mandou-o  á  socapa 
para  o  Brazil. 

—  Eu  sabia  que  elle  tinha  embarcado,  mas  ignorava  esse 
pormenor.  Quando  regressei  do  Alemtejo,  perguntei  pelo  che- 
chisbeo,  por  o  não  encontrar  no  meu  caminho,  como  esperava. 
Foi  então  que  me  disseram  que  a  familia  se  desfizera  d'elle 
mandando-o  para  longe. 

—  Também  já  sabe  de  certo  o  que  aconteceu  á  Maria  da 
Gloria? 

—  Sei.  Tratei  de  saber.  Está  degradada  em  Castro  Marim. 
Constou-me  no  Alemtejo  que  ella  andava  a  diffamar-me  por 
Lisboa,  e  vim  com  o  propósito  de  lhe  enterrar  uma  mordaça  pela 
bocca  dentro.  Mas  não  foi  preciso,  porque  eu  a  chegar  e  ella  a 
ir  para  Castro  Marim. 

—  Também  me  diífamava,  dizendo  que  eu  era  o  mais  villão 
dos  fidalgos  portuguezes.  Sabe  que  ella  atirou  vitríolo  á  cara  da 
Ricarda? 

—  Sei  que  foi  degradada  por  isso. 

—  Tornára-se  mais  raivosa  desde  que  perdeu  o  Lourenci- 
nho,  que  por  amor  d'ella  já  andava  na  mão  de  todos  os  agiotas. 
E  então,  desesperada,  deu-lhe  para  se  vingar  na  Ricarda  por 
minha  causa. 

—  E  diga-me  Vossa  Senhoria:  A  Ricarda,  que  não  tenho 
visto,  ficou  muito  queimada  ? 

—  Algum  tanto,  especialmente  no  pescoço.  Mas  conte-me 
o  que  tem  feito  por  cá? 

—  Nada.  O  mesmo  que  fiz  no  Alemtejo. 

—  Nem  a  respeito  de  amores  ? 

—  No  Alemtejo  não  pensei  n'isso  durante  trez  mezes. 

—  Custa  a  crer ! 

—  Mas  é  verdade. 

—  E  em  Lisboa? 


288  o    LOBO   DA   MADRAGÔA 


Lobo  sorriu-se  e  disse  : 

--Eu  já  tenho  medo  de  fallar  de  amores  a  Vossa  Senho- 
ria.. . 

O  morgado  sorriu-se  também,  e  respondeu  : 

—  Pôde  fallar  á  vontade,  que  eu  tenho  aprendido  á  minha 
custa  a  não  ser  leviano,  ainda  quando  se  trate  de  amores  fáceis. 

—  Mas  sempre  é  bom  acautelar.  Ahi  vai  uma  pergunta  por 
minha  vez.  Vossa  Senhoria,  desde  que  regressou  de  França, 
tem-se  avistado  com  a  Zamperini,  apesar  de  nao  ir  ao  theatro? 

O  morgado  sorriu  e  disse : 

—  Bem  sabe  que  prometti  aos  primos  Lorênas  não  zampa- 
rinar  mais,  e,  pelo  que  respeita  á  cantora,  tenho  cumprido  a 
minha  palavra.  Agora  haveria  ainda  outra  razão :  é  que  sou 
amigo  do  conde  de  Oeiras,  e  não  quereria  desgostai -o.  Mas 
pelo  que  respeita  ás  irmãs  da  Zamperini,  não  tomei  compro- 
misso nenhum,  e  alguma  coisa  ha  effectivamente,  n'estas  ulti- 
mas quarenta  e  oito  horas. 

Foi  António  Lobo  quem  agora  sorriu,  exclamando : 

—  Mau! 

O  morgado  da  Boa-Vista,  surprehendido  com  esta  excla- 
mação, perguntou : 

—  Mau,  por  quê? 

—  Primeiro  que  tudo:  Vossa  Senhoria  refere-se  a  ambas 
as  irmãs  ou  apenas  a  alguma  d'ellas? 

—  Cartas  na  mesa:  refiro-me  á  Margarida. 

—  Respiro ! 

—  Mas  então? 

—  E'  que  a  Felícia  tem-me  dado  um  ar  da  sua  graça  ha 
trez  ou  quatro  dias. 

Agora  foi  o  morgado  que  sorriu,  dizendo: 

—  Bomf 

—  Bom,  por  quê? 

—  Porque  Vossa  Mercê  encostou-se  a  boa  arvore:  eu  posso 
auxilial-o  n'essa  empresa.  Já  se  avistou  com  ella? 

—  Ainda  não. 

—  Pois  ha  de  avistar.  Mas,  ó  meu  caro  Lobo,  quem  havia 
de  dizer,  ha  ainda  um  anno,  que  Vossa  Mercê  embarraria  pela 
familia  Zamperini? 

—  Voltas  do  mundo.  Olhe,  morgado,  pelo  padre  Macedo  é 
que  eu  não  hei  de  embarrar,  nem  quero. 

Tornou  o  morgado  a  sorrir-se,  e  disse: 

—  Ora  ainda  bem  que  encontrei  o  meu  caro  Lobo.  Já  me 
fazia  falta  o  seu  bom  humor. 

Depois  entraram  em  minuciosas  confidencias. 

O  morgado  lastimou  que  a  Zamperini  estivesse  impondo  ao 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  289 


conde  de  Oeiras  dispendiosos  sacrifícios,  que  elle  não  poderia 
supportar  por  longo  tempo. 

—  A  corda  não  tarda  a  rebentar,  disse  elle.  E  quando  o 
marquez  o  souber,  rebentará,  com  estrondo,  fulminantemente. 

Confirmou  que  as  irmãs  da  Zamperini  eram  muito  mais 
accessiveis  depois  que  a  cantora  apenas  podia  dispor  do  bolso 
do  conde  de  Oeiras,  e  que  a  própria  cantora  atraiçoaria  o  conde, 
se  não  tivesse  medo  d'elle  e  do  seu  valimento.  A  situação  es- 
tava sendo  embaraçosa  para  as  trez  irmãs. 

—  Agora  entendo  tudo!  disse  Lobo.  Felicia  e  Margarida 
procuram  amparar  a  irmã  na  decadência.  Vossa  Senhoria  con- 
corre com  dinheiro  para  as  urgências  do  estado.  Eu  sou  um 
canudo  da  opinião  publica,  que  convém  entupir.  Pois  já  estou 
entupido.  Quando  é  que  Vossa  Senhoria  se  digna  apresentar-me 
á  sua  cunhada  Felicia  ? 

O  morgado  largou  a  rir  e  disse: 

—  Vossa  Mercê  tem  coisas !  A'  minha  cunhada  I  Pôde  ser 
hoje  mesmo  se  quizer. 

—  Pois  seja. 

—  Irei  por  excepção  hoje  á  Rua  dos  Condes  para  auxiliar 
o  meu  caro  poeta.  Mas  não  volto  lá,  nem  será  preciso.  E  uma 
vez  não  são  vezes. 

Durante  o  espectáculo  Lobo  viu  entrar  na  frisa  das  irmãs 
Zamperini  um  porteiro  do  theatro,  e  chamar  de  parte  Marga- 
rida. 

Esta,  por  sua  vez,  chamou  Felicia,  com  quem  fallou  ao 
fundo  da  frisa. 

Entretanto  o  porteiro  fingia  entreter-se,  discretamente,  a 
olhar  para  os  camarotes  fronteiros. 

Depois,  Margarida  tirou  do  seio  uma  carteirinha,  escreveu 
n'uma  folha,  arrancou-a,  dobrou-a,  e  entregou-a  ao  porteiro. 

António  Lobo  disse  de  si  para  si : 

—  Isto  é  que  é  um  serviço  de  amor  bem  organizado !  Até 
trazem  no  seio  a  secretária.  Pobre  morgado !  alguém  hoje  o 
atraiçoa. 

D'ali  a  pouco  voltava  á  platéa  o  morgado  da  Boa- Vista  e 
dizia  a  Lobo : 

—  Está  tudo  combinado.  Amanhã  cearemos  os  quatro. 

—  Como  fez  Vossa  Senhoria  isso? 

—  Escrevendo  á  Margarida. 

—  Então  o  bilhete  que  ella  recebeu,  ha  bocado,  era  seu? 

—  Era. 

—  Já  vejo  que  foi  para  responder-lhe  que  ella  tirou  do  seio 
a  secretária  1 

—  Cale-se,  homem  I  que  me  faz  perder  de  riso. 

19 


290  o  LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Decididamente,  disse  Lobo,  os  poetas  são  os  maiores  tolos 
do  mundo.  Eu  não  haveria  passado  de  uma  troca  de  olhadel- 
las,  se  não  tivesse  a  boa  fortuna  de  encontrar  Vossa  Senhoria. 
Assim,  apanhei  ceia  e  amor.  Em  conclusão,  sou  um  grande 
tanso,  e  o  morgado  é  um  homem  pratico.  O  seu  a  seu  dono. 

—  Eu  devia-lhe  uma  indemnisação.  Trato  de  pagar  o  que 
devo.  Quero  desmentir  Maria  da  Gloria,  provando  que  não  sou 
o  mais  villão  dos  fidalgos  portuguezes. 

E  o  morgado  cantarolou  «Ah  cari  palpiti»,  o  lindo  duetto 
do  «Matrimonio  secreto». 

Pouco  depois  rompia  a  orchestra ;  o  espectáculo  continuava. 

E  então  havia  já  no  olhar  de  Felicia  Zamperini  mais  alguma 
coisa  do  que  uma  esperança :  havia  uma  promessa. 

Nada  d'isto  passou  despercebido  ao  padre  Manuel  de  Ma- 
cedo, em  cujos  lábios  se  steriotypou  um  sorriso  irónico  e  im- 
pertinente. 

—  Eu  racho  aquelle  padre  !  dizia  António  Lobo  ao  morgado. 

—  Não  faça  tolices,  respondia-lhe  tranquilamente  o  fidalgo. 
O  que  é  certo  é  que  Felicia  Zamperini  procurava  denunciar 

publicamente  a  vassalagem  de  Lobo,  por  esse  vulgar  senti- 
mento de  vingança  generosa,  que  tanto  lisonjeia  o  orgulho  das 
mulheres. 

Ella  queria  mostrar  rendido  aos  seus  encantos  um  dos  mais 
ferozes  adversários  da  irmã. 

Esse  era  o  plano  combinado  com  a  cantora. 

O  padre  Macedo,  espécie  de  perdigueiro  ao  serviço  da  fa- 
mília Zamperini,  farejou,  com  fino  olfacto,  a  aproximação  de 
um. . .  «Lobo». 

E  no  seu  sorriso,  irónico  e  impertinente,  havia  como  que 
uma  dolorida  expressão  de  desalento  e  despeito :  tTodos  são 
aqui  felizes,  menos  eu». 

A  famosa  ode,  que  tamanho  escândalo  fizera,  subia-lhe 
aos  gorgomilos  e  entalava-o. 

O  morgado  da  Boa- Vista  morava,  a  esse  tempo,  na  rua 
das  Portas  de  Santo  Antão,  no  segundo  andar  de  um  prédio 
de  modesta  apparencia,  que  hoje  está  reconstruído. 

Alfaiara  com  elegância  e  riqueza  o  seu  ninho  de  homem 
solteiro:  «garçonnière»,  como  dizem  os  francezes.  Ali  dentro 
reinava  ainda  D.  João  V :  mobilia  doirada  e  estofos  claros.  * 


^  As  mobilias  doiradas  continuaram  a  ser  moda,  a  despeito  da  pragmá- 
tica de  1749,  que  dizia:  «Só  poderão  ser  doiradas,  ou  prateadas  as  molduras 
dos  espelhos,  painéis,  placas  e  pés  de  bofetes». 

Esta  pragmática,  dada  por  um  rei  quasi  morto,  ficou  sempre  lettra  morta 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  291 


Este  apparato,  em  contradicção  flagrante  com  o  exterior  mo- 
desto do  prédio,  era  um  turbiilião  de  luz  que  surprehendia  e 
deslumbrava  as  mulheres  e  confundia  algum  tanto  os  homens, 
especialmente  os  bohemios  que  pela  primeira  vez  entravam  ali. 

As  duas  Zamperinis  chegaram  pouco  antes  da  meia  noite, 
findo  o  espectáculo,  n'uma  sege  que  o  morgado  tinha  posto, 
havia  dois  dias,  á  disposição  de  Margarida. 

Já  alguém,  sabendo  d'esta  galante  generosidade,  havia  dito 
que,  no  momento  em  que  o  conde  de  Oeiras  largasse  a  presa, 
Margarida  seria  substituída  n'aquella  sege  pela  cantora,  que  o 
morgado  preferia  ás  irmãs. 

E,  a  dar-se  esse  caso,  uma  coisa  se  prophetisava :  que  o 
fidalgo  da  Boa-Vista,  apesar  da  promessa  feita  aos  primos  Lo- 
rênas,  caminharia  cegamente  para  uma  completa  ruina. 

Margarida  e  Felicia  traziam  na  cabeça  mantilhas  brancas, 
guarnecidas  de  rendas  de  Malines. 

Quando  as  tiraram,  uma  onda  de  perfumes  caros  evolou-se 
perturbadoramente  dos  decotes,  que  punham  a  descoberto  bus- 
tos marmóreos,  onde  o  reflexo  das  luzes  cahia  em  palpitações 
scintillantes. 

Essas  duas  Zamperinis  tinham  a  alegria,  a  garridice,  a 
desenvoltura,  que  pertencem  ás  mulheres  da  raça  latina,  com 
excepção  das  portuguezas,  e  que  a  liberdade  dos  costumes, 
quando  adoptada  como  norma  de  vida,  exagera  e  desculpa. 

A  mulher  de  Portugal  é,  na  sua  raça,  a  mais  sóbria  de 
gestos  e  palavras,  a  de  génio  mais  grave  e  concentrado.  Falta- 
Ihe  a  mobilidade  e  o  gorgeio  das  francezas,  das  hespanholas  e 
ainda  das  italianas.  Não  canta  ;  falia:  mas  um  doce  tom  de  sin- 
ceridade e  firmeza  aquece  habitualmente  a  sua  voz.  Os  seus 
olhos,  quasi  sempre  bellos,  raras  vezes  são  travessos.  A  sua 
physionomia  habitual  tem  o  que  quer  que  seja  de  lago  sereno, 
que  não  promette  naufrágios,  como  o  olhar  provocante,  oceano 
revolto,  das  outras  latinas. 

Que  influencia,  physiologica  ou  mesologica,  pode  ter  deter- 
nado  este  facto  ? 

Não  sei.  Mas  a  educação  portugueza,  por  tantos  séculos 
severa  e  austera,  deve  ter  sido  um  dos  factores  que  o  produ- 
ziram. 

A  portugueza  foi,  durante  gerações  successivas,  educada 
para  o  lar  domestico  e  para  o  convento ;  d'ella  se  dizia,  por 
largo  tempo,  que  sahia  de  casa  apenas  trez  vezes  para  ir  á 
igreja :  baptisar-se,  casar-se,  e  sepultar-se. 

Podia  a  vida  conventual  tolerar  costumes  reprehensiveis, 
como  já  tivemos  occasião  de  vêr;  mas  a  mulher  portugueza, 
lançada  n'esse  meio,   não  adquiria,  ainda  assim,  a  petulan- 


292 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


cia  de  outras  da  sua  raça  em  identidade  de  condições  sociaes. 

Sei  que  não  falto  á  verdade,  se  disser  que  António  Lobo, 
ao  vêr  entrar  as  duas  Zamperinis,  se  lembrou  do  estalajadeiro 
Reboto,  achando-lhe  razão  mais  uma  vez. 

O  que  faltava  nas  duas  irmãs,  para  completar  o  encanto 
da  sua  presença,  era  o  prestigio  artístico  da  outra. 


A  ceia  do  morgado  da  Boa  Yista 


Mas  essa  falta  suppria-a  de  algum  modo  a  lembrança  de 
que  justamente  havia  na  familia  uma  «prima-donna»,  que  até 
de  longe  parecia  enviar  ás  irmãs,  para  completar-lhes  a  attrac- 
ção,  um  reflexo  da  sua  celebridade. 

A  ceia  começou  com  um  brilho  de  alacridade  que  não  seria 
possível  se,  em  vez  de  haver  á  mesa  dois  portuguezes  e  duas 
italianas,  houvesse  duas  portuguezas  e  dois  italianos. 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  293 


Os  vinhos  preciosos  da  garrafeira  do  morgado,  que  já  os 
bohemios  tinham  preconisado  mais  de  uma  vez,  punham  irisa- 
ções  estonteadoras  no  crystal  dos  copos  e  na  alegria  dos  espi- 
ritos. 

António  Lobo  estava  em  veia,  pródigo  de  engraçados  ditos, 
onde  já  a  maHcia  penetrava  como  a  ponta  de  um  punhal  que 
rasgasse  a  phrase  e  descobrisse  as  intenções. 

De  repente,  sentiu-se  bater  á  porta. 

—  Quem  será?  perguntou  Felicia. 

—  Algum  dos  nossos  amigos,  respondeu  tranquillamente  o 
morgado. 

—  Que  fará  o  favor  de  não  deixar  entrar,  disse  jovialmente 
António  Lobo,  para  não  desacertar  a  conta. 

O  criado,  um  velho  escudeiro  que  seguia  o  morgado  para 
toda  a  parte,  foi  vêr  quem  era,  e  voltou  com  um  bilhete  na  mão. 

—  E'  para  entregar  ás  senhoras,  disse  o  escudeiro  grave- 
mente. 

—  Um  bilhete !  commentou  o  morgado  com  surpreza. 

—  De  minha  irmã!  exclamou,  assustada,  Felicia  Zamperini. 

—  A  esta  hora!  o  que  será?  interrogou  Margarida,  muito 
nervosa. 

Felicia  leu,  empallidecendo  extremamente. 

—  Santo  Deus !  apostrophou  ella  com  voz  tremula  e  com- 
movida.  Minha  irmã,  depois  do  espectáculo,  foi  intimada  por 
ordem  do  marquez  de  Pombal  para  sahir  de  Lisboa  dentro  de 
quatro  horas. 

—  Como?!  perguntou  o  morgado. 

—  Cebolorio !  berrou  António  Lobo,  sem  que  as  Zamperi- 
nis  comprehendessem  o  que  elle  tinha  dito. 

As  duas  irmãs  sahiram  na  sege  com  afflictiva  precipitação, 
como  se  fugissem  espavoridas  deante  da  cólera  tremenda  do 
grande  marquez. 

E,  já  quando  a  sege  rodava  na  rua,  dizia  o  morgado : 

—  Estava  de  prever.  Logo  que  o  marquez  soubesse,  a 
bomba  era  certa. 

Lobo,  por  sua  parte,  caramunhava  dizendo : 

—  O  que  estava  de  prever  era  o  enguiço  que  preside  ao 
destino  do  mais  infeliz  de  todos  os  poetas  que  teem  vindo  ao 
mundo  desde  Homero  até  hoje.  Irra  I  que  má  sorte !  Esta  só  a 
mim  acontece  I  Sabe  Vossa  Senhoria  por  que  o  marquez  ex- 
pulsa a  Zamperini? 

—  Sei;  é  para  salvar  o  filho. 

—  Qual!  é  por  eu  me  ter  aproximado  da  Felicia,  e  a  Felí- 
cia ser  irmã  da  Anna,  e  a  Anna  ser  a  amante  do  conde  de 
Oeiras. 


294  o   LOBO   DA   MADRAGÔA. 


O  morgado,  rindo,  perguntou : 

—  E  onde  fica  a  Margarida? 

—  A  Margarida  é  irmã  da  Felicia,  e  a  Felícia  é  irmS  da 
Anna,  e  a  Anna  é  a  amante  do  conde  de  Oeiras,  e  o  conde  de 
Oeiras  é  fillio  do  marquez  de  Pombal,  e  eu  sou  um  tumba  que 
hoje  encalixtei  toda  esta  gente,  e  a  Vossa  Senhoria  também. 

Depois  fez  uma  pausa  e  disse  com  apparente  gravidade : 

—  Morgado!  como  ninguém  pôde  luctar  contra  os  decretos 
do  marquez  de  Pombal,  acabemos  de  ceiar  resignadamente. 

Não  supponha  o  leitor  que  eu  preparei  um  lance  de  novella 
fazendo-lhe  crer  que  o  grande  marquez  se  dignou  honrar  com 
um  raio  de  súbita  cólera  a  «prima-donna»  da  Rua  dos  Condes. 

Lá  o  diz  Verdier  em  a  nota  ao  «Hyssope»,  quando  noticia 
que,  meado  o  anno  de  1774,  «o  marquez  de  Pombal  fez  sahir 
de  Lisboa  a  Zamperini». 

Camillo  Castello  Branco  amplia  esta  informação,  dizendo  a 
respeito  do  conde  de  Oeiras:  «O  sagacíssimo  pai  espiara-o  até 
dar-se  a  crise  da  logreira  dama  se  manter  a  expensas  d'elle, 
sem  o  concurso  dos  capitalistas.  Chegado  o  momento,  Zampe- 
rini foi  expulsa  do  paiz,  por  ordem  do  ministro».  * 

Não  admira  nada  que  tal  ordem  desabasse  fulminantemente, 
no  fim  de  um  espectáculo,  sobre  a  cabeça  da  cantora.  Os  pro- 
cessos do  marquez  eram  rápidos  e  decisivos,  quando  tratava  de 
expulsar  alguém. 

N'aquelle  mesmo  anno,  em  janeiro,  um  decreto  obrigou  a 
sahir  de  Lisboa,  no  praso  de  quarenta  e  oito  horas,  o  desem- 
bargador José  de  Seabra  e  Silva,  então  accessor  do  marquez 
no  exercício  de  secretario  de  estado  dos  negócios  do  reino. 

Os  motivos  ainda  hoje  não  são  nitidamente  conhecidos. 

Doze  annos  antes  fizera  sahir  da  corte,  dentro  de  quatro 
horas,  o  cardeal  Acciaiolli,  núncio  apostólico. 

Em  1768  havia  empregado  igual  processo  com  o  parocho 
de  Santa  Isabel  e  provisor  do  patriarchado,  dr.  José  Mendes  da 
Costa,  que  de  uma  só  pennada  foi  desnaturalisado  e  banido. 

Agora,  com  a  Zamperini,  não  se  tratava  d'um  negocio  de 
Estado,  de  uma  questão  politica;  o  marquez  procedia  «pro 
domo  sua»,  procurando  salvar  o  filho  das  garras  da  cantarina. 

Tocava-lhe  por  casa :  por  isso  a  ordem  foi  expedida  n'um 
momento  de  formidável  cólera. 

Felizes  os  pais  que,  em  lances  idênticos,  podem  ser  mar- 
quezes  de  Pombal. 


*  «Noites  de  insomnia»,  n.»  5,  pag.  22. 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  295 


D'esta  mesma  opinião,  quando  soube  do  acontecido,  foi  a 
serenissima  princeza  da  Beira,  D.  Maria  Francisca,  futura  rai- 
nha de  Portugal,  que  n'um  Ímpeto  de  convicção  profunda  ex- 
clamou : 

—  Os  theatros  deviam  ser  prohibidos,  bem  como  toda  essa 
peste  de  cómicas  e  cantarinas. 


XXII 


Hei  de  bponze  e  ministro  de  ferro 


Nos  primeiros  dias  de  junho  de  1775  era  extraordinária  a 
animação,  que  alvoroçava  jubilosamente  a  cidade  de  Lisboa,  e 
lhe  duplicava  o  movimento  pela  chegada  de  seges,  liteiras  e 
carretas  que  transportavam  famílias  das  mais  remotas  provín- 
cias do  reino. 

Apesar  de  cahir  uma  calma  intensa,  que  já  despertava  o 
apetite  de  ir  veranear  para  o  campo,  a  população  da  cidade  nâo 
arredava  pé  fora  de  Portas,  e  n'uma  festiva  azáfama  mandava 
dealbar  o  exterior  dos  prédios,  limpar  o  pó  das  vidraças,  es- 
pannar  o  peitoril  das  sacadas,  ao  mesmo  passo  que,  no  interior 
dos  domicílios,  preparava  aposentos  confortáveis  para  receber 
hospedes,  por  obsequio  ou  negocio. 

Innovou-se  n'esses  dias  uma  industria  de  occasião,  a  de 
alugar  janellas  e  quartos  por  motivo  da  próxima  inauguração 
da  estatua  equestre  de  sua  magestade  el-rei  D.  José  I,  o  «Re- 
formador». 

O  pregão  d'esta  grandiosa  solemnidade  publica  soara  ao 
longe  como  transmittido  por  uma  tuba  ingente,  que  se  fez  ou- 
vir nos  mais  recônditos  valles  e  nas  mais  longínquas  monta- 
nhas de  Portugal,  tentando  a  curiosidade  dos  leaes  súbditos  de 
sua  magestade  fidelíssima. 

O  facto  era  inteiramente  novo  para  os  portuguezes,  que  nSo 
estavam  ainda  habituados  a  vêr  estatuas  nas  praças  publicas. 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  297 


Os  monumentos  patrióticos  limitavam-se  até  entSo,  além  de 
alguns  templos  notáveis,  a  singelos  padrões  commemorativos 
de  victorias  militares. 

Um  rei  de  bronze  era  coisa  ainda  nSo  vista  pela  nossa 
gente. 

De  mais  a  mais,  não  se  tratava  apenas  da  figura  do  rei, 
com  todo  o  seu  apparatoso  revestimento  de  armas  brancas. 

Havia  também  um  cavallo  fundido  que  o  rei  montava,  e  na 
imaginação  do  bom  povo  da  província  não  sei  se  a  curiosidade 
de  vêr  o  cavallo  seria  superior  á  de  vêr  o  rei. 

Outros  animaes,  não  em  bronze,  mas  em  mármore,  deviam 
outrosim  atiçar  a  curiosidade  do  portuguez  ingénuo,  e  vinham 
a  ser  as  figurações  symbolicas  do  pedestal :  o  corcel  que,  mal 
domado  pela  mão  do  Triumpho,  atropella  um  prisioneiro  de 
avantajada  estatura,  e  o  elephante,  que  faz  grupo  com  a  Fama, 
e  calca  outro  prisioneiro  de  vulto  não  menos  avantajado. 

Os  provincianos,  ouvindo  soar  em  suas  terras  a  troante 
descripção  da  estatua,  preoccupavam-se  menos  com  o  sentido 
politico  das  allegorias,  do  que  com  a  representação  zoológica 
que  as  concretisava,  porque  a  imaginação  popular  impressio- 
na-se  sempre,  e  muito,  com  o  maravilhoso  que  resulta  da  ex- 
hibição  plástica  de  uma  fauna  gigantesca. 

Entrara  por  um  ouvido  ao  povo  e  sahira  por  outro  a  infor- 
mação de  que  o  corcel  representava  a  Europa  e  o  elephante  a 
Ásia,  e  ambos  o  predomínio  da  coroa  portugueza  n'aquellas 
duas  partes  do  mundo. 

O  que  elle  queria  vêr  era  os  bichos,  em  bronze  e  em  már- 
more, as  alimárias,  o  elephante  e  ainda  as  serpentes  que  pisa  o 
cavallo  montado  por  el-rei,  dando-se-lhe  pouco  de  saber  que 
ellas  significassem  as  difficuldades  e  embaraços  que  foi  preciso 
esmagar  para  conseguir  a  rápida  reedificação  de  Lisboa. 

E  n'esse  ardente  interesse  animalista  do  povo  entrava  tam- 
bém em  grande  parte  o  desejo  de  vêr,  em  carne  e  osso,  com  a 
sua  cabelleira  e  luneta  tradicionaes,  o  marquez  de  Pombal, 
«bicho  formidável»,  leão  na  sanha,  elephante  na  força,  cobra  no 
salto,  maior  que  o  rei,  maior  que  o  monumento,  maior  que 
Portugal. 

O  rei  era  uma  figura  quasi  apagada  a  par  da  do  seu  pri- 
meiro ministro,  e  se  todas  as  verdades  se  pudessem  dizer,  e 
melhor  ainda  representar,  quem  devia  estar  sobre  o  pedestal  e 
sobre  o  cavallo,  era  o  marquez,  com  o  sceptro  na  mão  direita, 
com  as  rédeas  na  mão  esquerda,  isto  é,  com  o  poder  real  em 
ambas  as  mãos,  passando  o  sr.  D.  José  a  occupar  modesta- 
mente o  medalhão  de  que,  no  pedestal,  resaltava  a  vera  eífigie 
do  marquez. 


298  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Todas  as  circumstancias  concorriam,  pois,  para  attrair  fo- 
rasteiros a  Lisboa,  além  de  uma  outra,  que  nao  deixava  de  li- 
sonjear o  sentimento  nacional,  e  vinha  a  ser  que  tanto  a  mo- 
delação como  a  fundição  da  estatua  eram  producto  de  artistas 
portuguezes,  Joaquim  Machado  de  Castro  e  Bartholomeu  da 
Costa. 

Isto  pelo  que  respeitava  ao  monumento,  que  o  vêr  reedifi- 
cada uma  cidade,  que  o  terremoto  arrazára  e  que  tinha  resur- 
gido  mais  bella  e  mais  ampla  do  que  fora,  era  também  natura- 
lissima  tentação  no  espirito  dos  provincianos. 

A  noticia  da  conducção  da  estatua  e  da  sua  montagem  so- 
bre o  pedestal,  factos  já  celebrados  com  trez  dias  de  regosijo 
publico,  que  um  vistoso  bando  annunciára,  chegou  a  todos  os 
confins  do  paiz  e  acabou  de  resolver  os  ânimos  que  hesitavam 
ainda  perante  o  incommodo  e  fadiga  de  uma  viagem  á  corte. 

Finalmente  amanheceu,  radiante  de  luz  e  alegria,  o  dia 
de  terça  feira  6  de  junho,  destinado  para  a  cerimonia  da  inau- 
guração, e  anniversario  natalício  de  el-rei,  que  n'esse  dia  com- 
pletava 61  annos  de  idade. 

Ao  romper  d'alva  salvaram  o  castello  de  S.  Jorge,  todas  as 
outras  fortalezas  da  capital,  e  os  navios  surtos  no  Tejo. 

A  cidade  accordou  em  jubilo,  com  esse  communicativo  al- 
voroço que,  por  occâsião  das  grandes  festas  publicas,  não  poupa 
os  mais  indifferentes  e  os  menos  interessados  n'ellas. 

Na  Praça  do  Commercio,  ainda  não  completa,  ultimavam-se 
á  pressa  os  retoques  provisórios  do  seu  aformoseamento,  espe- 
cialmente no  pavilhão  redondo  que  foi  construído  sobre  a  cor- 
tina do  cães,  para  acommodar  grande  numero  de  espectadores ; 
e  no  arco  triumphal,  que  marca  o  centro  da  fachada  norte  da 
Praça,  e  que  apenas  veiu  a  ser  fechado  em  nosso  tempo,  mas 
que  n'aquelle  dia  devia  servir  para  dar  mais  brilhante  passa- 
gem ás  tropas.  Preenchiam-se  com  madeira  pintada  as  lacunas 
da  alvenaria,  tanto  no  arco  como  nos  dois  torreões,  e  também 
na  fachada  occidental.  Alisava-se  melhor  o  lastro  de  areia  en- 
carnada, que  já  de  véspera  ficara  atapetando  o  vasto  recinto  da 
Praça.  Abriam-se  de  par  em  par  as  janellas  das  secretarias  e 
repartições  publicas,  adornadas  de  sanefas,  cortinas  e  colchas 
de  damasco  carmezim.  Compunham-se  com  arte  as  pregas  do 
alto  envoltório  de  tafetá  vermelho,  que  velava  a  estatua.  O  in- 
tendente geral  da  policia,  acompanhado  pelos  corregedores  dos 
bairros,  com  os  seus  respectivos  alcaides,  escrivães,  meirinhos 
e  quadrilheiros,  dava  instrucções  sobre  o  modo  de  regular  o 
transito  e  accesso  do  cortejo  durante  a  cerimonia. 

Pouco  depois  das  nove  horas  da  manhã  já  as  embocaduras 
das  ruas,  confinantes  com  a  Praça  do  Commercio,  estavam 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  299 


guardadas  por  soldados  de  cavallaria,  que  obstavam  á  passa- 
gem dos  maltrapilhos,  e  apenas  deixavam  entrar  ordenada- 
mente, grupo  a  grupo,  as  pessoas  que  se  apresentavam  decen- 
temente vestidas. 

A  multidão  nSo  podia  ser  mais  variegada  no  aspecto,  mais 
pittoresca  nos  trajes :  era  o  minhoto,  com  a  sua  jaqueta  de 
trinta  botões,  e  a  minhota  com  as  suas  roupas  garridas,  flam- 
mantes  de  vivas  cores;  era  a  lisboeta  de  josésinho  sobre  os 
hombros  e  lenço  branco  na  cabeça;  era  a  saloia  de  mantéo  e 
carapuça,  saia  curta  e  bota  amarella ;  era  o  campino  do  Riba- 
tejo, de  jaleca  ao  hombro,  barrete  verde,  e  collete  vermelho;  era 
o  alemtejano  de  jaqueta  de  alamares,  faixa  encarnada  e  chapéu 
redondo ;  a  varina  de  camisa  bordada,  collete  estreito,  meia 
branca  e  chinella  polida;  era,  n'uma  palavra,  um  vasto  catasol 
ondulante  de  cidadãos  de  todas  as  províncias,  de  portuguezes 
da  montanha  e  do  valle,  de  gentes  do  norte  e  do  sul  do  reino. 
O  «brouhaha»  da  multidão  resfolegava  de  impaciência  e 
curiosidade,  como  um  oceano  que  respirasse  fremente,  e  apenas 
se  aquietou  quando,  pelo  meio  dia,  entraram  na  Praça  oito  fi- 
guras vestidas  ao  gosto  de  tragedia,  e  a  cavallo,  precedidas  de 
ternos  de  musica,  as  quaes  derramaram  no  chão  louros,  mur- 
tas e  fiôres. 

Era,  finalmente,  o  inicio  da  solemnidade,  ou,  como  hoje 
dizemos,  o  primeiro  numero  do  programma. 

Logo  depois  organizou-se  o  préstito  de  carruagens  que  con- 
duziam o  senado  da  camará  e  a  junta  do  commercio,  e  se  diri- 
giram para  a  calçada  da  Ajuda  a  fim  de  acompanhar  o  marquez 
de  Pombal  desde  o  seu  palácio. 

As  janellas  estavam  occupadas  pela  corte  e  seus  altos  di- 
gnitários, incluindo  as  damas  e  açafatas,  bem  como  pelo  corpo 
diplomático  estrangeiro. 

A  familia  real  viera  incógnita,  pela  manha,  e  aposentara-se 
nas  salas  da  mesa  da  consciência  ao  occidente  da  Praça. 

El- rei  D.  José,  adoentado  e  triste,  parecia  assistir  indiffe- 
rente  a  esse  pomposo  espectáculo :  era  ali  um  espectador  como 
os  outros,  pois  que  n'aque]le  dia  todas  as  honras  pertenciam  á 
sua  estatua,  e  não  á  sua  pessoa,  e  se  a  pessoa  apparecesse  offi- 
cialmente,  prejudicaria  a  estatua;  o  rei  de  bronze,  ofiferecido ás 
gerações  futuras,  supplantava  o  rei  mortal,  que  sentia  avisi- 
nhar-se  o  termo  de  seus  dias. 

Aquella  estatua  era  o  prologo  da  posteridade,  e  o  rei  sen- 
tia-se  talvez  mais  frio  do  que  a  estatua,  porque  o  sol  de  um  dia 
de  junho  a  devia  ter  aquecido. 

O  marquez  de  Pombal  e  seu  filho  o  conde  de  Oeiras,  am- 
bos de  capa  e  volta,  com  chapéus  de  cocares  brancos,  condu- 


300  o   LOBO  DA  MADRAGÔA 


zidos  n'uma  carruagem  da  casa  real,  escoltada  por  uma  com- 
panhia de  dragões,  e  seguidos  por  numeroso  e  brilhante  cortejo, 
vieram  esperar  a  hora  do  programma  no  palácio  novo  do  se- 
nado da  camará,  onde  se  apearam.  * 

Logo  depois  quatro  regimentos  de  infantaria  entraram  na 
Praça,  bem  como  esquadrões  de  cavallaria  que,  passando  por 
debaixo  do  arco  triumphal,  foram  postar-se  atraz  da  estatua, 
dando  a  impressão  de  quererem  seguir  o  cavallo  em  que  el-rei 
partia  n'aquelle  momento  para  a  immortalidade. 

A's  trez  horas  da  tarde  chegaram  os  reis  d'armas,  arautos 
e  passavantes,  com  os  timbales,  clarins  e  oboés  da  casa  real, 
e  começou  a  desfilar  o  luzido  préstito,  que  acompanhava  ao 
marquez  de  Pombal  e  ao  conde  de  Oeiras,  e  era  formado,  em 
duas  alas,  pela  junta  do  commercio,  senado  da  camará  e  casa 
dos  vinte  e  quatro. 

No  couce  do  préstito  vinham  o  esculptor,  o  fundidor  e  os 
principaes  mestres-de-obras  que  trabalharam  no  monumento. 

As  musicas,  collocadas  nos  pavimentos  térreos  de  ambos 
os  pavilhões,  entoaram  o  hymno  real. 

O  marquez  e  seu  filho,  parando  na  frente  da  estatua,  rece- 
beram os  cordões  da  cortina. 

Um  vento  rijo,  que  soprava  do  mar,  fel-a  papejar  violen- 
tamente, e  rompeu-a  no  momento  em  que  devia  descerrar-se. 

Apenas  a  cabeça  do  rei  ficou  a  descoberto,  como  estran- 
gulada. 

D.  José  I  empallideceu,  e  a  multidão^  suspensa  de  curiosi- 
dade, conservou-se  silenciosa,  de  cara  no  ar,  os  olhos  arrega- 
lados, n'uma  attitude  de  sôfrega  observação. 

Foi  preciso  que  um  meirinho  subisse  ao  pedestal  e  a  muito 
custo,  no  meio  de  um  grande  silencio  espectante,  fosse,  pouco 
a  pouco,  desvelando  a  estatua. 

Quando  a  cortina  cahiu,  o  marquez  de  Pombal,  chapéu  er- 
guido na  mão,  plumas  ao  vento,  fez  vénia  á  estatua,  curvando 
o  joelho  até  quasi  tocar  em  terra,  no  que  foi  imitado  por  todos 
os  assistentes,  e  um  rei  d'armas,  agitando  um  lenço  branco, 
proferiu  solemnemente  em  voz  alta:  «Viva  D.  José  I,  rei  de 
Portugal». 

Soaram  todas  as  musicas,  estalaram  foguetes,  ribombaram 
salvas  de  artilharia ;  os  reis  d'armas  soltaram  vivas  a  que  o 
povo  correspondeu;  versos  e  flores  vieram  adejando  das  janellas 
cahir  sobre  a  multidão. 


*  Este  palácio,  edificado  de  1770  a  1774,  vinha  desde  o  novo  largo  do  Pe- 
lourinho até  á  rua  do  Oiro.  Ardeu  em  19  de  novembro  de  1863. 


o  LOBO  DA   MADRAGÒA 


301 


O  marquez,  com  o  seu  cortejo,  deu  volta  ao  monumento,  e 
repetiu  a  vénia  antes  de  retirar-se  para  a  casa  da  junta  do  com- 
mercio,  cujas  janellas  lhe  estavam  reservadas. 

Pouco  depois  entrava  na  Praça  um  vistoso  carro  que  re- 
presentava o  «Templo  da  immortalidade»,  com  muitas  figuras 
allegoricas,  ricamente  vestidas. 

O  carro  deu  trez  voltas  ao  monumento,  e  após  elle  desíila- 


A  estatna  equestre 


ram  por  deante  da  estatua  os  regimentos  da  guarnição,  em  con- 
tinência militar. 

Anoitecia  quando  as  tropas  recolhiam  a  quartéis  e  a  mul- 
tidão começava  a  dispersar-se  pelas  ruas  da  Baixa. 

Era  apenas  uma  breve  pausa  nas  festas  d'aquelle  dia,  pri- 
meiro do  triduo  consagrado  ás  solemnidades  da  inauguração. 

As  illuminações  publicas  promettiam  ser  deslumbrantes,  e 
o  vento  refrescava  a  calma  de  junho,  o  que  tornava  agradável 
a  temperatura. 

A'  noite,  além  das  illuminações,  havia  ópera  no  theatro  do 
palácio  da  Ajuda,  sarau  e  ceia  na  casa  dos  vinte  e  quatro,  aca- 
demias litterarias  em  vários  conventos,  e  grande  bodo,  por  bi- 


302  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Ihetes  de  admissão,  offerecido  pelo  senado  da  camará  aos  mu- 
nícipes nos  amplos  armazéns  da  alfandega. 

O  bodo  foi  um  bródio,  uma  comesaina  colossal,  uma  in- 
gente rapina  pantagruelica. 

De  trezentas  arrobas  de  doce,  que  deviam  chegar  para  trez 
dias,  duzentas  e  cincoenta  desappareceram  n'essa  primeira 
noite,  devoradas  e  arrebanhadas  pelos  felizes  portadores  de  bi- 
lhetes de  admissão. 

A'  porta  da  alfandega  affluiam  grossas  ondas  de  povo,  que 
por  qualquer  modo  obtivera  o  direito  de  ingresso.  Era  enorme 
ali  o  apertão.  Os  criados  do  marquez  de  Pombal  e  do  conde  de 
Oeiras  haviam  distribuído  por  sua  conta  e  risco  grande  numero 
de  bilhetes  a  parentes,  amigos  e  conhecidos.  Todos  queriam 
entrar,  ninguém  queria  sahir;  e  alguns  que  sabiam,  levavam 
cabazes  cheios  de  bolos,  latas  de  conservas,  saccos  de  confei- 
tos, garrafas  de  vinho,  frascos  de  licor,  a  pretexto  de  o  faze- 
rem por  incumbência  dos  vereadores  ou  dos  funccionarios  do 
senado. 

Era  um  saque  em  forma,  realizado  no  meio  de  um  torve- 
linho cahotico,  de  um  pandemonium  espantoso,  que  desorien- 
tava os  copeiros,  os  serventes  e  fiscaes. 

António  Lobo,  arrastado  pela  multidão,  achou-se  dentro 
do  edifício  da  alfandega,  sem  que  ninguém  lhe  perguntasse  pelo 
bilhete,  que  não  tinha.  Aconteceu  isso  a  muitas  outras  pes- 
soas. 

—  Ah  !  disse  elle  com  os  seus  botões,  querem  que  eu  coma? 
Pois  faço-lhes  a  vontade;  comerei  e  beberei. 

Se  bem  o  disse,  melhor  o  fez.  Mas  não  se  alargou  tanto 
nas  libações,  que  ficasse  embriagado.  Teve  medo  de  si  mesmo, 
porque  detestava  o  marquez  de  Pombal,  não  só  por  suggestão 
da  nobreza,  mas  também,  agora,  de  conta  própria,  depois  da 
mallograda  ceia  em  casa  do  morgado  da  Boa- Vista,  e  porque 
não  tinha  feito  outra  coisa,  desde  pela  manhã,  senão  procurar 
o  reverso  cómico  de  toda  aquella  esplendorosa  solemnidade, 
que  elle  classificara  de — palhaçada  pombalina. 

Rira,  comsigo  próprio,  dos  versos  que  tinham  chovido  so- 
bre a  multidão,  e  ferviam-íhe  satyras,  na  cabeça,  ao  marquez, 
ás  salvas,  ás  luminárias  e  aos  poetas. 

Até  já  mentalmente  aconsoantára  o  principio  de  um  soneto 
picaresco : 


Trovejaram  os  poetas  da  manada, 
E  seguiu  se  uma  chuva  muito  fria 
De  versos,  que  no  campo  da  poesia 
Mui  grande  perda  fez  co'a  enxurrada. 


o  LOBO   DA   MADRAGÔA  303 


Mandou  Phebo  chamar  toda  essa  asnada, 
Para  os  corrigir  d'isto,  e  da  ousadia 
De  fallarem  na  estatua,  que  devia 
Por  elle  unicamente  ser  louvada. 


Mas  a  multidão  mettera-o  aos  empurrões  dentro  da  alfan- 
dega, quando  ia  pensando  nas  rimas  dos  tercetos  com  que  o  so- 
neto devia  terminar. 

Bebeu  cautelosamente,  para  evitar  a  embriaguez,  mas 
quando  voltou  á  Praça  do  Commercio,  e  respirou  o  ar  fresco 
da  noite,  sentira-se  bem  disposto  e  satisfeito. 

D'ali  a  pouco,  a  sua  attençao  foi  attraída  para  a  escada  da 
casa  dos  vinte  e  quatro,  onde  os  homens  bons  da  cidade  de- 
viam estar  effectuando  o  annunciado  sarau.  Ouviu  arruido,  gri- 
tos, pragas,  viu  muita  gente  a  fugir  e  quadrilheiros  correndo, 
para  conter  o  povo. 

—  Será  alguma  coisa  ainda  por  causa  do  genovez?  pensou 
António  Lobo. 

E  quedou-se  em  observação. 

O  genovez  era  João  Baptista  Pelle,  que  dias  antes  fora 
preso  como  suspeito  de  querer  fazer  voar  a  carruagem  do  mar- 
quez  por  meio  de  explosivos. 

A  policia  procurava  os  cúmplices  do  italiano,  que  elle, 
posto  a  tratos,  nem  assim  mesmo  denunciou. 

Mas  o  arruido  não  fora  causado  por  nenhum  facto  que 
se  relacionasse  com  o  supposto  attentado  de  João  Baptista 
Pelle. 

Outra  era  a  causa,  e  semelhante  ó  do  apertão  na  porta  da 
alfandega. 

A  sala  da  casa  dos  vinte  e  quatro  não  tinha  capacidade 
para  receber  mais  de  oitenta  pessoas.  Haviam  sido  distribuídos, 
por  comprazer  com  instantes  solicitações,  uns  trezentos  convi- 
tes. Ora  emquanto  o  juiz  do  povo  discursou,  e  se  cantou  por 
musica  um  hymno  a  «José  Augusto»  (que  era,  aliás,  o  augusto 
José,  rei  de  Portugal  e  dos  Algarves)  e  um  chuveiro  de  sone- 
tos, decimas  e  oitavas  asphyxou  oitenta  aborrecidos  espectado- 
res, os  duzentos  e  vinte  restantes  convidados  espiavam  na  rua 
o  momento  de  começar  a  ceia. 

E  quando  lhes  pareceu  que  era  chegada  a  occasião  oppor- 
tuna,  enfiaram  em  tropel  pela  escada  acima,  como  horda  de  fa- 
mintos e  lambareiros,  empurrando  as  sentinellas,  que  por  sua 
vez  os  repelliram  á  coronhada,  estabelecendo-se  um  coníiicto 
de  que  resultou  todo  o  arruido. 

Esta  refrega  durou  alguns  minutos,  e  no  theatro  da  acção 
ficaram  patentes  os  vestígios  d'ella :  fivelas  perdidas,  espadins 


304  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


quebrados,  plumas  de  chapéus,  luvas  e  lenços  dispersos  pelo 
chão. 

António  Lobo,  quando  observava  o  tumulto,  cuja  causa 
desconhecia,  sentiu  tocarem-lhe  no  hombro. 

Voltou-se  rapidamente,  e  logo  reconheceu  o  dr.  Alho  Mat- 
toso,  de  Villa  de  Frades. 

—  Vossa  Senhoria  por  aqui !  exclamou  Lobo.  Que  surpreza 
agradável ! 

—  Mais  surprehendido,  e  não  menos  agradavelmente,  me 
confesso  eu  —  disse  o  dr.  Mattoso  —  por  encontrar  a  esta  hora, 
na  Praça  do  Commercio,  um  poeta  que  devia  estar  na  casa  dos 
vinte  6  quatro  ou  em  qualquer  outra  parte  onde  hoje  brilham 
poetas. 

—  Bons  poetas!  respondeu  ironicamente  António  Lobo.  E' 
que  eu  não  sou  correeiro,  como  o  juiz  do  povo,  nem  sapateiro, 
nem  alfaiate,  nem  de  nenhum  outro  officio  como  os  deputados 
das  classes.  Também  não  sou  frade  de  S.  Francisco  para  to- 
mar parte  n'essa  famosa  academia,  que  pela  variedade  das  lín- 
guas parecerá  uma  Torre  de  Babel,  e  que  deve  estar-se  agora 
celebrando  no  convento  de  Nossa  Senhora  de  Jesus.  Sou  ape- 
nas um  homem  feliz,  a  quem  a  multidão  empurrou  para  dentro 
da  alfandega,  e  que  lá  ceiou  regaladamente,  como  tantas  vezes 
o  fiz  em  Villa  de  Frades  na  casa  de  Vossa  Senhoria.  Mas  di- 
ga-me  uma  coisa:  quando  chegou,  e  onde  está? 

—  Cheguei  ha  dois  dias,  e  vim  acompanhando  a  D.  Maria 
Engracia,  que  morreria  de  desgosto  se  não  viesse  a  Lisboa.  O 
meu  caro  poeta  bem  sabe  decerto  por  quê. . . 

Lobo  illudiu  a  resposta  dizendo : 

—  Por  causa  da  estatua. 

—  Por  causa  de  quem  não  quer  deixar  de  parecer  menos 
frio  que  o  bronze. 

Lobo  baixou  um  pouco  a  voz  e  replicou : 

—  Então  deve  ser  o  marquez  de  Pombal,  que  é  um  minis- 
tro de  ferro. 

—  De  bronze,  de  ferro  ou  de  carne  e  osso,  trata-se  de  Vossa 
Mercê,  a  quem  eu,  por  mais  que  o  procurasse,  não  tinha  po- 
dido encontrar  ainda.  E  não  era  porque  a  D.  Maria  Engracia, 
com  toda  a  sinceridade  da  sua  alma  de  alemtejana,  me  não  re- 
commendasse  a  cada  momento  que  lhe  desse  aviso  da  nossa 
chegada.  Mas  aonde?  Lisboa  é  grande,  e  n'esta  occasião  tem  o 
dobro  da  gente.  Vão  lá  encontrar  uma  determinada  pessoa,  a 
não  ser  por  acaso  ! 

—  Especialmente  uma  certa  pessoa  que  não  tem  casa  certa. 

—  Sim,  eu  não  sabia,  ou  me  esqueceu,  a  morada  de  Vossa 
Mercê. 


o   LOBO  DA   MADRAGÔA  305 


—  Nem  eu  sei...  respondeu  Lobo  sorrindo. 

—  Sempre  de  bom  humor! 

—  Mas  onde  é  que  se  hospedaram? 

—  Na  «Estalagem  transtagana». 

—  Onde  é  isso? 

—  Na  rua  dos  Douradores.  * 

—  Ah!  já  sei.  Que  tal  a  hospedagem? 

—  Irregular,  como  nao  pôde  deixar  de  ser  n'esta  occasiao, 
estando  a  casa  cheia  de  gente.  Mas  nós  temos  mais  alguma 
commodidade,  porque  comemos  n'uma  saleta  á  parte. 

—  E  por  onde  anda  agora  a  sr.°  D.  Maria  Engracia? 

—  Anda  decerto  a  verse  pôde  encontrar  Vossa  Mercê. 

—  Sôsinha? 

—  Não.  Acompanhada  por  outra  senhora,  que  encontrámos 
na  mesma  estalagem,  e  ambas  por  dois  criados  que  D.  Maria 
Engracia  trouxe  do  Alemtejo. 

—  A  outra  senhora  também  é  alemtejana? 

—  E'  de  Ponte  do  Lima.  Sei  apenas  que  se  chama  Isabel 
Júlia,  mas  parece  ser  pessoa  muito  respeitável.  Conhecemol-a 
ha  dois  dias  na  estalagem.  E  para  a  D.  Maria  Engracia  foi  uma 
felicidade. 

—  Também  para  Vossa  Senhoria,  que  pôde  ter  maior  folga. 

—  Engana-se.  Eu  andava  por  aqui  em  serviço  da  D.  Maria 
Engracia,  sem  que  ella,  aliás,  exigisse  tanto. 

—  Como  assim?  1 

—  Ella  procurava  Vossa  Mercê  de  conta  própria,  e  certa- 
mente estimava  que  eu  o  procurasse  como  obsequioso  auxiliar. 
Dividiam-se  assim  as  forças  para  envolver  mais  facilmente  o 
inimigo.  E  a  manobra,  sem  obedecer  a  um  plano  de  guerra, 
deu  comtudo  bom  resultado.  Cá  está  prisioneiro  o  inimigo! 
Vou  conduzil-o  ao  quartel-general. 

—  Agora  ? ! 

—  Pois  decerto.  Desejo  ser  agradável  á  minha  patrícia  e 
visinha,  que  merece  todas  as  attenções  do  meu  respeito. 

—  Agora  de  noite? 

—  Para  os  vencidos  não  ha  noite,  nem  dia.  Não  quero  que 
me  fuja  o  prisioneiro,  e  que  a  minha  cabeça  tenha  de  responder 
por  elle. 

—  Mas  uma  sécca  amorosa  custa  um  pouco  a  soífrer  de- 
pois de  uma  boa  ceia. 


*  O  decreto  de  5  de  novembro  de  1760,  coraquanto  destinasse  cada  ar- 
ruamento da  Baixa  a  determinados  officios,  permittiu  que  na  rua  dos  Doura- 
dores as  casas,  que  não  fossem  occupadas  por  esta  classe,  pudessem  servir  a 
tendas,  tabernas,  estalagens,  etc. 


306  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Não  será  do  mesmo  parecer  o  tio  do  marquez  de  OlhSo, 
que  ahi  anda  no  rasto  de  D.  Maria  Engracia,  e  que  abomina  a 
Vossa  Mercê,  desde  que  o  soube  seu  rival. 

—  Rival !  A  rivalidade  suppõe  concorrência,  e  eu  nSo  disputo 
a  mSo  d'essa  dama. 

—  Tanto  não  disputa,  que  a  recusou,  mas  disputa-a  elle,  e 
vê  um  perigo  em  Vossa  Mercê. 

—  E  eu  vejo  n'elle  um  grande  tolo.  Mas  nao  me  rala  isso 
agora,  que  estou  contente  como  um  rato  que  tivesse  devorado 
um  queijo.  Não  sirvo  para  amorios,  meu  caro  doutor.  E'  con- 
tra o  meu  génio. 

—  Pois  eu  sirvo  com  gosto  a  D.  Maria  Engracia.  Nós,  os 
alemtejanos,  somos  uns  pelos  outros.  E  a  boa  senhora  tantas 
vezes  falia  em  Vossa  Mercê,  que  até  já  a  D.  Isabel  Júlia  disse: 
«Eu  própria  estou  com  curiosidade  de  conhecer  esse  sujeito,  que 
todos  procuram,  e 'que  não  apparece  nunca». 

—  E  que  tal...  a  D.  Isabel  Júlia? 

—  Cabeça  branca. 

—  Outra  velha ! 

—  Nem  tanto.  Physionomia  de  doença  ou  desgosto. 

—  Só  me  apparecem  d'essas ! 

—  Isso  agora  é  menos  certo,  porque  o  João  Xavier,  que 
merendou  hoje  comnosco,  e  que  também  ficou  de  procurar 
Vossa  Mercê,  contou  vagamente  a  historia  de  uma  ceia  em  casa 
do  morgado  da  Boa-Vista. .  • 

—  Pois  elle  contou  isso,  o  linguareiro?  !  Ha  quarenta  e  oito 
horas  que  não  vejo  esse  diabo  de  homem,  que  decerto  anda  a 
merendar  com  os  forasteiros  pelas  estalagens,  mas  quando  o 
vir  hei  de  justar  contas  com  elle. 

—  E  as  senhoras  estavam  tão  interessadas  no  conto,  que 
se  mostraram  aborrecidas  de  elle  o  deixar  em  meio. 

—  Pois  foi  mais  longe  do  que  devia,  porque  o  conto  não 
teve  meio ;  ficou  apenas  no  principio. 

—  O  que  não  pôde  ficar  apenas  no  principio  é  a  historia 
d'este  meu  feliz  encontro.  Vossa  Mercê  tem  a  bondade  de  che- 
gar agora  comigo  á  rua  dos  Douradores? 

—  A  D.  Maria  Engracia  ainda  decerto  se  não  recolheu  a 
casa;  deve  andar  a  vêr  as  luminárias. 

—  Não  tem  duvida;  esperaremos.  E  entretanto  Vossa  Mercê 
ceiará. 

—  Outra  vez  não  pôde  ser.  E'  que  eu  ceei  á  custa  da  cidade 
e  estou  municipalmente  repleto.  Preciso  tomar  ar,  fazer  exer- 
cido. Mas  irei  amanhã  cumprimentar  a  sr."  D.  Maria  Engracia. 

—  E'  um  subterfúgio^  que  me  desgosta. 

—  Não  é.  Dou  a  Vossa  Senhoria  a  minha  palavra  de  honra. 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  307 


—  Bem;  acceito-a.  A  que  horas  irá? 

—  A's  que  Vossa  Senhoria  me  indicar. 

—  Então  ás  oito,  para  almoçarmos  juntos. 

—  Pois  seja.  Vá  Vossa  Senhoria  tranquillo  com  a  minha 
palavra  de  honra.  Não  faltarei. 

—  Então,  meu  caro  Lobo,  até  amanhã. 

O  poeta  apartou-se,  dizendo  com  os  seus  botões: 

—  Que  maçada  me  espera  amanhã! 

E  logo,  mudando  o  rumo  ao  pensamento,  procurou  compor 
os  tercetos  que  deviam  completar  a  satyra  contra  os  poetas  da 
estatua. 

Foram  á  correcção  centos  e  centos; 

E  tendo-os  Phebo  em  pé,  e  á  mão  esquerda, 

Os  reprehendeu  de  seus  atrevimentos. 


Mas  depois  encontrou  conhecidos,  que  andavam  a  flaino, 
chalaçou  e  riu  com  elles,  e  o  soneto  ficou  ainda  incompleto 
n'essa  noite. 

Quando  o  dr.  Alho  Mattoso  entrou  na  estalagem  da  rua  dos 
Douradores,  já  lá  encontrou  as  duas  senhoras  que,  apesar  de 
mortas  de  fadiga,  estavam  esperando  por  elle  para  saber  se, 
mais  feliz  que  ellas,  teria  encontrado  António  Lobo. 

O  dr.  Mattoso  procurou  disfarçar  a  verdade  para  tornar 
ainda  mais  agradável  a  surpreza. 

—  Então?  perguntou  elle. 

—  Nada  f  respondeu  D.  Maria  Engracia.  Estará  talvez 
doente.  E  Vossa  Senhoria? 

—  Nada,  também. 

—  Se  nós  fossemos  á  intendência  geral  da  policia  pedir  que 
nos  ajudasse?...  aventou,  com  timidez,  a  dama  alemtejana. 

O  dr.  Mattoso  sorriu  e  disse : 

—  A  procurar  o  menino  perdido?  Ora,  minha  senhora,  a 
policia  ainda  não  conseguiu  encontrar  os  cúmplices  de  João  Ba- 
ptista Pelle  e  comtudo  bem  os  tem  procurado  1  EUa  não  pôde 
querer  servir-nos  melhor  do  que  ao  marquez  de  Pombal. 

—  Dê  Vossa  Senhoria  alguma  idéa,  disse  D.  Maria  Engra- 
cia a  Isabel  Júlia. 

—  Eu !  Fraca  sou  para  dar  idéas,  sobretudo  quando  se  trata 
de  procurar  uma  pessoa  n'uma  terra  que  não  conheço. 

—  Tem  razão!  Pobre  senhora  D.  Isabel!  quanto  eu  a  terei 
enfadado  com  estas  minhas  impaciências. . . 

—  A  mim?!  Nada,  absolutamente  nada. 

—  Não  quero  que  esteja  triste,  nem  aborrecida  por  minha 
causa. 


308  o   LOBO   DA  MADRAGÔA 


—  Não,  minha  senhora,  eu  não  estou  triste  e  menos  ainda 
aborrecida.  E'  modo  meu. 

De  repente  o  dr.  Mattoso  levantou-se  da  cadeira  em  que  se 
havia  sentado,  e  apostrophou  triumphante : 

—  Saibam  que  fui  nomeado  intendente  geral  da  policia  da 
corte  e  reino. 

Maria  Engracia  e  Isabel  Júlia  olharam  surprehendidas  uma 
para  a  outra. 

—  Fui,  sim,  proseguiu  o  dr.  Mattoso,  porque  o  marquez 
de  Pombal  se  convenceu  de  que  era  eu  n'este  reino  a  única 
pessoa  apta  para  exercer  esse  cargo.  Lá  vai  a  bomba :  achei  o 
homem  1 

—  Achou !?  exclamaram  as  duas  senhoras  ao  mesmo  tempo. 

—  Achei.  E  vem  amanha  almoçar  comnosco  ás  oito  horas. 

—  Até  que  emtim !  disse  J).  Maria  Engracia. 

—  Ainda  bem!  commentou  Isabel  Júlia.  Ainda  bem...  por 
que  a  sr.'  D.  Maria  Engracia  o  estima. 

—  E  comtudo  elle  é  um  ingrato!  reflexionou,  com  des- 
alento, a  viuva  Bellem. 

—  Um  ingrato. . .  repetiu  Isabel  Júlia.  Parece  ser.  Mas  ha 
tanto  d'isso ! 

—  Minhas  senhoras !  trovejou  o  dr.  Mattoso.  Vou  tomar 
conta  do  meu  cargo. 

E,  pegando  n'um  candeeiro  de  latão,  fez  vénia,  dizendo : 

—  Uma  noite  bem  descansada. 

—  Muito  boa  noite,  responderam  as  duas  damas. 


XXIII 


Dezesete  annos  depois 


A  viuva  Bellem  sahiu  do  seu  quarto  logo  ao  romper  do  dia, 
e  foi  chamar  Isabel  Júlia,  com  quem  sympathisava  tanto,  que 
lhe  parecia  conhecel-a  já  desde  muito  tempo. 

Achou-a  a  pé,  com  a  physionomia  perturbada. 

—  Passou  mal  a  noite,  minha  boa  amiga?  perguntou  cari- 
nhosamente D.  Maria  Engracia.  Consinta  que  lhe  chame  minha 
boa  amiga,  porque  os  impulsos  do  coração  dSo  ás  vezes  mais 
direitos  do  que  a  longa  acção  do  tempo. 

—  Oh!  minha  senhora!  quanto  me  penhora  tratando-me 
assim !  Acredite  que  também  a  estimo  muito,  e  que  até  me  pa- 
rece ter  sido  Deus  que  preparou  este  nosso  encontro. 

—  Pois,  minha  boa  amiga,  ha  de  certamente  ter  estranhado 
todo  este  meu  alvoroço  em  idade  que  devia  ser  de  fria  reflexão. 
Mas  que  quer?  Por  mais  excepcional  que  isto  lhe  pareça,  eu 
amo  António  Lobo. 

—  Já  o  tinha  comprehendido. . . 

—  Sabendo  a  minha  vida,  ha  de  desculpar-me. 

—  Se  a  desculpo  ! 

—  Casei,  á  vontade  de  meus  pais,  com  um  homem  honrado 
e  sério,  mas  nada  carinhoso.  Era  triste,  concentrado,  de  muito 
poucas  falias.  Respeitei- o  sempre,  como  devia,  mas  não  che- 
guei a  amal-o  nunca.  Enviuvei  e  a  mim  mesma  perguntava  se 


310  o    LOBO   DA    MADRAGÔA 


uma  mulher  podia  chegar  á  velhice  sem  ter  amado,  e  se  isso 
era  viver.  Sabe  a  minha  boa  amiga  quem  me  respondeu? 

—  Foi  o  coração. 

—  Foi,  sim,  quando  vi  António  Lobo,  o  homem  mais  en- 
graçado e  independente  que  ainda  conheci.  Mas  a  sua  resposta, 
minha  boa  amiga,  faz-me  crer  que  também  tem  soffrido  por 
amor. 

—  Alguma  coisa. 

Houve  um  momento  de  silencio. 

—  Eu  receio  ser  indiscreta,  disse  D.  Maria  Engracia.  Mas 
acredite  que,  por  uma  sympathia  tão  rápida  como  sincera,  a 
sua  vida  me  interessa. 

—  Eu  agradeço  muito  os  bons  sentimentos  de  Vossa  Se- 
nhoria para  comigo,  e  creia  que  os  retribuo  mais  ainda  do  que 
pôde  imaginar.  Assim,  não  tem  que  receiar  ser  indiscreta. 

—  Ainda  bem!  Ah!  eu  suspeito  que  tenha  amado. . . 

—  E  não  se  engana. 

—  Casou? 

—  Não  casei. 

—  Amor  mal  correspondido? 

— ^Sim...  talvez.  Nem  eu  sei  bem. 

—  Como?!  Não  sabe?! 

—  Não  sei,  é  certo,  porque  o  homem,  a  quem  amo  desde 
a  mocidade,  se  não  casou  comigo,  também,  segundo  ultima- 
mente pude  averiguar,  não  casou  com  nenhuma  outra. 

—  Mas  fizeram  algum  juramento  n'esse  sentido? 

—  Nenhum. 

—  E'  extraordinário !  Agora  começo  eu  a  interessar-me 
ainda  mais.  E  vê-o?  Vivem  na  mesma  terra? 

—  Não,  minha  senhora.  Ha  muitos  annos  que  o  não  vejo. 

—  Parece  um  caso  de  novella ! 

—  Pois  é  inteira  verdade. 

—  E,  diga-me,  havia  de  ter  muito  quem  a  quizesse  despo- 
sar; mas  recusou  sempre? 

—  Muito  não.  Houve  um  rapaz  da  minha  creação  que  gos- 
tava de  mim  e  quiz  casar  comigo. 

—  Morreu  ? 

—  Morreu  o  anno  passado.  Coitado  d*elle !  não  teve  felici- 
dade nenhuma  por  minha  causa ! 

—  Tem  muita  pena? 

—  Isso  tenho,  porque  foi  muito  bom  para  mim.  E'  certo 
que  eu  o  tratei  com  a  dedicação  de  uma  irmã :  era  um  senti- 
mento sem  mancha,  um  affecto  innocente.  E  assim  foi  sempre. 
Quando  o  pobre  rapaz  estava  doente,  era  eu  a  sua  enfermeira. 
Assisti-lhe  á  morte,  fechei-lhe  os  olhos,  e  se  elle  ainda  vivesse, 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  311 


eu,  para  lhe  poupar  desgostos,  nao  teria  vindo  procurar  nas 
festas  de  Lisboa  alguma  distracção,  de  que  bem  preciso. 

—  E  o  outro? 

—  Vive  longe. 

—  Decerto;  para  o  não  ter  visto  ha  muitos  annos!  No 
reino  ? 

—  Sim,  no  reino. 

—  Pôde  ser  que  viesse  também  ás  festas. 

—  Se  eu  o  encontrar,  dou-me  por  bem  paga  de  ter  vindo  a 
Lisboa. 

—  Não  o  tem  procurado  ? 

—  Penso  n'elle,  e  desejo  muito  vêl-o  antes  de  morrer. 

—  Para  recomeçar  a  amal-o? 

—  Não,  minha  senhora.  Para  continuar  a  amal-o  lealmente, 
sem  lh'o  fazer  lembrar. 

—  Admiro  a  sua  coragem  ! 

—  Não  é  coragem ;  é  resignação. 

—  O  nosso  caracter  é  differente,  mas  os  nossos  destinos 
são  parecidos.  Cada  uma  de  nós  ama  um  ingrato.  O  coração 
não  me  enganou  logo  que  a  vi. . .  Ha  de  dizer-me  os  signaes 
d'elle.  Quero  ajudal-a  a  procural-o,  tanto  quanto  me  tem  aju- 
dado a  mim.  Seremos  desde  hoje  duas  dedicadas  amigas. 

—  Certamente.  Mas  os  signaes  d'elle...  nem  eu  os  sei  bem 
agora. 

—  Ora  essa! 

—  Se  estiver  tão  velho  como  eu,  não  o  reconhecerei  de- 
certo, come  elle  também  me  não  reconhecerá  a  mim. 

—  Ser  velha !  Então  que  direi  eu ! 

—  Pois  Vossa  Senhoria  não  vê  como  está  branco  o  meu 
cabello ! 

—  Vossa  Senhoria!  Bem  quizera  eu  que  me  não  tratasse 
assim. 

—  Então  como  quer  que  eu  a  trate? 

—  Pelo  meu  nome,  mas  sem  cerimonia  nenhuma.  Não  lhe 
parece  que  o  «tu»  fica  bem  entre  duas  amigas? 

—  Pois  seja  assim.  Direi  apenas...  Maria  Engracia. 

—  E  eu. . .  só  Isabel  Júlia,  também. 

Abraçaram-se  com  essa  impetuosa  necessidade  de  expan- 
são, que  é  própria  dos  corações  atormentados. 

D.  Maria  Engracia  carinhosamente  continuou  a  interrogar 
com  vivo  interesse : 

—  Dize-me,  Isabel,  qual  de  vós  é  mais  velho? 

—  Elle. 

—  Muitos  annos? 

—  Quatro  apenas. 


312  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


—  Ah!  suspirou  a  alemtejana.  Isso  é  uma  pequena  diffe- 
rença. 

—  Mas  eu  agora  é  que  devo  parecer  mais  velha. 

—  Tontinha !  E  que  modo  de  vida  tem  elle?  E'  fidalgo? 

—  Não;  nao  é  fidalgo.  Do  que  vive,  ignoro;  se  ha  tantos 
annos  que  nao  sei  nada  da  sua  vida ! 

A's  oito  horas  da  manhã  o  dr.  Mattoso  annunciou  n'um 
berreiro  : 

—  Cá  está  o  homem  I 

A  viuva  Bellem  veiu  a  saleta  receber  António  Lobo,  com  o 
alegre  semblante  de  quem  se  avista,  finalmente,  com  uma  pes- 
soa cuja  presença  desejava. 

—  Vamos  já  almoçar,  dizia  o  dr.  Mattoso,  que  temos  hoje 
muito  que  vêr.  E'  preciso  chamar  a  D.  Isabel.  Ella  já  estará 
a  pé? 

—  Ha  muito  tempo,  respondeu  a  alemtejana.  Eu  mesma 
vou  buscal-a. 

Quando  António  Lobo  viu  assomar  á  porta  da  saleta  essa 
figura  de  mulher,  extremamente  pallida,  com  o  cabello  todo 
branco,  notou-lhe  alguns  traços  de  semelhança  physionomica 
com  a  Therezinha  de  Villalva,  e  ficou  impressionado. 

Mas  conteve-se,  dizendo  a  si  próprio : 

—  Não,  não  pôde  ser  ella.  Esta  senhora  é  muito  mais  ve- 
lha. Ha  apenas  alguma  coincidência  de  feições.  De  mais  a  mais 
esta  Isabel  Júlia  é  natural  de  Ponte  do  Lima. . . 

Continuando  a  vêr  na  imaginação  a  Therezinha,  que  elle 
tinha  conhecido  nova  e  alegre,  radiante  de  frescura  e  mocidade, 
tranquillisava-se  certificando  a  si  mesmo  : 

—  Não  poderia  estar  tão  velha.  Nem  a  voz  é  a  mesma  que 
eu  ouvia  cantar  na  Palmeira  e  que  parecia  o  gorgeio  de  uma 
ave.  O  sotaque  é  bem  minhoto,  sim,  mas  Isabel  também  é  do 
Minho,  que  admira,  pois! 

Era  que  elle,  habituado  a  viver  entre  muita  gente,  não  sus- 
peitava, sequer,  quanto  o  habito  do  silencio,  longo  e  triste, 
torna  inconsistente  e  hesitante  a  voz  humana, 

Por  sua  vez,  Isabel  Júlia  sentia-se  abafar  nas  palpitações 
violentas  do  coração.  Tinha  nos  ouvidos  um  ruido  semelhante 
ao  de  muitos  sinos  que  tangessem  tumultuariamente;  e  um  ne- 
voeiro ondulante,  zebrado  de  manchas  pardacentas,  turva va-lhe 
a  vista.  Receiou  perder  os  sentidos  e  denunciar-se. 

O  leitor  já  adivinhou  decerto  que  Isabel  Júlia  era  a  There- 
zinha de  Villalva. 

Era  ella  que  não  queria  morrer  sem  tornar  a  vêr  António 
Lobo,  e  por  isso  viera  a  Lisboa  aproveitando  justamente  uma 
occasião  em  que,  pela  affluencia  de  forasteiros,  poderia  vêl-o 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


313 


com  probabilidades  de  não  ser  reconhecida.  Mas  quantas  incer- 
tezas a  rodeiavani  n'esta  sua  arrojada  viagem !  Seria  elle  ainda 
vivo?  Residiria  ainda  em  Lisboa?  Lograria  ella  encontrai- o  e 
reconhecel-o?  Se  é  vivo,  dissera  Therezinha  comsigo  mesma, 
hei-de  vêl-o,  custe  o  que  custar;  hei-de  reconhecel-o  por  força, 
porque  o  meu  coração  ha  de  dizer- me:  «E'  aquelle». 


Isabel  Júlia  (Therezinha) 


E  com  esta  fé  viva,  capaz  de  operar  prodígios,  se  decidiu  a 
deixar  por  algum  tempo  a  sua  querida  terra,  o  seu  doce  ninho 
de  recordações  saudosas,  e  a  fazer  uma  longa  viagem,  sósi- 
nha,  com  as  cautelas  e  mysterios  de  quem  viesse  praticar  um 
crime. 

Quando  viu  Lisboa,  teve  um  momento  de  desanimo.  Como 
poderia  ella  encontrar  António  Lobo  entre  tanta  gente,  n'uma 


314  o   LOBO   DA    MADRAGÔA 


terra  tamanha?  Dir-se-ia  que  a  tinha  assaltado,  de  súbito,  a 
phobia  dos  grandes  espaços.  A  cidade,  com  os  seus  vastos  edi- 
fícios e  arruamentos  pombalinos,  fez-lhe  medo.  Therezinha 
quasi  chegou  a  arrepender-se  de  ter  fugido  ás  seis  arvores  e 
aos  dois  outeiros  da  sua  pequenina  aldeia  de  Villalva. 

Tomou  uma  estalagem  ao  acaso  e  n'ella  encontrou  a  Pro- 
videncia, o  imprevisto  auxilio  com  que  o  céu  acode  a  todos  os 
desgraçados :  maná  no  deserto,  jorro  de  agua  no  Horeb,  taboa 
de  salvação  no  naufrágio. 

Tendo  por  companheiros  de  estalagem  o  dr.  Mattoso  e 
D.  Maria  Engracia,  ouviu  fallar  de  António  Lobo.  Era  a  Provi- 
dencia que  misericordiosamente  lhe  punha  nas  mãos  um  fio 
conductor.  Manifestamente  os  dois  alemtejanos  referiam-se  ao 
poeta.  Elle  estava,  pois,  vivo  e  solteiro  ainda,  porque  D.  Maria 
Engracia  não  tinha  sabido  occultar  o  sentimento  que  Lobo  lhe 
inspirara.  Therezinha  não  quiz  mal  áquella  mulher  pela  coinci- 
dência de  amarem  ambas  o  mesmo  homem.  Pelo  contrario, 
achou  providencial  esse  encontro,  e  agradeceu-o  com  fervorosa 
gratidão  ao  anjo  protector  dos  desgraçados.  Ella  não  vinha 
disputar  a  ninguém  o  amor  de  António  Lobo;  vinha  unica- 
mente vêl-o,  acalmar  o  coração  saudoso,  e  preparar-se  para 
morrer,  tranquillamente,  na  paz  de  Deus  e  da  sua  aldeia. 

Foi  ainda  o  Providencia  que  lhe  valeu  na  occasião  em  que 
entrou  na  saleta  onde  António  Lobo  estava. 

Pôde  dominar-se,  readquirir  a  sua  habitual  coragem,  a  que 
ella  tão  singelamente  chamava  resignação. 

A  pouco  e  pouco,  o  coração  foi  socegando;  o  nevoeiro  des- 
fazendo-se. 

E  podendo  então  observar  esse  homem,  que  tinha  sido  o 
único  amor  de  toda  a  sua  vida,  Therezinha  escutou  uma  voz 
interior,  que  lhe  dizia  : 

—  Santo  Deus!  como  também  está  velho!  Quem  poderia 
adivinhar  n'elle,  desprevenidamente,  aquelle  endiabrado  rapaz 
da  Palmeira  ? ! 

E  ao  sentarem-se  á  mesa  do  almoço,  quando  Lobo  lhe  di- 
rigiu uma  pergunta,  Therezinha  sentiu  escaldar-lhe  as  faces 
um  rubor  honesto :  era  a  recordação  do  beijo  que  elle  lhe  havia 
furtado. 

—  Ja  sei  que  Vossa  Senhoria  é  do  Minho,  e  de  Ponte  do 
Lima.  Mas  não  tem  parentes  em  Santo  Thyrso? 

Therezinha  estremeceu  de  commoção. 

—  Já  não  tenho  parentes  em  parte  nenhuma,  disse  ella, 
vencendo-se. 

—  E*  que  eu...  conheci  outr'ora  varias  famílias  d'essa  terra, 
que  é  próxima  da  minha. 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  315 


—  Mas  por  que  faz  Vossa  Mercê  essa  pergunta? 

—  Porque...  também  conheci  lá  uma  pessoa,  de  quem  a 
sr.*  D.  Isabel  me  dá  alguma  idéa. 

De  novo  se  alvoroçou  o  coração  de  Therezinha. 

—  Não,  disse  ella,  procurando  atalhar  o  dialogo,  e  conter-se; 
não  tenho  parentes  em  parte  nenhuma. 

—  Parece  soffrer  ? 
Therezinha  sorriu  e  disse : 

—  Não  soffro;  sou  velha.  Digamos  as  coisas  como  ellas  são. 

—  Sempre  a  pensar-se  velha!  exclamou  D.  Maria  Engra- 
cia.  Tem  tido  desgostos,  que  pesam  ainda  mais  que  a  velhice. 

—  Desgostos?  interrogou  António  Lobo. 

A  certe/a  de  não  haver  sido  completamente  esquecida  e  o 
gradual  regresso  á  convivência  foram  a  pouco  e  pouco  afinando 
a  voz  de  Therezinha,  restituindo-lhe  alguma  parcella  da  sua  an- 
tiga melodia. 

Comtudo  já  não  era,  e  não  fora  nunca  mais,  o  mesmo  gor- 
geio  d'outr'ora  :  é  que  a  voz  humana  tem  também  a  sua  prima- 
vera;  o  tempo  desaninha  do  vergel  de  cada  alma  os  rouxinoes 
que  a  mocidade  inspirou. 

No  soffrimento  e  na  velhice,  ainda  que  seja  prematura,  a 
voz  vai  adquirindo  lagrimas  e  perdendo  cânticos. 

■  Mas  Therezinha,  readquirindo  os  hábitos  de  convivência, 
foi-se  exercitando  no  trato  social,  que  a  educação  lhe  insinuara, 
e  que  um  instincto  senhoril  favorecia. 

Por  isso  respondeu  a  António  Lobo  já  com  maior  desem- 
baraço : 

—  A  minha  amiga  quer  dizer  que  não  pôde  ser  alegre  quem 
vive  longe  do  mundo  e  já  não  tem  familia.  Mas  agora,  no  meio 
de  todas  estas  grandes  festas  de  Lisboa,  não  se  deve  fallar  das 
tristezas  de  cada  um. 

—  Pois  decerto,  obtemperou  o  dr.  Mattoso.  E  o  caso  é  que 
temos  hoje  muito  que  vêr.  Dizem-me  que  são  deslumbrantes  os 
carros  e  as  figuras  da  casa  dos  vinte  e  quatro. 

—  Queira  Deus  que  sejam  melhores  que  os  poetas!  disse 
António  Lobo. 

E  esta  phrase  foi  o  ponto  de  partida  de  uma  longa  serie  de 
chistosos  ditos,  em  que  Lobo,  animando-se  progressivamente, 
prodigalisou  toda  a  scintillante  mordacidade  do  seu  espirito. 

Mas  sempre  que  tinha  de  se  dirigir  a  Isabel  Júlia,  o  fazia 
com  respeitosa  deferência  e  attenciosa  compostura. 

Evidentemente,  aquella  dama,  ainda  ha  instantes  desconhe- 
cida para  elle,  infundia-lhe  um  sentimento  de  veneração,  que 
os  cabellos  brancos  e  os  sulcos  da  face  de  Isabel  Júlia  appa- 
rentemente  justificavam. 


316  o   LOBO    DA   MADRAGÔA 


A  verdade  é  que  António  Lobo  achava  na  physionomia 
d'ella  uma  vaga  recordação  do  passado,  como  que  uma  evoca- 
ção muito  longinqua  e  confusa  da  Therezinha  de  Villalva ;  e, 
mais  talvez  que  na  physionomia,  no  poHdo  acanhamento,  na 
modéstia  senhoril  com  que  ella  respondia  a  todas  as  perguntas. 

—  A  mulher  do  Minho,  pensava  elle,  quando  não  seja  um 
anjo  de  innocencia,  está  muito  longe  de  ser  um  demónio  de  as- 
túcia. Therezinha  era  uma  alma  simples,  sincera  e  crédula ;  as- 
sim deve  ser  ainda,  se  acaso  vive. 

Mas  esta  recordação  apenas  o  entristecera  nos  primeiros 
momentos;  depois  sentiu-se  alegre,  de  uma  alegria  quasi  doida, 
como  se  essa  mesma  recordação  o  tornasse  subitamente  feliz 
n'aquelle  dia. 

—  Vossa  Mercê  está  hoje  divino!  dizia-lhe  o  dr.  Mattoso. 

—  Perdão!  não  queira  Vossa  Senhoria  usurpar  o  vocabu- 
lário do  padre  Macedo. 

—  Direi  então  que  está  graciosíssimo. 

—  E'  que  me  subiu  a  estatua  á  cabeça.  Deus  queira  que  o 
peso  do  cavallo  me  não  esmague  a  mioleira. 

João  Xavier,  chegando  n'esta  occasião,  ainda  tomou  parte 
no  almoço;  e  contribuiu  para  estimular  a  graça  picante  de  An- 
tónio Lobo. 

Rindo  se  levantaram  da  mesa.  Isabel  Júlia  não  era  por 
certo  a  menos  contente  d'aquellas  cinco  pessoas  que  almoçaram 
juntas  na  saleta  da  «Estalagem  transtagana». 

E'  que  ella  repetia  a  si  mesma,  n'um  delicioso  encanto  de 
saudade  rediviva : 

—  Ainda  se  lembra  de  mim!  Eu  sou  a  pessoa  que  elle 
disse  ter  conhecido  em  Santo  Thyrso. 

O  dr.  Mattoso,  habituado  a  ser  obedecido  na  faina  agrícola 
da  sua  herdade,  era  quem  dava  as  vozes  de  commando  no  res- 
peitante ao  horário  de  cada  dia. 

—  Vamos  para  a  rua,  disse  elle,  que  a  sr.*  D.  Maria  En- 
gracia  e  eu  já  não  vemos  Lisboa  ha  muito  tempo,  e  a  sr.^  D.  Isa- 
bel não  a  viu  nunca.  Os  nossos  poetas,  se  não  teem  destino 
certo,  far-nos-hão  o  favor  de  servir-nos  de  guias.  Ahi  pela  uma 
hora  da  tarde  precisamos  estar  de  plantão  na  Praça  do  Com- 
mercio,  porque  as  festas  principiam  ás  trez  horas. 

António  Lobo  respondeu  logo  que  podiam  dispor  do  seu 
préstimo  de  «cicerone». 

D.  Maria  Engracia  mostrou- se  discretamente  satisfeita  com 
esta  resposta;  deante  de  Lobo  não  ultrapassava  nunca  as  con- 
veniências que  a  sua  idade  lhe  impunha.  E  Isabel  Júlia  sentiu 
inundar-lhe  a  alma  uma  onda  de  intima  felicidade,  que  os  seus 
olhos  traíram  levemente  n'um  relâmpago  de  alegria. 


o   LOBO  DA   MADRAGÔA  317 


Bem  aproveitadas  as  horas,  sob  o  commando  do  dr.  Mat- 
toso,  viram,  n'esse  pouco  tempo,  o  mais  que  foi  possivel. 

Lobo  desempenhou-se  pontualmente  do  seu  papel  de  «cice- 
rone» e,  por  um  sentimento  de  conveniência,  que  era  n'elle  ex- 
cepcional, repartiu  attenções  e  delicadezas  entre  D.  Maria  En- 
gracia  e  Isabel  Júlia,  sem  maior  deferência  para  uma  ou  para 
outra. 

N'aquelle  dia  não  se  enfadava  de  acompanhar  damas,  bem 
ao  contrario  do  seu  génio  inquieto  e  insubmisso ;  parecia,  sem 
que  elle  o  pudesse  explicar  a  si  próprio,  que  a  presença  de  Isa- 
bel Júlia  lhe  aligeirava  o  encargo  que  voluntariamente  assumira. 

E  mostrando  um  edifício,  indicando  uma  rua,  fazendo  no- 
tar uma  pessoa  que  passava,  acudiam-lhe  graciosas  referencias, 
que  tornavam  suave  a  peregrinação  de  arruamento  em  arrua- 
mento. 

—  O  marquez  de  Pombal,  explicava  elle  ás  duas  senhoras, 
destinou  cada  rua  da  Baixa  para  determinado  mister.  Esta  rua 
em  que  vamos  passando  agora,  é  a  dos  Sapateiros.  Todas  as 
artes  e  oííicios  teem,  pois,  sua  rua,  menos  os  poetas,  que  n'esta 
prerogativa  ficam  abaixo  dos  sapateiros.  E  sabem  por  quê? 

—  Nao  sabemos. 

—  Porque  em  Lisboa  sSo  tantos  os  poetas,  que  nSo  haveria 
rua  onde  pudessem  caber  todos. 

Mais  adeante  dizia  António  Lobo,  indicando  uma  sege  que 
passava : 

—  Aquelle  sujeito  que  ali  vae,  dentro  da  sege,  tem  man- 
dado para  o  céu  milhares  de  almas. 

—  E'  medico?  perguntou  o  dr.  Mattoso. 

—  Não,  é  inquisidor,  mas  desde  que  o  marquez  de  Pombal 
saltou  como  raposa  no  gallinheiro  do  Santo  Officio,  ficou  valendo 
menos  cincoenta  por  cento. 

Referia-se  ao  alvará  e  regimento  de  1774  que,  acabando 
com  a  odiosa  omnipotência  da  inquisição,  a  reduziram  a  ser 
apenas  um  tribunal  régio. 

—  Como  Vossa  Mercê  escapou  da  fogueira  ou  da  polé,  é 
que  eu  não  sei  I  disse  a  meia  voz  o  dr.  Mattoso. 

—  E'  verdade !  Muitas  vezes  me  deitei  com  medo  de  vir  a 
ser  carne  assada  no  primeiro  auto  de  fé. 

—  Creio  que,  ao  menos  por  esta  providencia,  não  deixará 
de  applaudir  o  marquez. 

—  Eu  sou  o  homem  mais  contradictorio  d'este  mundo. 
Aborreço  o  marquez  —  disse  elle  parando  cautelosamente  no 
meio  do  grupo  —  porque  é  um  déspota,  e  tenho  de  applaudil-o 
ás  vezes ;  aborreço  os  frades  e  vivi  excellentemente  entre  os  pa- 
dres cruzios  da  Palmeira,  no  Minho. . . 


318  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Isabel  Júlia  atalhou  a  phrase,  dizendo  n'um  impulso  invo- 
luntário : 

—  Eram  bons  esses  padres? 

—  Tão  bons,  que  conservo  d'esse  tempo  uma  agradável  me- 
moria. Os  dias  que  passei  entre  elles  foram  os  mais  ditosos  da 
minha  vida. 

O  coração  de  Isabel  Júlia  bateu  desordenadamente,  como  o 
de  uma  avesinha  que  se  visse  de  repenle  colhida  na  mão  de 
uma  creança  estouvada. 

—  Um  bom  confessor,  disse  D.  Maria  Engracia,  ironisando 
gravemente  a  phrase,  ainda  teria  que  notar  outras  contradic- 
ções  nos  peccados  de  Vossa  Mercê. 

—  Pois  se  eu,  minha  senhora,  sou  o  homem  mais  contra- 
dictorio  d'este  mundo ! 

A'  uma  hora  da  tarde,  estavam  de  plantão  no  Terreiro  do 
Paço,  como  o  dr.  Mattoso  ordenara  militarmente. 

Ali  passaram  duas  horas,  que  o  bom  humor  de  António 
Lobo  encurtou  deleitosamente. 

João  Xavier  havia-se  escapado. 

Lobo  dissera  quando  deu  pela  falta  d'elle : 

—  Foi  na  piugada  d'alguma  Filis  ou  Dircea.  Ha  de  morrer 
com  este  sestro. 

—  Felizmente  para  nós,  no  dia  de  hoje,  Vossa  Mercê  pensa 
de  outro  modo,  replicou,  com  um  leve  toque  de  ironia  amável, 
D.  Maria  Engracia. 

E  Isabel  Júlia  pensava,  decerto,  n'uma  doce  confidencia  da 
sua  alma : 

—  Também  António  Lobo  teve  outr'ora  uma  Filis...  Fui  eu. 
Cerca  das  trez  horas  da  tarde,  uma  estrondosa  girandola 

de  foguetes  deu  signal  de  que  do  Largo  do  Passeio  Publico  ia 
partir  para  a  Praça  do  Commercio  o  préstito  de  carros  trium- 
phaes  promovido  pela  casa  dos  vinte  e  quatro  e  pelo  juiz  do 
povo. 

A  multidão  vozeou  de  contentamento,  desabafando  a  sua 
justa  impaciência,  pois  que  havia  longas  horas  que  esperava 
esse  momento. 

Ondas  de  povo  quizeram  forçar  as  embocaduras  das  ruas, 
que  as  sentinellas  defendiam,  porque  na  Praça  do  Commercio 
já  não  cabia  mais  ninguém. 

Até  sobre  os  telhados  dos  edifícios  das  secretarias  de  es- 
tado havia  espectadores. 

O  primeiro  carro  que  desembocou  da  rua  Augusta  foi  o 
que  representava  a  America,  guiado  por  duas  figuras  que  sym- 
bolisavam  a  Generosidade  e  a  Riqueza. 

Este  carro  procurava  dar  uma  apparatosa  idéa  da  fauna  e 


o   LOBO   DA    MADRÂGÔA  319 


da  flora  americanas.  Dentro  d'elle  vinham  dez  músicos  instru- 
mentistas e  dez  dançarinos  mascarados.  Era  acompanhado  por 
um  rancho  de  mulheres  do  Campo  de  SanfAnná,  que  vestiam 
roupas  azues  e  saias  côr  de  rosa,  género  pastoril,  tudo  aga- 
loado de  ouro ;  na  cabeça  coifas  còr  de  rosa  bordadas  de  prata 
e  chapellinhos  brancos  redondos,  com  laços  de  fita  pendentes. 
Lobo  commentou  dizendo  : 

—  A  America  vem  á  frente  por  ser  costume  que  os  pais, 
quando  saiem  á  rua  com  a  familia,  se  façam  preceder  pelos 
filhos  mais  novos. 

Chegou  em  segundo  logar  o  carro  da  «Africa»,  guiado  pelas 
figuras  do  Temor  e  da  Paz,  e  obedecendo  a  idêntica  intenção 
de  symbolismo  geographico,  com  o  mesmo  recheio  de  músicos 
e  dançarinos.  Era  acompanhado  pelo  rancho  das  mulheres  da 
Ribeira  do  Peixe,  que  trajavam  á  hespanhola,  de  branco  e 
preto,  xiom  mantilhas  brancas  agaloadas  de  ouro,  roupinhas  de 
Ihama  de  prata,  e  coifas  brancas  bordadas  a  ouro. 

—  Que  bicho  tamanho  é  aquelle?  perguntou  Isabel  Júlia,  in- 
dicando a  popa  d'este  carro. 

—  E'  um  elephante,  explicou  António  Lobo. 

—  Existe  ou  é  fabula? 

—  Existe,  e  é  assim  mesmo. 

—  Nunca  tinha  visto  ! 

—  Feliz  de  Vossa  Senhoria,  que  para  vêr  grandes  animaes 
teve  de  vir  a  Lisboa. 

Seguia-se  o  carro  da  Ásia,  guiado  pelas  figuras  da  Sujei- 
ção e  da  Victoria. 

A'  proa  levava  a  figura  de  um  camello. 

—  Este  animal  conhece-o  Vossa  Senhoria,  disse  jovialmente 
António  Lobo  a  Isabel  Júlia,  porque  existe  tanto  em  Lisboa 
como  na  provincia. 

—  Pois  nunca  tinha  visto  nenhum! 

—  O'  minha  senhora  1  o  que  não  falta  n'este  reino  são  ca- 
mellos ! 

Em  torno  do  carro  agrupa va-se  a  dança  das  hortelôas,  que 
vestiam  de  verde  com  galões  de  ouro,  coifas  da  mesma  côr, 
também  bordadas  a  ouro,  bandas  de  flores  a  tiracollo  e  rama- 
lhetes nas  mãos. 

Vinha  depois  a  figuração  da  Europa,  guiada  pela  Gloria 
dos  Principes  e  pela  Honra. 

Da  popa  d'este  carro  resaltava  elegante,  sobre  um  alto  pe- 
destal, a  matrona  Europa,  trajada  de  vestes  magestosas,  coroa 
real  na  cabeça,  nos  hombros  manto  imperial :  na  mão  direita 
um  templo,  na  esquerda  um  sceptro. 

—  Ahi  vem  a  mamã!  commentou  António  Lobo. 


320  o   LOBO   DA   MA  DRAGO  A 


—  A  mamã  de  quem?  perguntou  D.  Maria  Engracia. 

—  De  nós  todos.  Se  não  fosse  tSo  enchicharrada,  beijava- 
Ihe  agora  a  mao. 

Este  carro  era  acompanhado  pela  dança  das  collarejas,  que 
vestiam  saias  azues  e  roupinhas  còr  de  rosa,  agaloadas  de 
prata,  coifas  azues  com  lavores  argênteos,  e  arcos  de  flores 
nas  mãos. 

Isabel  Júlia  pediu  que  lhe  explicassem  o  que  eram  colla- 
rejas. 

—  São  propriamente  as  mulheres  de  Collares,  em  Cintra, 
disse  António  Lobo,  mas  dá-se  este  nome  a  todas  as  regatôas 
que  vendem  íructas  e  legumes. 

Rapidamente,  tomando  um  tom  menos  grave,  Lobo  vol- 
tou-se  para  o  dr.  Mattoso,  perguntando-lhe : 

—  E  agora,  que  se  acabou  o  mundo,  o  que  virá? 

O  dr.  Mattoso  consultou  o  programma,  de  que  methodica- 
mente  se  havia  munido  *,  e  respondeu  : 

—  Agora  vem  o  carro  de  ApoUo,  depois  o  do  Oceano,  e  por 
ultimo  o  de  Portugal  triumphante. 

—  Apollo,  meu  amo  e  senhor,  lá  vem  elle!  apostrophou 
Lobo. 

E  indicava  o  carro,  em  que  o  deus  da  poesia,  sentado 
n'uma  tripode  e  coroado  de  louros,  vinha  dominando  outras  fi- 
guras, de  complicada  fabulação,  que  o  dr.  Mattoso,  lendo  o 
programma,  explicava  em  voz  alta. 

A  còr  predominante  n'este  carro  era  a  verde. 

—  Ora  vejam  !  disse  Lobo.  Para  os  poetas,  o  verde!  A  casa 
dos  vinte  e  quatro  conhece-os  bem. 

Riram-se  as  damas,  e  o  dr.  Mattoso,  sempre  preoccupado 
em  seguir  o  programma,  reprehendeu  amavelmente : 

—  O'  homem  de  Deus !  até  já  me  perdi  1 

—  Estava  eu  no  verde,  replicou  Lobo  com  fingida  serie- 
dade, e  todos  os  meus  collegas  também.  Por  esta  indicação  po- 
derá Vossa  Senhoria  orientar-se.  Bem !  vou  calar-me. 

Passou  o  carro  do  Oceano,  com  Têtis  e  quatro  nymphas, 
um  tritão,  o  Tejo,  o  Douro  e  um  renque  de  janellas  d'onde  sa- 
bia, esvoaçando,  um  enxame  de  papeis  com  versos. 

—  Não  posso  dizer  nada?  perguntou  Lobo. 

—  Não,  senhor,  respondeu  o  dr.  Mattoso,  sorrindo. 
Finalmente,   appareceu  o  carro  de  Portugal  triumphante, 


*  Era  a  brochura  intitulada  «Narração  dos  applausos  com  que  o  juiz  do 
povo  e  casa  dos  vinte  e  quatro  festeja  a  felicíssima  inauguração  da  estatua 
equestre,  etc.» 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  321 


com  uma  vistosa  representaçSo  das  sciencias  e  artes  liberaes 
personificadas  cm  figuras  de  ricas  e  variegadas  roupas. 

Precediam  este  carro  cincoenta  comparsas  que,  passando 
sob  o  arco  triumphal,  se  dividiram  em  duas  alas  e  assim  en- 
traram na  Praça. 

Collocados  todos  os  carros  nos  logares  que  o  programma 
lhes  designava,  começaram  a  mover-se,  por  sua  ordem,  para 
ir  fazer  vénia  á  estatua,  com  suas  danças  e  symphonias,  coisa 
muito  de  vêr  e  ouvir. 

Então  toda  a  attenção  dos  espectadores  se  fixou  nas  evolu- 
ções choreographicas  dos  ranchos  que  bailavam  deante  do  mo- 
numento, e  tanto  se  aquietou  a  multidão,  que  distinctamente  se 
percebiam  os  accordes,  suaves  e  festivos,  dos  músicos  instru- 
mentistas. 

Parecia  que  a  brisa  do  Tejo  trazia  um  concerto  longínquo 
de  vozes  de  sereias,  com  que  os  ouvidos  se  deliciavam  n'um 
vago  arroubo. 

Os  carros  sahiram  da  Praça  do  Commercio  pela  mesma 
ordem  por  que  tinham  entrado. 

Todo  este  espectáculo  foi  longo,  mas  imponente. 

Isabel  Júlia  dizia  com  ingenuidade  : 

—  Nunca  vi  coisa  tão  linda,  nem  pensei  que  pudesse  haver ! 
E  o  dr.  Mattoso,  commandando  militarmente,  ordenava  : 

—  Agora,  vamos  merendar.  Vossa  Mercê,  sr.  Lobo,  vem 
também  comnosco.  Eu  já  tenho  muita  fome. 

Lobo  gostou  d'este  convite,  que  o  prendia  mais  ao  grupo. 
A  si  próprio  se  estranhava  pela  paciência  com  que  ia  aturando 
o  sentido  amoroso  que  intencionava,  posto  que  discretamente, 
algumas  phrases  de  D.  Maria  Engracia.  Mas  a  companhia  que 
mais  lhe  agradava  no  grupo  era  a  d'essa  adorável  creatura  mi- 
nhota, ao  mesmo  passo  tão  grave  e  tão  ingénua,  que  lhe  infun- 
dia sympathia  e  respeito. 

—  Muito  me  faz  esta  Isabel  Júlia  lembrar  da  Therezinha  de 
Villalva !  repetia  elle  a  si  próprio  quando  a  ouvia  fallar.  Duas 
irmãs  não  seriam  mais  parecidas ! 

A's  vezes  a  suspeita  de  que  fosse  realmente  Therezinha 
penetrava  no  espirito  de  António  Lobo,  alvoroçando-o.  Na  con- 
versação, chegava  a  armar-lhe  laços,  que  pudessem  provocar 
uma  revelação  involuntária. 

Durante  a  merenda  d'esse  dia  empregou  elle  o  artificio  de 
suscitar  um  assumpto  que  se  prendia  a  recordações  do  passado 
na  vida  de  ambos.  Fallou  dos  costumes  agrícolas  do  Minho, 
especialmente  das  vindimas. 

O  olhar  agudo  de  António  Lobo  procurava  surprehender  a 
menor  impressão  na  physionomia  de  Isabel  Júlia. 


322  o    LOBO   DA    MADRAGÔA 


—  Vossa  Senhoria,  dizia  elle,  ha  de  ter  presenceado  a  folia 
das  vindimas,  e  alguns  episódios  ternamente  galantes  que  as 
animam. 

—  Nós  já  estamos  tão  costumados,  respondeu  ella  serena- 
mente, aos  costumes  do  campo,  que  nem  damos  por  elles. 

—  Mas  ha  um  episodio,  insistiu  Lobo,  que  eu  presenciei  na 
Palmeira,  e  que  me  ficou  sempre  na  lembrança. 

—  Qual? 

—  O  de  se  encontrarem  no  cimo  de  uma  arvore,  durante  a 
vindima,  dois  namorados,  que  procuram  assim  occasião  propi- 
cia de  trocar  a  occultas  suspiros  de  amor. 

Isabel  Júlia,  cuja  commoção  era  intensa  ao  ouvir  esta  re- 
cordação do  passado,  conseguiu  sustentar  a  mascara  da  impas- 
sibilidade, respondendo: 

—  Pois  confesso  francamente  que  tenho  sido  até  hoje  das 
pessoas  illudidas  pelos  namorados.  Mas  d'aqui  por  deante  hei 
de  reparar. 

—  Não  é  ella,  concluiu  António  Lobo,  vendo  inutilisados 
os  seus  engenhosos  ardis. 

E'  que  elle,  durante  os  felizes  tempos  da  Palmeira,  não 
chegara  a  conhecer  toda  a  fina  tempera  do  caracter  de  There- 
zinha. 

Depois  da  merenda,  foram  vêr  a  illuminação  e  o  fogo  de 
artificio  na  Praça  do  Commercio. 

D.  Maria  Engracia  sentia-se  lisonjeada  de  que  Lobo  a  acom- 
panhasse de  dia  e  de  noite :  a  esperança  renascia  no  seu  co- 
ração. 

O  próprio  Lobo  continuava  a  estranhar-se : 

—  E'  curioso  1  sinto-me  agora  bem  ao  pé  d'esta  gente!  Me- 
lhor ainda  do  que  no  Alemtejo ! 

N'essa  noite  houve  serenata  na  grande  sala  da  alfandega, 
e  em  seguida  baile. 

Suas  magestades  e  altezas  assistiram  apenas  á  serenata ; 
el-rei,  adoentado  e  melancólico,  parecia  constrangido  sob  o  peso 
da  sua  própria  apotheóse. 

O  marquez  de  Pombal,  mais  vigoroso  e  satisfeito  do  que 
el-rei,  assistiu  ao  baile.  De  pé,  firme  n'uma  altitude  magestosa, 
observou  attentamente,  através  da  sua  luneta,  a  primeira  qua- 
drilha em  que  o  conde  de  Oeiras  dançou  com  a  embaixatriz  de 
Hespanha. 

Quando,  na  Praça  do  Commercio,  António  Lobo  viu  pas- 
sar as  carruagens  da  familia  real,  que  recolhia  ao  paço,  ficou 
dizendo  no  grupo : 

—  Eu,  se  fosse  el-rei,  também  fazia  o  mesmo,  com  a  difíe- 
r^iça  de  que,  tendo  ouvido  a  musica  de  David  Peres,  em  vez 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  323 


de  ir  para  casa,   vinha   para  o  meio  do  povo,   onde  se  está 
muito  bem. 

—  Então  nao  tem  pena  de  não  assistir  ao  baile?  perguntou 
D.  Maria  Engracia.. 

—  Eu!  Nenhuma.  Dizem  que  na  mesa  da  ceia  ha  um  lago 
com  todas  as  embarcações  do  Tejo  em  miniatura.  Eu  gostava 
de  barquinhos  quando  era  creança.  Agora  prefiro  chegar  ao 
cães  e  vêr  os  navios  verdadeiros.  Também  dizem  que  nao  cus- 
tará menos  de  cem  mil  cruzados  a  ceia.  Pois  que  lhes  faça 
muito  bom  proveito.  Eu  hoje  merendei  com  Vossas  Senhorias: 
portanto,  dispenso  os  serviços  de  Braz  Troiano. 

Era  o  copeiro  encarregado  da  ucharia  que  forneceu  esta 
ceia  colossal. 

D.  Maria  Engracia  ficou  contente  com  a  resposta  de  Lobo, 
e  a  esperança  de  o  ter  por  marido  creou  mais  uma  raiz  no  seu 
coração  anhelante. 

Quinta  feira,  terceiro  dia  das  festas,  repetiu-se  a  exhibição 
dos  carros  e  danças;  e  á  noite  a  illuminação  e  o  fogo  de  artifi- 
cio na  Praça  do  Commercio. 

Sexta  e  sabbado  continuou  o  grupo,  sempre  acompanhado 
por  António  Lobo,  a  visitar  a  cidade. 

No  domingo,  Isabel  Júlia  disse  á  mesa  do  almoço : 

—  Peço  a  Vossas  Senhorias  que  me  façam  ainda  mais  um 
obsequio. 

—  Qual?  perguntaram  todos  ao  mesmo  tempo. 

—  O  de  me  acompanharem  ao  escriptorio  da  carreira  ma- 
rítima do  Porto,  para  eu  me  prevenir  tomando  logar. 

—  Como?!  perguntou  o  dr.  Mattoso. 

—  Já  f  exclamou  António  Lobo. 

—  Não,  minha  boa  Isabel,  disse  D.  Maria  Engracia,  isso  é 
que  não  pôde  ser.  Por  ora  não  te  vais  embora. 


XXIV 


Era  ella! 


Justamente  na  tarde  d'esse  domingo,  11  de  junho  de  1775, 
foi  o  lio  do  marquez  de  Olhão  á  «Estalagem  transtagana»  cum- 
primentar D.  Maria  Engracia. 

Estavam  merendando  quando  elle  se  fez  annunciar. 

—  Valha-me  Deus !  exclamou  a  alemtejana.  Este  homem  é 
tão  violento,  que  sempre  a  sua  visita  me  incommoda.  O'  Isa- 
bel, fazes  o  favor  de  me  acompanhar  á  sala,  para  que  elle  se 
demore  menos  ? 

Isabel  Júlia  levantou-se  immediatamente  e  foi  com  D.  Ma- 
ria Engracia  receber  o  fidalgo,  que  estava  de  physionomia  car- 
regada, e  que  mais  sombrio  ficou  ainda  quando  viu  que  a  viuva 
Bellem  se  fizera  acompanhar  por  uma  pessoa  para  elle  desco- 
nhecida. 

Após  um  breve  prefacio  de  cortezia  pouco  serena,  em  que 
o  visitante  explicou  que  não  quizera  incommodar  D.  Maria  En- 
gracia durante  os  trez  dias  de  festejos  roubando-lhe  tempo, 
esta  mesma  phrase  lhe  serviu  para  entrar  logo  na  matéria  das 
suas  mallogradas  pretensões. 

—  Tanto  mais,  disse  elle,  que  Vossa  Senhoria  tem  andado 
acompanhada  por  uma  espécie  de  D.  Quichote  de  la  Mancha, 
que  maneja  a  lyra  em  vez  da  durindana,  mas  que  não  é  por  isso 
menos  irrisório. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  325 


D.  Maria  Engracia  fez-se  muito  pallida ;  Isabel  Júlia  estre- 
meceu de  indignação. 

A  viuva  Bellem  quiz  cortar  a  verrina  do  truculento  fidalgo, 
e  disse : 

—  Nao  sei  que  mal  fez  a  Vossa  Senhoria  o  meu  bom  visi- 
nho,  dr.  Alho  Mattosol 

—  Minha  senhora!  nâo  esteja  a  querer  illudir-me.  Bem 
sabe  que  me  refiro  a  esse  valdevinos  chamado  António  Lobo, 
que  não  tem  onde  cahir  morto,  nem  lamilia  que  o  recommende, 
e  que  anda  explorando  a  sua  companhia  inconvenientemente. 

Isabel  Júlia  levantou-se  da  cadeira,  ficou  a  olhar,  indecisa, 
para  o  fidalgo  durante  um  momento,  e  disse  por  fim  : 

—  Peço  licença  a  Vossa  Senhoria  para  lhe  dizer  que  o  se- 
nhor António  Lobo  nos  tem  prestado,  a  nosso  pedido,  o  serviço 
de  mostrar-nos  a  cidade,  que  eu,  principalmente,  nao  conhecia. 
Elle,  pois,  é  que  nos  tem  obsequiado  acompanhando-nos. 

O  fidalgo  voltou-se,  muito  assomado,  para  D.  Maria  En- 
gracia e  replicou : 

—  Vossa  Senhoria  apenas  me  disse  o  nome  e  não  a  quali- 
dade d*esta  dama,  que  tão  habilmente  procurou  associar  como 
cúmplice  nos  seus  amores  com  o  astuto  Lobo. 

Isabel  Júlia  aprumou-se  altivamente,  tirou  pelo  braço  da 
viuva  Bellem,  e  retorquiu  : 

—  Eu  não  posso  demorar-me  aqui.  Não  sei  se  queres  ficar; 
mas  decerto  não  consentirás  que  eu  torne  a  ser  desfeiteada  por 
este  senhor. 

D.  Maria  Engracia  levantou-se  também,  E  Isabel  Júlia,  ti- 
rando lhe  insistentemente  pelo  braço,  levou-a  para  fora  da  sala. 

O  fidalgo,  apopletico,  repetia  em  voz  alta :  «Por  este  se- 
nhor! Que  grande  atrevida  !  tratar-me  por  este  senhor!» 

O  dr.  Mattoso  e  António  Lobo,  quando  viram  as  duas  se- 
nhoras voltar  tão  depressa  á  saleta  onde  elles  continuavam  me- 
rendando tranquillamente,  exclamaram  : 

—  Então  já?! 

D.  Maria  Engracia,  excessivamente  perturbada,  explicou  o 
que  se  tinha  passado,  attenuando,  porém,  o  sentido  irritante 
das  referencias  que  o  fidalgo  fizera  a  António  Lobo. 

—  A  Isabel,  disse  ella,  que  tem  muito  mais  coragem  do 
que  eu,  cortou  as  minhas  hesitações  com  uma  altivez  digna  de 
uma  rainha. 

E,  n'uma  effusão  de  agradecida  amizade,  abraçou-a  e  bei- 
jou-a  muitas  vezes. 

Isabel  Júlia  desculpava-se  sorrindo  : 

—  Eu  sou  do  Minho  e  não  sei  nada  da  cortezia  que  se  usa 
na  corte.  Talvez  fizesse  mal,  mas  fiz  o  que  teria  feito  na  minha 


326  o    LOBO   DA   MADRAGÔA 


terra  deante  de  um  homem  insolente.  Desculpem-me  por  quem 
são. . . 

O  dr.  Mattoso  atalhou-a,  dizendo : 

—  A  sr.^  D.  Maria  Engracia  precisava  ter  sempre  ao  seu 
lado  esta  dama.  Se  assim  fosse,  nao  tornaria  a  soífrer  as  im- 
portunações de  tao  violento  sujeito. 

E  António  Lobo,  que  de  mais  havia  comprehendido  tudo  o 
que  se  passara,  disse  com  exaltação : 

—  Esse  homem  ha  de  pagar-me  a  insolência  com  que  se 
portou  deante  de  duas  damas.  Temos  tempo  de  ajustar  contas. 
Não  perde  pela  demora. 

—  Peço  perdão!  interrompeu  Isabel  Júlia,  procurando  cal- 
mar o  espirito  de  António  Lobo.  EUe,  por  agora,  já  foi  bem  en- 
sinado, como  se  diz  na  minha  terra. 

—  A  Vossa  Senhoria,  tornou  Lobo,  mais  sereno,  apresento 
os  meus  agradecimentos,  pois  que  claramente  entendo  que  to- 
mou a  minha  defesa. 

—  Sim. . .  eu  sou  muito  grata  aos  favores  de  Vossa  Mercê, 
e  certamente  não  consentiria  que  ninguém  o  desacreditasse  na 
minha  presença  ;  mas  sou  muito  grata  também  á  Maria  Engracia, 
que  pelas  suas  bellas  qualidades  merece  que  ninguém  lhe  falte 
ao  respeito.  Se  eu  fosse  homem,  acrescentou  intencionalmente, 
seria  o  primeiro  a  estimal-a,  poupando-lhe  o  menor  desgosto. 

António  Lobo  entendeu  de  sobra  esta  cortez  allusâo.  E  Ma- 
ria Engracia  de  novo  abraçou  e  beijou  Isabel  Júlia,  ainda  com 
maior  enternecimento. 

Pouco  tempo  depois,  na  ausência  das  duas  damas,  dizia  o 
dr.  Mattoso  a  António  Lobo : 

—  Esta  D.  Isabel  Júlia  é  mulher  para  fazer  a  felicidade  de 
um  marido. 

Lobo,  a  quem  tão  inesperada  opinião  contrariou  vagamente, 
replicou  sorrindo : 

—  Vejo  que  o  celibato  de  Vossa  Senhoria  está  um  pouco 
abalado ! 

—  E'  a  minha  razão  que  falia.  Pois  não  lhe  parece  também 
isto?  Completa  mulher,  não  ha  duvida! 

—  Altamente  estimável,  é  certo. 

—  Digo-lhe  mais,  meu  caro  Lobo,  se  D.  Maria  Engracia  a 
tivesse  por  companheira.  Vossa  Mercê  acabaria  por  ser  o  pro- 
prietário da  Gandra. 

—  Isso  agora  é  ir  um  pouco  longe!. . . 

—  Não  é.  D.  Isabel  saberia  preparar  suavemente  os  acon- 
tecimentos. 

—  Casar  eu ! 

—  Tem-se  visto  coisas  mais  espantosas. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  327 


Lobo,  sorrindo,  baixou  a  voz  e  disse : 

—  Resolvido  a  casar,  preferia  Isabel. 

—  Também  eu...  respondeu  o  dr.  Mattoso,  sorrindo  por 
sua  vez. 

Isabel  Júlia  consentiu  em  ficar  mais  algum  tempo  na  capi- 
tal :  custava-lrie,  apesar  de  saudosa  da  sua  terra,  abandonar 
o  paraiso  que  a  Providencia  lhe  entremostrara  como  justa  com- 
pensação do  muito  que  tinha  soífrido. 

Posto  que  incompleta,  a  sua  felicidade  era  já  muito  maior 
do  que  ella  poderia  haver  sonhado. 

D.  Maria  Engracia  quiz  que  passassem  o  Santo  António 
em  Lisboa. 

—  E'  a  maior  festa  da  cidade,  reforçava  Lobo.  Fazem  bem 
em  querer  vêl-a. 

—  Ha  descantes  e  fogueiras?  perguntou  Isabel  Júlia. 

—  Lisboa  endoidece  de  alegria  n'essa  noite,  explicava  o 
poeta.  Ha  descantes,  fogueiras,  luminárias  e  bailaricos. 

—  Na  minha  terra  é  pelo  S.  João  que  se  faz  tudo  isso. 
Gosto  tanto  da  noite  de  S.  João  na  minha  terra  !  Sinto-me  quasi 
sempre  triste  n'essa  noite,  e  comtudo  gosto  muito  de  que  ella 
chegue. 

—  Sim,  respondia  Lobo,  é  deliciosa  a  noite  de  S.  João  no 
Minho.  Algumas  vezes  me  tem  lembrado  também  com  saudade. 
Mas  Lisboa  festeja  mais  Santo  António  do  que  S.  João,  pelo 
motivo,  aliás  justo,  de  Santo  António  ser  lisboeta.  Bom  tempo, 
em  que  nasciam  santos  em  Lisboa !  Já  não  ha  d'isso. 

—  Proponha-se  Vossa  Mercê  a  seguir  o  exemplo  de  Santo 
António,  replicou  Isabel  Júlia,  sorrindo. 

—  EUe !  exclamou  o  dr.  Mattoso.  Elle  só  era  capaz  de  imi- 
tar Santo  António  n'uma  coisa. 

—  Qual?  perguntou  Lobo. 

—  Quebrar  as  bilhas  ás  raparigas  na  fonte. 

—  Estou  velho  para  quebrar  bilhas. 

—  Como  são  de  barro. . .  não  custam  muito  a  quebrar,  re- 
plicou ironicamente  o  dr.  Mattoso. 

—  Se  forem  de  barro,  disse  Isabel  Júlia,  não  vale  a  pena 
quebral-as. 

—  E'  que  Vossa  Senhoria,  tornou  o  doutor,  acha  que  todos 
os  corações  são  de  ouro,  como  o  seu. 

—  É  é  verdade!  concordou  D.  Maria  Engracia. 
N'aquelle  tempo,  as  festas  populares  de  Santo  António  não 

estavam  localisadas  n'um  único  bairro  ou  arruamento.  A  Praça 
da  Figueira,  onde  hoje  principalmente  se  concentram,  não  exis- 
tia ainda  ;  fora  só  em  novembro  d'esse  anno  que  el-rei  D.  José 
concedeu  ao  senado  da  camará  o  terreno  necessário  para  a  edi- 


328  o    LOBO   DA    MADRAGÔA 


ficação  de  um  amplo  mercado,  no  sitio  onde  estivera  o  Hospi- 
tal de  Todos  os  Santos.  As  danças  e  descantes  do  povo,  as  lu- 
minárias e  fogueiras,  os  fogos  de  artificio,  o  chiar  das  gaitas- 
de-foUes,  espalhavam-se  por  toda  a  cidade,  mas  adquiriam 
maior  animação  nos  mercados  da  Ribeira  Velha  e  do  Rocio, 
constituídos  por  cabanas  ou  barracas  portáteis,  e  junto  ás  ruí- 
nas da  Real  Casa  de  Santo  António,  que  o  terremoto  derru- 
bara, e  onde  uma  provisória  construcção  de  madeira  permittia 
que  se  celebrassem  os  actos  religiosos  em  honra  da  imagem  do 
Thaumaturgo,  prodigiosamente  salva  da  tremenda  catastrophe. 

A'  beira  do  Tejo  também  ardiam  fogueiras,  na  linha  dos 
cães,  espelhando  na  corrente  do  rio,  como  grandes  manchas  de 
sangue,  os  seus  rubros  clarões. 

Nas  lojas  de  commercio  e  na  fachada  de  muitos  prédios 
improvisavam-se  nichos  ou  thronos,  que  resplandeciam  de  lu- 
mes e  fiôres,  entre  as  quaes,  principalmente,  os  lindos  cravos 
de  Lisboa,  tão  vivos  e  mimosos  nas  suas  cores  variegadas. 

A  estes  nichos  ou  thronos  correspondiam  outros  tantos  ar- 
raiaes,  onde  a  dança  pulava,  e  o  canto  popular  parecia  voar  ás 
estrellas  confundindo  o  amor  com  a  devoção. 

D.  Maria  Engracia,  Isabel  Júlia,  o  dr.  Mattoso  e  António 
Lobo  andaram  percorrendo  a  cidade,  de  arraial  em  arraial,  e, 
pelo  que  respeita  a  Isabel  Júlia,  todos  os  seus  trez  companhei- 
ros a  estranharam  n'essa  noite  de  festa. 

Achavam-n'a  mais  triste  e  concentrada. 

Realmente,  assim  era.  Uma  vaga  saudade  da  sua  terra,  da 
sua  pequena  aldeia  de  Villalva,  parecia  constrangel-a  no  meio 
da  vasta  cidade,  que  sorria  em  jubilo  n'essa  noite  á  luz  das  fo- 
gueiras e  ao  som  dos  descantes  populares. 

Na  noite  de  S.  João,  em  Villalva,  a  lembrança  de  António 
Lobo  costumava  assaltal-a  doloridamente  na  solidão  da  sua 
alma,  em  quanto  as  raparigas  cantavam  e  bailavam  á  roda 
das  fogueiras  chammejantes. 

Agora,  em  Lisboa,  na  noite  festiva  e  ruidosa  do  Thauma- 
turgo, Therezinha  estava  ao  pé  de  António  Lobo,  ouvia  a  sua 
voz,  lia  a  expressão  do  seu  olhar,  comprehendia  o  que  se  pas- 
sava na  sua  alma,  porque  tinha  a  certeza  de  que  não  era  para 
ser  agradável  a  D.  Maria  Engracia  que  elle  acompanhava  o 
grupo;  nem  podia  duvidar  de  que  a  recordação  do  passado  es- 
tivesse ainda  viva  no  seu  coração ;  e  comtudo  a  saudade  de 
Villalva,  n'uma  noite  de  festa,  embora  triste  para  ella,  parecia 
chamal-a  de  longe  como  um  ecco  choroso,  que  viesse  carpin- 
do-se  pelo  ar  á  distancia  de  muitas  léguas. 

Fez  tenção  de  partir  para  que  na  noite  de  S.  João  pudesse 
estar  em  Santo  Thyrso;  queria  tornar  a  ouvir  a  voz  das  rapa- 


o   LOBO   DA   MADRAGÔA  329 


rigas  cantando,  e  as  risadas  com  que  ellas,  felizes  e  contentes, 
a  entristeciam  tanto. 

Algumas  palavras  de  D.  Maria  Engracia  tiveram,  porém, 
a  força  bastante  para  fazel-a  mudar  de  opiniSo. 

Isabel  Júlia  perguntára-lhe : 

—  No  Alemtejo  é  também  alegre  esta  noite? 

—  Não  tanto  como  em  Lisboa,  respondeu  a  viuva  Bellem. 
O  canto  alemtejano  tem  menos  vida  e  animação ;  dizem  que  os 
mouros  o  fizeram  triste.  Mas  também  ha  descantes  e  fogueiras 
na  minha  freguezia  de  Villalva. 

—  Como?!  Como  se  chama  a  tua  freguezia?! 

—  Villalva. 

Arrependida  d'este  involuntário  movimento  de  surpreza, 
que  António  Lobo  não  presenceára  felizmente,  Therezinha  pro- 
curou dominar-se,  dizendo: 

—  E'  curioso!  No  Minho  também  tenho  ouvido  fallar  em 
qualquer  freguezia  de  Villalva. 

—  E'  que  os  nomes  das  terras  se  repetem  como  os  das 
pessoas. 

—  Achas  bonita  a  tua  terra? 

—  Estou  habituada  a  viver  n'ella.  E  queres  que  te  diga? 
Custar-me-hia  trocal-a  por  Lisboa. 

—  Também  eu. 

—  Mas  tu  tinhas  um  meio  muito  fácil,  e  que  a  mim  me  da- 
ria muito  prazer,  de  ficares  sabendo  ao  certo  se  a  minha  Vil- 
lalva é  bonita  ou  feia. 

—  Então? 

—  Indo  passar  comigo  uns  dias  no  Alemtejo.  Nunca  viste 
a  nossa  província,  e  olha  que  não  é  para  despresar.  O  Lobo, 
que  também  é  muito  affeiçoado  ao  vosso  Minho,  gostou  de  a 
vêr,  segundo  disse. 

—  E  de  Villalva  gostaria  também? 

—  Parece  que  sim. 

—  Seria  talvez  das  commodidades  e  obséquios  que  encon- 
trou na  tua  casa. 

—  Não.   Dizia-se  agradado  da  terra.   Vou   perguntar-Ih  o 

deante  de  ti. 

—  Não;  não  quero.  O  que  ha  de  elle  dizer,  na  tua  presença, 
senão  que  a  terra  lhe  agradou  muito? 

—  Tens  razão.  E  tu  o  que  dizes  á  minha  lembrança? 

—  Digo  que. . . 

D.  Maria  Engracia  atalhou  affectuosamente  : 

—  Dizes  que  sim-  Seja,  embora,  por  poucos  dias. 

—  Quantos? 

—  Quinze,  vinte,  um  mez. 


330  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


—  Ah!  isso  não  pôde  ser.  E'  muito.  Eu  não  sou  grande 
proprietária  como  tu,  mas  também  não  posso  abandonar  a  mi- 
nha casa  por  tanto  tempo. 

—  A  questão  é  que  vás  comigo;  o  mais  resolverás  depois. 

—  Pois  sim.. .  quatro  ou  cinco  dias,  apenas. 

—  Tao  pouco!  Olha  que  nem  vale  a  pena.  Tu  não  sabes 
como  são  fatigantes  e  longas  as  jornadas  nos  caminhos  e  car- 
retas do  Alemtejo. 

—  Não  importa.  Eu  estou  habituada  á  falta  de  commodida- 
des  na  província. 

—  Agora  vais  comnosco.  A'  volta  faço-te  acompanhar  pelos 
meus  criados. 

Therezinha  sorriu. 

—  Eu  não  tenho  medo,  disse  ella.  Fui  creada  no  campo. 

—  Sabes  lá  o  que  é  a  charneca?!  Só,  não  vens  tu;  Deus  te 
livre!  Mando  comtigo  a  minha  Gertrudes,  que  é  uma  criada  an- 
tiga, da  maior  confiança ;  e  dois  criados,  pelo  menos. 

—  Oh  !  que  estado  maior!  Nem  o  marquez  de  Pombal,  ou- 
tro dia,  quando  se  inaugurou  a  estatua  ! 

—  Tudo  será  preciso  desde  o  Alemtejo  até  Lisboa.  E,  se 
quizeres,  mando-os  seguir  comtigo  para  o  Minho 

—  Credo !  Não  é  preciso.  Eu  vim  sósinha,  e  não  me  acon- 
teceu mal  nenhum. 

—  Pois  então  está  dito.  Dás-me  n'isso  o  maior  prazer.  De- 
certo não  tornaremos  a  vêr-nos  mais. . . 

—  Sim,  decerto;  se  não  quizeres  ir  passar  uns  dias  comigo 
n'uma  choupana,  abrigo  de  uma  pobre  minhota  como  eu. 

—  Esqueces-te  de  que  sou  mais  velha  do  que  tu.  Posso  lá 
fazer  uma  jornada  d'essas ! 

—  Depois,  mais  tarde,  quando  tiveres  marido  que  te  acom- 
panhe. 

—  Marido!  Quem?  o  Lobo? 

—  Sim,  o  Lobo,  por  que  não?  Que  melhor  podia  elle  dese- 
jar? Tu  és  uma  bella  alma,  Maria  Engracia. 

—  O  Lobo,  bem  vês,  não  tem  génio  para  casado.  Quer  ser 
livre.  Está  habituado  a  esta  vida  perdida  de  Lisboa.  Queres  que 
te  diga?  E'  um  desgraçado. 

—  Infeliz  d'elle !  Tens  razão. 

—  Mas  é  o  seu  feitio.  De  mais  a  mais  sou  uma  velha. 

—  E  elle  já  não  é  nenhum  rapaz. 

—  Poderia  proporcionar-lhe,  isso  sim,  alguns  meios  de 
subsistência.  E  tinha  gosto  em  o  fazer.  Não  prejudicava  nin- 
guém. Não  tenho  herdeiros  forçados.  Era  talvez  uma  tolice 
como  qualquer  outra.  Mas  dizem  que  duas  vezes  somos  creanças. 

—  Creança  no  pensar,  é  elle,  em  não  ter  acceitado  ainda  a 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  331 


felicidade  que  tu  lhe  offereces  tao  generosamente.  Se  eu  o  pu- 
desse aconselhar. .  • 

—  Pois  tu  farias  isso? 

—  Farei,  se  tiver  occasião.  Talvez  tenha  no  Alemtejo,  se 
elle,  a  pedido  do  dr.  Mattoso,  quizer  acompanhar- nos.  Digo-te 
mais,  Maria  Engracia.  Imagina  tu  que  eu  gostava  d'elle-  .. 

—  Seria  bem  natural. 

--Pois  seria.  Mas  ainda  assim  eu  o  aconselharia  a  casar 
comtigo,  porque  já  conheço  bem  o  teu  coração,  e  porque  eu 
nunca  poderia  offerecer-lhe  as  mesmas  vantagens  que  tu.  Sou 
pobre,  e  tu  és  rica.  E  eu,  n'esse  caso,  desejaria  que  elle  mor- 
resse melhor  do  que  parece  ter  vivido  sempre. 

—  E's  um  anjo,  Isabel !  Cada  vez  admiro  mais  o  teu  nobre 
caracter. 

Maria  Engracia  abraçou  e  beijou  Therezinha  com  terníssima 
cordealidade. 

—  Deixa  vêr  se  o  dr.  Mattoso,  disse  Therezinha,  o  resolve 
a  ir  comnosco. 

—  Talvez  vá,  se  tu  lhe  pedires. 

—  Eul 

—  Tu,  sim.  Elle  trata-te  com  muita  estima  e  respeito.  E 
isso  me  tem  contentado,  porque  vejo  que  faz  justiça  ás  tuas 
boas  qualidades. 

—  E'  que  elle  nSo  parece  mau.  .. 

—  Sim,  cuido  que  tem  bom  coração;  o  génio  é  que  é  arre- 
batado. 

—  Má  cabeça.  Mas  talvez  que  tu  conseguisses  guial-o  me- 
lhor na  vida  socegada  do  Alemtejo. 

—  Era  a  minha  esperança. 

—  Pois  não  tem  elle  andado  tão  socegado  estes  dias? 

—  Tem,  sim. 

—  Vês?  Empurral-o  para  esse  caminho  seria  prestar-lhe 
um  grande  serviço.  O  que  ha  de  ser  a  velhice  d'elle,  sem  meios, 
sem  familia,  sem  o  carinho  de  ninguém? 

—  E'  verdade  I 

—  Que  eu  também  não  tenho  familia.  Estou  quasi  como 
elle.  Menos  pobre,  graças  a  Deus. 

—  Não  tens  familia,  porque  não  queres. 

—  Como  assim  ? 

—  O  dr.  Mattoso  faz-te  muitos  elogios.  Tenho  a  certeza  de 
que  casaria  comtigo,  se  tu  quizesses. 

— Ah  I  Maria  Engracia,  não  digas  isso.  Eu  nSo  casarei  nunca. 

—  A's  vezes  não  te  comprehendo!  Amas  um  homem,  não 
casas  com  elle,  não  casas  com  nenhum  outro,  e  nem  sequer 
procuras  vêl-o! 


332  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


—  Isso  é  que  tu  não  sabes,  minha  querida  amiga. 

—  Já  o  viste? 

—  Talvez... 

—  E  elle  viu-te? 

—  Se  viu,  não  me  reconheceu. 

—  Não  se  fallaram? 

—  Fomos  como  duas  pessoas  que  nunca  nos  tivéssemos 
amado.  . .  tanto. 

—  Mas  isso  é  triste. 

—  Se  não  pôde  ser  d'outro  modo. . . 

—  E  não  me  disseste  nada! 

—  Tens  razão.  Pesa  na  minha  consciência  esse  remorso. 
Perdoa-me.  Mas  as  condições  em  que  o  vi  não  me  deixavam 
proceder  d'outra  maneira.  E'  um  segredo  da  m.inha  alma,  um 
segredo  que  tem  vivido  sempre  comigo,  e  que  comigo  ha  de  ir 
para  a  sepultura.  A  ti,  Maria  Engracia,  disse  o  mais  que  podia 
dizer,  acredita. 

—  Seja  como  fôr.  Embora  nem  sempre  te  comprehenda, 
porque  tens  um  génio  muito  differente  do  meu,  admiro-te  e 
amo-te. 

No  dia  14  de  junho,  pela  manhã,  partiram  para  o  Alem- 
tejo. . .  todos  quatro. 

Isabel  Júlia  obedecera  n'essa  jornada  á  suggestão  da  pala- 
vra—  Villalva.  Era  uma  coincidência  que  ella  tomou  como  um 
desígnio  do  seu  destino.  Lobo  ia  attraído,  inconscientemente, 
pela  graia  sensação  que  lhe  dava  a  presença  de  Isabel  Júlia. 
Maria  Engracia  julgava-se  feliz  pela  companhia  de  António 
Lobo,  e  o  dr.  Mattoso  principiava  a  sentir  um  subtil  encanto 
na  convivência  de  Isabel  Júlia. 

Através  do  Alemtejo,  o  tom  alegre  da  conversação,  princi- 
palmente animada  por  António  Lobo  e  pelo  dr.  Mattoso,  agora 
mais  fallador  e  communicativo,  não  pôde  attenuar  no  espirito 
de  Isabel  Júlia  a  severa  impressão  que  lhe  davam  os  montados 
tristes,  a  charneca  immensa,  os  «montes»  solitários. 

—  Então  que  dizes  á  nossa  província  ?  perguntou-lhe  D.  Ma- 
ria Engracia. 

—  Acharás  natural,  certamente,  que  eu  goste  mais  do 
Minho. 

—  Isso  decerto,  observava  o  dr.  Mattoso,  porque  é  a  sua 
terra.  Mas  não  se  pôde  julgar  apenas  pelas  apparencias.  Olhe  que 
no  interior  do  Alemtejo  ha  muito  que  apreciar.  Isto  é  como  cer- 
tas pessoas,  de  physionomia  carregada,  mas  de  brando  coração. 

E  António  Lobo,  mais  perscrutador,  perguntava: 

—  Eu,  que  também  sou  minhoto,  gostava  de  lhe  ouvir  di- 
zer qual  é  a  maior  differença  que  nota  entre  as  duas  províncias. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  333 


—  Náo  sei  bem,  respondia  com  timidez  Isabel  Júlia.  Pare- 
ce-me  que  no  Minho  a  gente  está  menos  só;  que  a  vida  é  mais 
conchegada.  Tenho  pena  de  náo  saber  dizer  o  que  sinto...  Mas 
lá,  acho  eu,  as  arvores  aproximam-se  mais  do  nosso  coração; 
juntam-se  comnosco;  tudo  parece  estar  mais  perto  de  nós. 

—  Ha  mais  vida,  dizia  António  Lobo,  auxiliando  a  expres- 
são tímida  de  Isabel  Júlia.  Ouve -se  a  cada  momento  cantar  a 
alma  da  terra.  E  o  arvoredo,  eífectivamente,  parece  ter  braços, 
que  nos  enleiam  fraternalmente. 

—  Isso  mesmo!  applaudia  Isabel  Júlia.  E'  tal  e  qual  o  que 
eu  sinto;  mas  nao  sei  dizel-o  assim. 

O  que  é  certo  é  que  a  primeira  impressão  que  Isabel  Júlia 
recebeu,  ao  entrar  no  Alemtejo,  nao  foi  desvanecida  na  Gandra, 
onde  aliás  observou  com  interesse  os  trabalhos  da  vida  agrí- 
cola, os  aspectos  do  campo,  os  processos  da  lavoira. 

N'este  ponto,  mais  entendida  do  que  António  Lobo,  fazia 
perguntas,  comparava,  emittia  opinião. 

A  respeito  de  Villalva  dizia  a  si  própria: 

—  A  minha  terra  é  um  jardimsinho.  Esta  não  é  de  todo 
feia;  mas  pôde  lá  comparar-sel 

E  apertava  com  ella  a  saudade,  uma  doce  saudade  muito 
penetrante,  que  lhe  avivava  recordações  do  passado,  como  se 
todas  nào  fossem  inspiradas  por  uma  pessoa  que  estava  ali  pre- 
sente. . . 

A's  vezes  a  saudade  é  como  o  ecco;  sôa  muito  longe  da 
voz  que  o  provocou. 

Foi  com  sacrifício  que  Isabel  Júlia  annuiu  a  passar  na  Gan- 
dra a  noite  de  S.  JoBo,  para  no  dia  seguinte  partir;  pela  pri- 
meira vez  deixou  de  ouvir,  n'aquella  noite,  as  canções  da  sua 
lerra. 

—  Mas,  cogitava  ella,  estando  eu  ao  pé  de  António  Lobo, 
que  razão  terei  para  sentir-me  tão  triste  como  lá?  Pois  não  era 
n'elle  que  eu  pensava,  n'elle,  unicamente?  Vejo-o  agora  perto 
de  mim,  e  decerto  o  não  verei  mais.  Hei  de  sentir-me  alegre 
por  força. . . 

E  o  caso  é  que  não  sentiu. 

Os  festejos  e  tradições  da  noite  de  S.  João  no  Alemtejo  não 
lhe  causaram  estranheza;  vaga  melancolia,  sim.  Ouviu  algu- 
mas das  trovas  do  Minho,  e  encontrou  quasi  as  mesmas  su- 
perstições: o  ovo  partido,  os  papelinhos,  a  herva  benta.  Ape- 
nas desconhecia  o  vaticinio  da  alcachofra,  o  costume,  tão  arrei- 
gado no  sul,  de  cortar  esta  ftôr,  passal-a  pela  chamma  aa  fo- 
gueira e  pôl-a  depois  ao  relento  toda  a  noite,  para  vêr  se  reflo- 
resce na  manhã  seguinte. 

—  Admira  não  termos  lá  esta  crença!  dizia  Isabel  JuIia. 


334  o   LOBO   DA   MADRAGÔA 


Não  faltam  cardos  no  Minho,  e  isto  que  chamam  alcachofra  é 
a  flor  do  cardo. 

—  Do  cardo  de  coalho,  explicava  o  dr.  Mattoso.  Também 
lhe  chamamos  «cardo  de  dencas»  ou  «penqueira». 

—  Pelo  amor  de  Deus!  galhofava  António  Lobo.  Esse  nome 
tira  toda  a  poesia  á  superstição. 

—  Mas  então,  perguntava  Isabel  Júlia,  se  a  alcachofra  es- 
tiver reflorida  pela  manhã,  o  que  significa  ? 

—  E'  signal  de  casamento, 

—  E  se  não  estiver? 

—  Ficará  solteira  a  pessoa  que  a  consultou. 

O  dr.  Matloso  propoz  que  todos  quatro  fizessem  a  expe- 
riência da  alcachofra. 

Isabel  Júlia  percebeu-lhe  a  intenção. 

Um  dos  motivos  por  que  ella  queria  deixar  a  Gandra,  ape- 
zar  das  instancias  que  faziam  para  que  se  demorasse,  era  a 
galanteria  que  principiava  a  transparecer  nas  palavras  do  dr. 
Mattoso. 

A  idéa  de  que  elle  chegasse  a  declarar-se  francamente,  as- 
sustava-a. 

—  Por  minha  parte,  disse  Isabel  Júlia,  não  é  precisa  a  ex- 
periência; quer  a  alcachofra  reverdeça,  quer  não,  ficarei  sol- 
teira toda  a  vida. 

Mas  o  dr.  Mattoso  insistiu  no  alvitre,  e  quatro  alcachofras 
foram  queimadas  na  fogueira. 

Rapazes  e  raparigas  cantavam  em  coro  ao  som  da  viola  : 

Não  sei  que  tem  o  Baptista 
No  dia  em  que  quer  nascer, 
Que,  sejam  velhos  ou  moços, 
Tudo  faz  endoidecer. 

Ora  viva 

E  ora  viva  ! 

Viva  o  Baptista,  e  viva  I 

Viva  o  Baptista,  e  viva  ! 

Foi  ao  som  dos  cantos  populares  que  Isabel  Júlia  disse  em 
confidencia  a  António  Lobo : 

—  Muito  estimaria  vir  a  saber  que  Vossa  Mercê  tinha  des- 
posado Maria  Engracia. 

—  Olhe  que  não  é  hoje  a  noite  de  S.  Gonçalo,  respondeu 
elle;  mas  de  S.  João. 

—  Vossa  Mercê  está  brincando.  Eu  é  que  não  estou.  Ma- 
ria Engracia  merece  encontrar  um  homem  que  a  estime;  não 
sei  que  haja  melhor  coração.  E'  boa,  é  rica,  poderia  fazer  feliz 


o   LOBO   DA    MADRAGÔA  335 


Vossa  Mercê.  Depois  vem  a  velhice,  vem  a  doença. . .  E'  triste 
não  ter  ninguém  no  mundo.  Nao  leva  decerto  a  mal  que  lhe 
faça  este  pedido:  seja  bom  para  si  e  para  ella. 

António  Lobo  demorou  em  Isabel  Júlia  um  olhar  enter- 
necido. 

Depois,  sorriu,  e  disse: 

—  Tudo  isso  é  verdade,  minha  senhora,  m.as,  pelo  que  me 
respeita,  faça  Vossa  Senhoria  de  conta  que  mais  uma  alcacho- 
fra deixou  de  refiorir. 

—  Tenho  pena.    .  disse  Isabel  Júlia,  aífastando-se. 

Os  seus  olhos  estavam  inundados  de  lagrimas,  e  o  seu  co- 
ração arfava  vertiginosamente. 

As  fogueiras  crepitavam  levantando  no  ar  um  turbilhão  de 
faulhas,  que  faziam  lembrar  borboletas  de  oiro  revoluteando 
doidas. 

O  rosmaninho  e  o  alecrim,  ardendo,  perfumavam  de  agres- 
tes aromas  o  ambiente  da  herdade. 

Uma  voz  de  homem  cantava  provocante  de  galanteria  cam- 
pestre : 

Que  é  das  moças  d'esta  terra 

Que  não  as  posso  encontrar? 

Certo  é  que  ellas  não  querem  , 

O  Baptista  festejar! 

—  Os  versos  do  Minho,  disse  o  dr.  Mattoso  a  Isabel  Júlia, 
hão  de  ser  de  pé-quebrado  como  estes. 

—  De  versos,  respondeu  ella,  não  entendo  nada. 

—  E,  comtudo,  interveio  Lobo,  certamente  que  Vossa  Se- 
nhoria os  ouviria  algumas  vezes  em  sua  honra.  O  Minho  é  terra 
de  poetas.  Em  Ponte  do  Lima  nasceram  dois,  e  dos  melhores : 
Diogo  Bernardes  e  seu  irmão  Agostinho  da  Cruz.  De  certo,  fa- 
çamos essa  justiça  ao  Minho,  já  algum  poeta  prestou  homenagem 
a  Vossa  Senhoria.  Diga  se  não  é  verdade. . . 

Isabel  Júlia  sorriu  maguadamente. 

—  Esse  sorriso,  continuou  Lobo,  envolve  uma  aflfirmação 
e  uma  saudade. 

—  Sim. . .  respondeu  Isabel  Júlia,  commovida;  fizeram-me 
uns  versos,  mas  ha  já  muitos  annos. 

—  Seria  indiscreção  pedir-lhe  que  m'os  dissesse? 

—  Se  me  lembrarem. . . 

—  Versos  d'esses  não  se  perdem  da  memoria. 

—  Pois,  quando  me  lembrarem  bem,  íar-lhe-hei  a  vontade. 

—  Eu,  disse  Maria  Engracia,  se  tivesse  nascido  poeta, 
também  havia  de  te  cantar,  minha  pomba  sem  fel. 

O  dr.  Mattoso  observou: 


336 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


—  Ha,  principalmente,  uma  poesia  do  coração:  é  a  since- 
ridade. 

—  Mas  os  taes  versos  também  eram  sinceros,  respondeu 
Isabel  Júlia,  com  vivacidade  impetuosa. 


Ao  partir  da  Gandra 


No  dia  seguinte,  logo  pela  manhã  cedo,  apparelharam-se 
duas  carretas  para  a  jornada. 

Pendiam  ainda,  dos  ramos  das  arvores,  as  ultimas  gottas 
do  bemdito  orvalho  da  noite  de  S.  João,  que  os  primeiros  raios 
de  sol  faziam  brilhar  como  fulgidos  diamantes. 

Uma  das  carretas  devia  conduzir  Isabel  Júlia  e  a  criada 
Gertrudes;  a  outra  transportaria  mais  dois  criados  da  Gandra, 
comitiva  para  o  caminho. 

—  Bem  me  custa  que  vás,  dizia,  chorosa,  Maria  Engracia; 
e  logo  no  dia  de  hoje,  que  é  de  tamanha  festa  em  todo  o  mundo, 
até  na  Moirama!  Mas  tu  queres  por  força. . .  Sósinha  é  que  de 
modo  nenhum  te  deixaria  ir. 

A  manhã  foi  desabrochando  clara  e  alegre.  Mas  os  cora- 
ções estavam  tristes,  oppressos. 

—  E  as  nossas  alcachofras?!  lembrou  o  dr.  Mattoso. 
— E'  verdade! 


o    LOBO   DA   MADRAGÔA  337 


—  Vamos  vél-as. 

Nenhuma  das  quatro  havia  reflorido. 

—  Penso  que  fallaram  verdade,  disse  sentenciosarnente  o 
doutor. 

E  Isabel  Júlia,  cortando  este  incidente,  começou  a  fazer  as 
suas  despedidas. 

D.  Maria  Engracia  chorava.  O  dr.  Mattoso  enrolava  uma 
folha  verde  entre  os  dedos.  António  Lobo  tinha  um  olhar  vago, 
que  parecia  perder-se  na  immensidade  do  céu  e  da  terra. 

Isabel  Júlia  enxugou  duas  lagrimas  e,  no  momento  em  que 
ia  subir  á  carreta,  disse,  sorrindo  com  esforço : 

—  E'  verdade,  sr.  Lobo  1  Lembraram-me  os  versos.  Sem- 
pre os  quer  ouvir?  SSo  estes: 


Se  te  esqueci?  Esquecer-te!  Jamais. 
Amo-te  e  fujo;  fujo  e  amo-te  mais. 


Rapidamente  entrou  á  carreta,  soluçando  n'um  estrangu- 
lamento de  commoçao: 

—  Adeus!  adeus! 

António  Lobo,  como  fulminado  de  assombro,  ouvia  resoar 
dentro  da  sua  alma  aturdida  uma  voz  que  lhe  dizia  em  segredo: 

—  Era  ella! 


2^ 


Epilogo 


António  Lobo  de  Carvalho  soffreu  n'aquelle  dia  um  pro- 
fundo abalo  moral,  que  não  conseguiu  modificar  completamente 
o  seu  génio  mordaz  e  irritável,  mas  que  algum  tanto  o  atte- 
nuou,  avivando-lhe  sentimentos  nobilitadores  da  natureza  hu- 
mana. 

Conservou,  é  certo,  ruins  paixões,  taes  foram  aquellas  que 
o  levaram  a  nSo  deixar  de  perseguir  o  padre  Manuel  de  Ma- 
cedo, a  aggravar  o  marquez  de  Pombal  na  desgraça,  e  a  brigar 
frequentes  vezes  com  o  tio  do  marquez  de  Olhão,  a  quem,  como 
sabemos,  tinha  jurado  vingança. 

Mas,  pelo  que  respeita  a  este  ultimo,  havia  no  ódio  de  An- 
tónio Lobo  alguma  coisa  que  podia  desculpai- o:  era  o  resenti- 
mento  de  haver  o  fidalgo  offendido  Therezinha  na  presença  de 
D.  Maria  Engracia,  e  por  causa  d'ella. 

João  Bernardo  da  Rocha  escreveu  no  «Portuguez»  (tomo  x, 
pag.  356)  que  António  Lobo  fora  mandado  matar  aleivosamente 
pelo  tio  do  marquez  de  Olhão,  em  desaíTronta  de  um  soneto 
cruelmente  aggressivo. 

Illibemos,  a  este  respeito,  a  memoria  do  fidalgo. 

Innocencio  Francisco  da  Silva,  no  L°  tomo  do  supplemento 
ao  «Diccionario  bibliographico»,  lembra  que  José  Maria  da  Costa 
e  Silva  attribue  o  referido  soneto  ao  «Camões  do  Rocio»,  e  que, 
sendo  d'elle,  mal  se  comprehende  que  António  Lobo  pudesse 
vir  a  soffrer  por  um  delicto  que  outro  havia  praticado  cincoenta 
annos  antes. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  339 


Acrescenta  que  a  pessoa  visada  no  soneto  era  o  marquez 
monteiro-mór,  em  1735,  isto  é,  na  infância  de  António  Lobo. 

Camillo  Castello  Branco  acceita  como  bons  estes  reparos, 
dizendo:  «...  o  sr.  ínnocencio  Francisco  da  Silva,  posto  que 
não  decida  qual  haja  sido  a  morte  do  poeta,  com  justificados 
motivos  desabona  a  affirmativa  de  João  Bernardo  da  Rocha».  * 

E'  até  provável  que  o  fidalgo,  sendo  mais  velho  que  Antó- 
nio Lobo,  morresse  primeiro. 

Mas  não  ha  duvida  que  ficou  accêso  o  ódio  entre  os  dois 
desde  a  violenta  occorrencia  na  «Estalagem  transtagana»,  ódio 
que  se  desmandou  em  repetidos  conflictos,  incluindo  vias  de 
facto. 

Quanto  ao  padre  Manuel  de  Macedo,  nunca  mais  António 
Lobo  o  deixou  em  paz. 

Bastará  dar  um  exemplo. 

Depois  do  marquez  de  Pombal  ter  sido  desterrado,  acon- 
teceu ir  Macedo  pregar  na  egreja  de  Santa  Joanna  em  acção  de 
graças  pelas  melhoras  de  certo  fidalgo:  n'esse  sermão,  o  ora- 
dor abateu  os  méritos  e  serviços  do  marquez,  que  n'outras  occa- 
siões  havia  louvado  servilmente. 

Lobo  cahiu-lhe  logo  em  cima  com  um  soneto  causticante  : 

Hontem  n'essa  cadeira  da  verdade, 
Por  maior  dos  heroes  o  conheceste, 
E  no  mesmo  logar  hoje  o  fizeste 
O  monstro  mais  cruel  d'iniquidade  ! 

Explica-nos  erafim  por  piedade, 
Já  que  tanto  o  exaltaste,  e  o  abateste. 
Se  é  mentira  o  que  então  nos  propuzeste, 
Ou  o  que  essa  oração  nos  persuade. 

Se  foi  mau,  porque  teve  então  louvores? 

E  se  é  bom,  por  que  é  monstro,  e  causa  medo  f 

Eu  não  posso  entender  taes  oradores  1 

Para  mudar  o  ser  é  muito  cedo  : 
Hontem  tudo  era  luz,  tudo  hoje  horrores. 
Mas,  emfim,  são  discursos  do  Macedo  ! 

António  Lobo  apenas  queria  ferir  o  padre,  e  não  desaggra- 
var  o  marquez,  que  até  na  decadência  continuou  a  flagellar. 


*  Curso  de  litteratura,  pag.  343. 


340  o    LOBO    DA    MADRAGÔA 


Haja  vista  este  soneto,  aliás  um  dos  menos  duros  entre  os 
que  appareceram  sobre  a  destituição  e  exílio  do  marquez  de 
Pombal : 

Erários,  casamentos,  jesuítas, 
Fidalgos,  jacobeo»,  o  novo  plano. 
Fabricas  de  chapéus,  peças  de  panno, 
E  almas  também  no  purgatório  afflictas: 

Guapos  jardins,  cascatas  esquisitas, 

E  os  toneis,  que  o  Mansilha  ^  encheu  ha  um  anno, 

Tudo  são  obras  do  marquez  paisano, 

Umes  famosas,  outras  inauditas. 

Muitos  por  honra,  e  todos  com  inveja 
Lhe  beijaram  a  mão  de  gral  pesada. 
Como  se  fora  um  copo  de  cerveja  : 

Mas  elle,  emfim,  morreu,  sem  ser  á  espada  ; 
.    Que  um  boi  dos  grandes,  por  feroz  que  seja, 
Recolhido  ao  touril  já  não  faz  neda. 

Em  1782,  quando  a  morte  veiu  pôr  termo  ao  exilio  do  mar- 
quez de  Pombal,  António  Lobo  parece  hesitar  na  animadversào 
com  que  até  ahi  o  julgara,  dizendo: 

Se  elle  foi  bom,  ou  mau,  não  o  disputo, 
Que  isto  toca  a  mais  alta  jerarchia. 

Mas  insiste  na  aggressão  ao  padre  Macedo,  a  propósito  do 
fallecimento  do  marquez: 

Restam  hoje  as  exéquias  d'esta  morte; 

E  para  pregar  n'eUa6  o  Macedo, 

Que  está  prompto  a  mentir  de  toda  a  gorte. 

A  influencia  benéfica  exercida  nos  costumes  de  Lobo  pelo 
abalo  que  lhe  causou  a  presença  de  Therezinha,  manifestou-se, 
principalmente,  n*uma  revivescência  de  sentimentos  religiosos, 
e  no  carinho  suave  com  que  lhe  escrevia  frequentes  cartas  para 
Villalva,  acceitando  d'ella  o  appello  á  justiça  divina,  que  re- 
compensaria a  ambos,  reunindo-os  talvez,  n'um  mundo  de 
eterna  paz  e  bemaventurança,  além  da  sepultura. 


*  Frei  João  de  Mansilha,  provincial  da  ordem  de  S.  Domingos,  procu- 
rador em  Lisboa  da  Companhia  de  Vinhos  do  Alto  Douro,  e  grande  amigo 
do  marquez  de  Pombal. 


o    LOBO    DA    MADRAGÔA  341 


Isto,  no  coração  de  Therezinha,  que  uma  fé  sincera  e  calma 
tinha  avigorado  sempre,  era  um  presentimeato  de  morte  pró- 
xima. 

Assim  veiu  a  acontecer,  porque  aquelia  que  íôra  outr'ora 
a  linda  camponeza  de  Villalva,  falleceu  dois  annos  depois,  ao 
cabo  de  trez  dias  de  resignado  soífrimento. 

Morreu  pelo  coração,  exhausto  de  haver  praticado  heróicos 
esforços  de  coragem. 

Nas  suas  disposições  testamentárias,  deixou  a  António 
Lobo  quanto  possuía,  «para  que  ao  menos  na  morte  pudesse 
elle  ter  o  socego,  que  lhe  faltara  em  vida,  e  que  prepara  a  alma, 
pela  conformidade,  para  a  viagem  eterna». 

Assim  se  explica,  como  diz  o  prefacio  ás  «Poesias»  de 
Lobo,  que  o  poeta,  na  hora  da  morte,  tivesse  alguns  bens  para 
legar,  e  que  fosse  seu  testamenteiro  um  Manuel  Jacinto  de  Oli- 
veira, caixeiro  de  commercio,  morador  na  freguezia  de  S.  Julião. 

António  Lobo  de  Carvalho  morreu  christãmente,  recebendo 
os  sacramentos  da  Egreja. 

Dir-se-hia  que  a  alma  de  Therezinha  velava  por  elle  d'além 
da  campa,  pedindo  a  Deus  o  perdão  de  todos  os  erros  de  uma 
vida  malbaratada  em  desatinos  e  loucuras. 

Lobo  expirou  a  26  de  outubro  de  1787,  com  pouco  menos 
de  sessenta  annos  de  idade,  na  sua  agua-furtada,  onde  muitos 
annos  viveu,  da  famosa  rua  da  Madragôa,  que  hoje  se  chama 
de  Vicente  Borga. 

No  dia  seguinte  foi  sepultado  na  egreja  do  convento  de  Je- 
sus, actualmente  parochial  das  Mercês. 


FIM 


ERRATAS 


'aginae 

1       LtnbaB 

Onde  se  lê 

Deve  ler-ie 

57 

— 

7 

— 

obtemperou 

— 

obtemperou 

89 

— 

20 

— 

exisse 

— 

exigisse 

96 

— 

39 

— 

mu 

— 

um 

105 

— 

38 

— 

Amal-a  tu? 

— 

A'mal-a  tu? 

128 

— 

51 

— 

Dantes  prendiam-n'a  ali  a     — 

D'antes  prendiam-n'a   ali 

alagria 

a  alegria 

170 

— 

29 

— 

Soneto  ridicularisar 

— 

soneto  a  ridicularisar 

192 

— 

6 

— 

Os  zampirinistas 

— 

Os  zamperinistas 

256 

— 

30 

— 

e  por  quê? 

— 

e  por  quê. 

26R 

— 

24 

— 

accordou  a  disse : 

— 

accordou  e  disse: 

312 

— 

10 

— 

veiu  a  saleta 

— 

veiu  á  saleta 

índice 

PARTE  I 

PECCADOS  DA  MOCIDADE 

p«gr. 

I  —  A  explosão  da  pesqueira. 9 

II  —  Dia  de  S.  Bartholomeu • 20 

III  —  Encontro  do  Occidente  com  o  Oriente 37 

IV  —  Triumpho  astucioso  do  Oriente 50 

V  —  O  bando  do  Lobo 62 

VI  —  Consequências  de  uma  rapaziada 75 

VII  —  Despedida  em  verso .  87 

VIII  —  Therezinha 100 

IX  —  Amor  puro 112 

X  —  Cahir  do  ceu 125 

XI  —  Ura  atoleiro  e  uma  pomba 136 

XII  —  Nova  separação 149 

PARTE  II 
DELICTOS  DA  VELHICE 

XIII  —  Na  vida  airada  de  Lisboa . .  163 

XIV  — Chegada  da  Zamperini 178 

XV  —  A  guerra  dos  poetas 194 

XVI  —  A  filha  do  picheleiro 212 

XVII  —  Mezinha  criminosa 224 

XVIII  —  O  sarau  das  Picoas 239 

XIX  —  A  chanfana 253 

XX  —  Pobreza  e  independência 267 

XXI  —  Rua  ! 282 

XXII  —  Rei  de  bronze  e  ministro  de  ferro 296 

XXIII  —  Dezesete  annos  depois 309 

XXIV  —  Era  ella  ! 324 

Epilogo 338 


4 


Pimentel,   Alberto 

O  lobo  da  Mandragôa 


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